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Manuel Madeira

1. Preâmbulo

Quando homenageamos alguém, é natural que não poupemos nos adjetivos, mas no caso de Manuel Madeira, elogiá-lo de forma justa é especialmente difícil, porque é realmente difícil encontrar os adjetivos adequados.Em toda a minha vida, estou certo que nunca conheci um outro ser humano mais completo que Manuel Madeira! Haverá outros melhores em alguns aspetos, mas ainda não conheci nenhum que fosse tanto num só!

Para o descrever, temos de ter em conta a complexidade própria de quem tinha múltiplas camadas, desde a sua qualidade humana e humanista, que tanto atraía os que conviviam com ele; o seu percurso político antifascista, onde revelou extrema coragem perante a tortura; o nível literário da sua poesia; o seu historial de excelente funcionário e gestor empresarial, etc.

Nos contactos que com ele tive já na fase final da sua vida, impressionou-me sobretudo o seu humanismo pungente e o interesse que genuinamente tinha por todos. Não sei se seria este interesse que ele tinha em nós ou o interesse que nós tínhamos nas suas conversas, o facto é que Manuel Madeira atraía e encantava profundamente qualquer um!

Nas muitas histórias que ele contava - algumas relatadas nesta autobiografia - espantava-me a sua completa incapacidade para odiar ou querer mal a alguém, nomeadamente aos que o torturaram quase até à morte! Ele por vezes explicava, com desconcertante candura, que os seus algozes eram afinal tão humanos como nós todos, mas que pelas suas próprias circunstâncias, não entendiam quão errados estavam. Dei comigo a pensar que Manuel Madeira era como Nelson Mandela, que também foi preso e mal tratado e, no fim... perdoou!

O mesmo se passou quando ele, já depois do 25 de abril, ao ter acesso aos ficheiros da Pide, percebeu que uma das prisões que sofreu foi causada pela delação, mediante tortura, dum seu amigo de sempre. O amigo, confrontado, desfez-se em desculpas genuinamente envergonhadas, mas Manuel Madeira logo ali lhe tirou o peso da consciência ao dizer-lhe que compreendia perfeitamente que tivesse quebrado perante a tortura. E, efetivamente, era normal que assim fosse! Poucos, como Manuel Madeira, nunca quebraram! Curiosamente, para proteger o seu amigo, que continuou a ser uma visita regular até aos últimos anos da sua vida, Manuel Madeira nunca revelou o nome à própria família, embora tanto a esposa como a filha soubessem perfeitamente quem foi.

Quero relatar a forma como o conheci, pois é reveladora do encantamento que ele produzia nos outros!

Em 2003 tornei-me seu vizinho, e lembro-me de alguém me ter referido que naquela moradia vivia um combatente antifascista.

Creio que algures por volta de 2005, quando estava passeando os meus cães numa zona arborizada contígua, apercebo-me de um idoso solitário, mal vestido, suado, que aparentava estar perdido. Estranhei ver aquele homem naquele local isolado e àquela hora morta, sem vivalma. Imaginei que poderia ser alguém com alguma forma de senilidade, perdido e a precisar de ajuda. Mas ele dirige-se a mim e explica-me que andava à procura de um tal Manuel Madeira, que tinha sido preso político e que ele sabia viver na zona.

O nome nada me dizia, mas a informação de que era um antigo preso político alertou-me para o vizinho que ainda não conhecia.

Levei-o a casa de Manuel Madeira, e no entretanto, ele foi-me contando que tinham sido companheiros de infortúnio na prisão quando eram jovens, mas naquele momento, como já se sentia velho e doente, vivia num lar de idosos, creio que na Bordeira.

Nesse dia, tinha decidido sair à socapa e procurar o seu amigo, que não via há décadas... Queria vê-lo uma última vez antes de morrer! Apanhou primeiro uma camioneta até Olhão, e depois a pé, já tinha feito vários quilómetros sem saber se teria sucesso nessa sua demanda!

Toco à campainha e quando Manuel Madeira aparece, de imediato este homem abraça-o e começa a chorar compulsivamente.

- Manel! Manel! Meu amigo!

- Encontrei este senhor procurando por si. Conhece-o?

- Sim! Fomos companheiros num momento difícil! Muito obrigado por o trazer aqui.

Manuel Madeira passou a tarde com o amigo e, como na época ainda conduzia com alguma desenvoltura, levou-o de volta ao lar.

Mais tarde contou-me que era um homem simples, operário, militante comunista, que ele tinha conhecido na prisão muitos anos antes!

Creio que nunca mais se voltaram a ver...


A APOS publica esta autobiografia de Manuel Madeira, escrita na última fase da sua vida, já com a ajuda da sua filha Natércia Madeira, com a intenção de o homenagear no centésimo aniversário do seu nascimento.

Remetemos para os anexos os diversos textos que os seus amigos escreveram sobre ele ou alguns trabalhos e estudos que ele refere.

Ao longo do texto, colocámos dentro de parêntesisis retos, algumas informações que pensamos poderem esclarecer melhor o leitor.

No entanto, a autobiografia é muito fluida, pelo que considerámos importante antecedê-la por uma breve nota biográfica, da autoria de Paula Bravo, que segue.

No final, temos ainda alguns vídeos, sendo o mais importante o documentário de Adão Contreiras - "Testemunho de Manuel Madeira, o poeta da palavra infinita".


António Paula Brito de Pina, 2024


2. Breve biografia de Manuel Madeira*

Um algarvio cuja vida, durante a Resistência, foi totalmente entregue à luta contra a Ditadura. Uma vítima das perseguições e das atrocidades do regime. Um exemplo de coragem na forma como sempre enfrentou a PIDE. Preso por diversas vezes, submetido intensamente à panóplia de atrocidades físicas e morais a que a PIDE recorria, sofreu a "estátua" e a tortura de sono. Numa das ocasiões em que, uma vez mais, recusou prestar declarações, foi torturado com tal violência que ficou praticamente morto. Foi então libertado, para que não morresse na prisão.

Nasce em S. Bartolomeu de Messines, em agosto de 1924**.

A mãe aprendeu costura e fazia trabalhos em casa. O pai empregou-se nos caminhos de ferro, mas morreu muito jovem, com tuberculose. Depois deste acontecimento, a família vai para Olhão, dedicando-se à agricultura.

Era um tempo de grandes dificuldades económicas, os invernos eram épocas de fome, quando os homens não podiam pescar e as fábricas de conserva paravam a sua atividade.

Apesar de todas as dificuldades, Manuel Madeira entra na escola primária, onde toma contacto com as letras e a tabuada, na escola do Padre de Olhão, Cónego Delgado, um homem que através de peditórios conseguiu construir um asilo para pobres e uma escola semioficial que habilitava jovens - só rapazes para o exame da quarta classe.

Aos 12 anos, a pressão para que entrasse no seminário, começou a ser muito forte, mas as dificuldades em casa eram muitas e é obrigado a empregar-se no comércio. Continua a estudar à noite, sozinho, com algum apoio do tio que estudara no seminário e de amigos. É um deles António Simões Júnior (ver biografia), que lhe desperta a atenção para a necessidade de desenvolver ações de ordem política antifascista.

É com ele, "numa noite sem lua e sem medo" como conta Manuel Madeira, que resolvem chamar a atenção das pessoas da localidade, pintando na estrada principal, paredes e muros, palavras de ordem a favor da democracia.
Aos 18 anos começa a trabalhar na Função Pública, na Tesouraria de Olhão, um emprego que lhe permite comprar o primeiro livro de poesia, um livro de "Álvaro de Campos".

É nesta altura que começam a surgir noticias de um movimento, o Movimento de Unidade Democrática Juvenil - MUD, que não sendo uma organização partidária, visava unir a juventude numa luta para a instauração da democracia em Portugal.

A primeira reunião no Algarve, para a apresentação do MUD Juvenil, realizou-se em Faro, em casa de António Ramos Rosa. Ao fim de poucos meses o movimento estava implantado em todos os concelhos do litoral incluindo Silves e também com célula em Messines, onde Manuel Madeira se deslocava.

O movimento estende-se a todo o Algarve, de tal modo que em Março de 1947 foi possível realizar nos arredores de Olhão, mais concretamente no sítio de Bela Mandil, a maior concentração de jovens de todo o Algarve durante o regime da ditadura, com cerca de mil participantes. O programa consistia de refeição em comum num pinhal, leitura de manifesto, recitação de poesia, discussão de projetos, etc.. Mas a GNR cercou o acampamento com apoio de um pelotão do exército, dando ordens, sob a ameaça das armas, à dispersão dos participantes.

Mas os jovens não obedeceram, decidindo que só abandonariam o acampamento depois do último discurso e que a seguir caminhariam todos juntos para Olhão. Mas quando a multidão se aproximava do centro da povoação, sem obedecer às ordens da GNR, esta abriu fogo, embora sem consequências pessoais.

A notícia da manifestação de Bela Mandil chegou à Rádio Moscovo que a transmitiu a todo o mundo. Poucos dias depois a Pide iniciou a caça aos organizadores. Dezenas de jovens do Algarve, Lisboa e outras regiões são levados para as prisões de Caxias e Aljube. Entre eles, vai Manuel Madeira. Esteve preso quase três meses. A PIDE queria saber qual a relação que tinha com o Partido Comunista, na clandestinidade. Mas, nada apurando, libertaram-no, sem julgamento.

A liberdade durou muito pouco.

Em abril de 1948, deslocou-se a Silves, com amigos. Ao chegarem à estação verificaram que eram seguidos por um polícia e decidiram dispersar. Mas o polícia "cola-se" a Manuel Madeira, dá-lhe ordem de prisão e obriga-o a ir para o posto. Como se recusa a responder às questões que lhe fazem, é levado para a PIDE, em Faro. Libertam-no poucos dias depois, após ter assinado um auto em que lhe perguntavam se sabia o motivo por que tinha sido preso, a que Manuel Madeira respondeu que não e eles concluíram que tinha sido "por precaução, pois nesse dia era esperado um desembarque de russos na costa do Algarve, e ele era suspeito de ser um espião"...

De novo em liberdade, apresenta-se no local de trabalho para descobrir que tinha sido despedido. A sua situação económica fica muito abalada com este despedimento. Com a ajuda de amigos, arranja um emprego, como vendedor de conservas de peixe no interior do Algarve e Baixo Alentejo e de equipamentos para lagares de azeite.

Algum tempo depois é admitido numa empresa em Vila Real de Santo António.

Apesar das dificuldades, Manuel Madeira continua a manter contactos regulares de carácter cultural e político no âmbito das atividades de luta pela democracia.

Em Abril de 1951 é novamente preso, transportado para o Aljube, depois para Caxias, onde permanece três meses. Na prisão, passa por períodos penosos, de total isolamento, onde se dedica à leitura dos livros autorizados.

Uma vez libertado volta para Vila Real de Santo António para procurar casa onde morar com a sua futura mulher. Neste período colabora num abaixo assinado que pede a libertação de presos políticos. Alguns dias depois é preso e enviado para Lisboa. No interrogatório, Manuel Madeira recusa-se a prestar declarações. Por isso, é severamente agredido até que ao fim de muitas horas caiu no chão. Foi então transportado para o segredo onde sofreu uma hemorragia e teve de ser assistido de urgência.

Para Manuel Madeira, este foi o tempo de prisão mais difícil de suportar em toda a sua vida. A verdade é que foi submetido intensamente à panóplia de atrocidades físicas e morais a que a PIDE recorria. Foi submetido à "estátua", e tortura de sono, e a violência foi tal que o deixaram praticamente morto. É então libertado, para que não morra na prisão.

Valeu-lhe nesta emergência, o seu amigo, o poeta António Ramos Rosa, que vivia em Lisboa e lhe ofereceu parte do seu quarto, numa residencial e lhe prestou os cuidados necessários.

Esta convalescença acabou por ter um aspecto muito interessante para Manuel Madeira. É que nesta residencial coexistiam na altura outros intelectuais, interessados na divulgação da poesia e é convidado para colaborar nas revistas a «Árvore» e «Cadernos do Meio-dia».

Quando melhorou, Manuel Madeira volta para S. Bartolomeu de Messines, para casa da sua namorada, Marina da Luz Cortes. Com o passar dos dias, percebe que dificilmente voltará a encontrar trabalho no Algarve e decide tentar a sorte em Lisboa.

Consegue emprego na cooperativa dos trabalhadores de Portugal, que dava assistência a ex-presos políticos. Em 1953 consegue um emprego numa firma de contabilidade. Em Outubro casa-se com Marina da Luz Cortes.

Começa outra fase da sua vida política. Com a saúde muito debilitada, decide deixar de ter atividades susceptíveis de "dar nas vistas". Mas oferece a sua residência para apoio a amigos com atividades clandestinas e para reuniões partidárias. É na sua casa que são feitas muitas das reuniões do comité central do PCP.

Esta atividade dura cerca de cinco anos até que a PIDE começa a convocá-lo para apresentação periódica na sua sede, na Rua António Maria Cardoso.

Entretanto, em 1958, é admitido no grupo de empresas Fima/Lever/Iglo associadas da multinacional Unilever, com sede na Holanda. É uma nova fase da sua vida profissional e pessoal, marcada pelo nascimento da filha Natércia.

É também uma fase de relativa tranquilidade no que respeita à PIDE. Isto acontece porque o administrador holandês da Lever, aborrecido com a insistência da PIDE, decide ir ele próprio à polícia para que deixem "em paz" o seu empregado, que lhe fazia muita falta na empresa.
Em 1959, a empresa monta uma fábrica para produzir gelados e Manuel Madeira passa a dirigir a produção. Para desenvolver a sua actividade profissional, faz estágios em vários países da Europa. Ao fim de vinte anos, em 1981, reforma-se. Em 1991, regressa definitivamente a Olhão, onde fixa residência.

Até adoecer gravemente, a sua ocupação diária consistiu em pequenos trabalhos de jardinagem, na leitura e na escrita de poemas. Faleceu em Maio de 2016.

Da sua vida literária destaca-se os seguintes momentos:

 Publicou em jornais e revistas: "A Nossa Terra", de Cascais, "Planície", de Moura; "Cadernos do Meio Dia", de Faro; "Vértice", de Coimbra; "Seara Nova", de Lisboa, e nos Cadernos de Poesia Viola Delta 29 e Viola Delta 30. Foi um dos fundadores da revista literária Sol XXI, de Carcavelos.

Tem poemas publicados na Antologia Portuguesa do Pós-Guerra- 1945-1965.

Está representado na Antologia 100 anos- Federico Garcia Lorca, Homenagem dos Poetas Portugueses, no ano de 1998 e participou na homenagem a "Neruda cem anos depois", em 2004.

Em 2004, a sua filha compilou os seus poemas, publicados e inéditos entre 1949 e 2004, tendo organizado um volume de 409 páginas, editado e apresentado em Lisboa e em Faro, durante os primeiros meses de 2005, com o título: "No encalço do real inalcançável".

Publicou ainda: "Um pouco de infinito em toda a parte"; "Cartas poéticas entre António Ramos Rosa e Manuel Madeira"; `"A descoberta das causas no sortilégio dos efeitos"; "Simbiose telúrica de fragmentos do ser, reflexos e reflexões poéticas"; e "Universo Aberto com Trancas à Porta".
Paula Bravo

(*) Texto de Paula Bravo, com base em biografia de Manuel Madeira, escrita por sua filha, Natércia Madeira. A versão integral deste texto foi apresentada na Homenagem que a Sociedade de Instrução e Recreio Messinense prestou ao poeta messinense em Outubro de 2010, aquando da apresentação do seu livro "Cartas Poéticas entre António Ramos Rosa e Manuel Madeira".
(**) O registo de nascimento é 21 de agosto de 1924, mas sabemos que a data verdadeira foi 13 de julho de 1924. Faleceu em 28 de maio de 2016.















3. Autobiografia de Manuel Madeira

Sou oriundo de uma família rural de camponeses remediados «para a época» e nasci em Julho de 1924 em S. Bartolomeu de Messines, concelho de Silves no Algarve.

Vivíamos em regime de comunidade patriarcal, sendo a minha mãe a filha mais velha de um casal com quatro filhos, dos quais dois trabalhavam no campo amanhando terras de sequeiro e operando as sementeiras, sendo o mais novo e o único filho que frequentou a Escola primária e foi internado no seminário distrital de Faro para ser padre.

A minha mãe aprendeu costura e trabalhava em casa ajudando a família.


Casou aos vinte anos com meu pai, da mesma idade. Também trabalhador rural que, entretanto, aprendeu o ofício de carpinteiro e arranjou emprego nos caminhos-de-ferro. Morreu muito cedo, com tuberculose, quando eu tinha quatro anos de idade e um irmão mais novo do que eu, com menos de um ano de idade, quando ficámos órfãos de pai.

S. Bartolomeu de Messines
Durante os anos vinte do século passado a situação económica e social da população rural em todo o país apresentava profundas cicatrizes, em parte como consequência negativa provocada pela primeira Grande Guerra (1914/1918), pela perda de vidas humanas na guerra e pelas epidemias devastadoras subsequentes, a mais notável das quais foi a «pneumónica» que atingiu muitas famílias, semeando a morte e abalando as economias.

Por outro lado, as repercussões da grande recessão económica nos Estados Unidos estendiam-se a Portugal, perturbando também a já de si deficiente economia da população campesina. A falta de braços válidos na agricultura e a retração na procura dos produtos, principalmente frutos secos (amêndoas, figos e alfarrobas) especialmente dirigidos à exportação, provocaram uma crise generalizada que aos poucos alastrou a toda a região do Algarve e a todo o país.

Em face da situação económica e social que a região atravessava, com a relativa diminuição de poder de compra das classes média e média baixa, a que pertencíamos, a minha família abandonou a fonte de subsistência básica, que era a agricultura de sequeiro, vendeu os bens que possuíam, residuais de hipotecas e dívidas liquidadas e deslocou-se para o litoral do Algarve, primeiro Faro, depois, passados dois ou três anos fixou-se em Olhão, desenvolvendo atividades comerciais dependentes da agricultura. Isto é, arrendavam a terra, desta vez de regadio, produziam frutas e hortaliças que vendiam no mercado local permanentemente ao longo do ano, sujeitos às vicissitudes inerentes, climatéricas, concorrenciais, flutuações do poder de compra da população que era predominantemente piscatória, condicionada também pelas contingências bastante precárias nessa época.
Diogo Cabrita, pai de Manuel Madeira
(fotografia quando cumpria o serviço militar)

Havia alturas no ano em que a pesca grossa não se efetuava por motivo de defesa das espécies que afetavam principalmente as fábricas de conserva, cujos trabalhadores ficavam cerca de três meses sem ocupação produtiva.

Os Invernos eram particularmente períodos de fome anuais, não só pela paralisação das fábricas devido ao defeso acima referido, mas também pela impossibilidade da pesca artesanal, devido ao mau tempo no mar que impedia dramaticamente os pescadores de pescar. Lembro-me de que alguns (muitos) que se arriscavam a ir para o mar tempestuoso em busca de sustento para si e suas famílias, pagavam com a vida essa decisão, que era de facto de vida ou de morte

Em 1930, na minha família composta por seis membros adultos, apenas um frequentava estudos secundários, no seminário episcopal de faro. Todos os outros eram analfabetos. Eu tinha nessa altura seis anos de idade. Um irmão mais novo tinha dois. Minha mãe trabalhava para a casa que todos habitávamos, dedicando-se a costurar, profissão que nessa época e no local, se por um lado era atraente, por não existir ainda o «pronto-a-vestir», por outro não passava de atividade doméstica pouco rentável, em face da penúria económica em que a maior parte da população vivia. Não obstante, por volta dos seis anos de idade frequentei uma «escola» particular, pré-primária, onde tomei contacto com as primeiras letra, tabuada e convívio com outras crianças, perto da minha casa, mas onde permanecia o dia todo, pois levava comigo de manhã a refeição do almoço.

De toda a minha família, apenas a minha avó materna era muito religiosa, católica assistia às missas pois tinha um filho destinado a ser padre além de naturalmente possuir fé herdada de seus pais, como era muito frequente nesse tempo. Por isso, exercia alguma influência cultural sobre a minha mãe que, embora sem muita convicção pactuava e por arrastamento, transmitia-me também ensinamentos religiosos do catolicismo, de tal modo que aos poucos fui aceitando e colaborando nesses propósitos, que me obrigavam a ir à missa pelo menos todos os domingos, a princípio acompanhado por ela ou pela minha avó e depois mais tarde sozinho.

Nesse tempo a igreja exercia uma grande influência sobre os habitantes de Olhão. Pode dizer-se que a maior parte das pessoas iam à missa, entravam nas procissões, assistiam às palestras eclesiásticas e colaboravam em muitas iniciativas de carácter religioso.

O pároco dessa época desenvolvia junto da população uma grande atividade missionária que lhe granjeou um carisma quase sem contestação. Graças a esse ascendente, a maior parte das pessoas submetiam-se ao seu poder espiritual, aceitando os seus conselhos a que recorriam frequentemente, de tal modo ele ombreava em muitos aspetos com os poderes políticos instituídos, que a ele recorriam também quase em pé de igualdade e muitas vezes como superior a quem se pede ajuda para o que era comum considerar «manutenção da ordem pública».

Agia em certas ocasiões como agente superior das autoridades policiais para investigar e dominar, se fosse caso disso, as tentativas de rebelião de classes trabalhadoras em desespero.

Avó materna de Manuel Madeira

Ao mesmo tempo, através de peditórios organizados em vários locais do país, não só no Algarve, que ele pessoalmente dirigia, conseguia obter fundos monetários ou em espécie e com eles fundou um asilo para pessoas muito pobres e uma escola para ensino semioficial que habilitava os jovens só rapazes – para exames até ao que se chamava a quarta classe, hoje primeiro ciclo; eram reconhecidos pelo Estado através dos exames efetuados nas escolas públicas.

O ensino era gratuito e através das relações da minha avó e da minha mãe com o cónego Delgado que era o diretor, foi possível a minha entrada para frequentar a primeira classe e aí permaneci como estudante até ao fim do ciclo que era de quatro anos com exame feito na escola oficial.

Tinha doze anos de idade e sob pressão do cónego, a minha família estava determinada a internar-me no seminário com o propósito de me fazer padre. Durante cerca de um ano acolitei o cónego Delgado em variados serviços religiosos desde as missas até outras cerimónias festivas de carácter episcopal.

Mas as dificuldades económicas em nossa casa cresciam e, depois de muitas hesitações e esperanças de melhoria goradas foi decidido empregar-me no comércio onde trabalhei de facto durante quatro ou cinco anos.

Entretanto, por iniciativa minha, influenciado por contactos com jovens da minha idade e com mais recursos económicos do que eu, com quem mantinha relações de amizade e também por gosto pela leitura de livros que me emprestavam e lia com sofreguidão, resolvi continuar a estudar matérias do ensino secundário durante grande parte do tempo que tinha disponível, fora das horas de serviço normal nos estabelecimentos onde trabalhava.

As noites, principalmente durante três ou quatro horas, à luz de candeeiro a petróleo, passava-as lendo, a princípio seletas literárias acompanhadas da gramática, geografia, história, filosofia e francês, língua que admirava e que aos poucos se foi tornando útil também sob o ponto de vista profissional, permitindo-me atender clientes estrangeiros que começavam então a aparecer como turistas nos estabelecimentos onde trabalhava.

Estudava sozinho, nesse tempo não havia ensino noturno organizado e público e eu não possuía rendimentos suficientes para pagar a professores particulares.

Recebia sob este aspeto algum apoio teórico do meu tio que entretanto abandonou os estudos eclesiásticos e se alistou no exército como voluntário, em parte por motivos económicos de curto prazo, em parte por se ter afastado mentalmente das doutrinas religiosas a que tinha sacrificado cinco anos da sua vida.

Entre as matérias que voluntariamente estudava, sobressaíam algumas a que dedicava gostosamente mais tempo, como eram ciências, gramática e literatura em geral e em particular poesia e filosofia. Mais tarde, no domínio das ciências sociais e humanas, mereceram-me significativo empenho a antropologia e para os obter preferia os emprestados e só no caso de impossibilidade de os encontrar recorria às livrarias, sacrificando muitas vezes os gastos com distrações próprias da idade ou a compra de artigos de vestuário por exemplo que não fossem absolutamente indispensáveis, já que para a família a psicologia.

Procurava nas livrarias e nas bibliotecas públicas, principalmente nas sociedades de recreio os livros de que tinha informações que me revelavam interesse e, contribuição era fundamental.

Recorria também frequentemente a bibliotecas de amigos com mais poder de compra de livros do que eu, entre os quais destaco Raul Martins Veríssimo, na altura estudante universitário, com quem desde muito cedo estabeleci relações fraternas de carácter mútuo, por existirem, entre nós muitas afinidades de ordem cultural e uma profunda aspiração de justiça social, por ambos partilhada.

Os encontros com ele tornaram-se diários; por motivos de saúde o Raul foi forçado a interromper os estudos em Lisboa e dedicou-se a leccionar em casa como explicador, estudantes até à admissão na Universidade e chegou a ter muitas dezenas de explicandos que lhe ocupavam o dia inteiro com trabalho; mas à noite, depois do jantar juntávamo-nos num café da rua do comércio de Olhão de nome «Danúbio» e aí, com outros amigos, nomeadamente o José Lopes de Brito, trocávamos impressões e discutíamos sobre literatura, filosofia, arte e política, envolvendo-se nessas palestras o proprietário do estabelecimento e alguns clientes que, como nós, apreciavam estes exercícios dialéticos.

A amizade prolongou-se e as visitas e trocas de cartas eram frequentes quando estavam afastados.

Raúl Veríssimo

De vez em quando aparecia e participava na assembleia o Dr. Francisco Fernando Lopes, que exerceu sobre os jovens que nós éramos nesses anos uma influência cultural muito positiva.

Sobre mim, pelo menos, que o admirava pelo seu saber um tanto desordenado mas profícuo para quem escutava com atenção as suas deambulações filosóficas e artísticas, no sentido literal da palavra «deambulação», pois ele discorria sobre os assuntos de forma peripatética, movendo-se de um lado para o outro em andamento, às vezes apressado, como faziam os discípulos de Aristóteles, que lhes ensinou o método, sobre mim teve uma grande importância o seu pensamento heterodoxo numa época de ortodoxias ideológicas ferozes, em que os ditadores eram adulados como se fossem deuses salvadores da humanidade, fossem eles Hitlers, Stalines, ou simplesmente Salazares.

Era um tanto bizarro este homem simples e modesto, que trocara a cátedra de medicina em Lisboa, pelo exercício da clínica em Olhão, terra de pescadores, a maioria pobres, ele próprio vivendo com algumas dificuldades, que em parte o obrigavam a exercer o professorado no Liceu de Faro, onde ensinava Português como professor provisório, mais tarde substituído pelo Dr. Joaquim Magalhães que, natural do Porto se instalou no Algarve para sempre.

Episódio com o Dr. Fernando Lopes, a propósito do seu incómodo relacionamento político e social com os defensores do poder instalado e também com os representantes das oposições existentes:
 
Francisco Fernandes Lopes

Aconteceu no ano de 1949. Era um dia de verão. Eu trabalhava em frente da igreja em Olhão, num pequeno escritório do meu amigo Manuel Rodrigues Pereira, que estava preso em Lisboa, cumprindo pena por atividades contra o Regime. Por volta das catorze horas entrou pela porta semiaberta que ele empurrou de súbito, muito agitado, balouçando as mãos e os braços, escalmorrado, como se tivesse visto o demónio, e num gesto sacudido, como quem esconjura um inimigo, disparou: «podes escrever à máquina já um artigo para o Jornal de Olhão?». Surpreendido mas sereno, admirando a desenvoltura descomposta do D. Lopes que eu estimava, respondi: «sim, é para já». E, sem mais palavras, meti na máquina o papel e aguardei um breve instante, até ele, ainda de pé, começar a dizer, mais para mim do que para o papel, o que lhe tinha acontecido:

«Imagina que me convidaram para participar na festa de inauguração de um fontanário, na aldeia de Pechão, a que me desloquei, tendo assistido ao corte da fita pelo Governador Civil que proferiu as primeiras palavras de regozijo pelo benefício que a obra confere à população; depois falou o Presidente da Câmara para enaltecer o valor e o significado do melhoramento; em seguida o Cónego Delgado que louvou a Deus nas alturas pela graça concedida ao povo, que ele também abençoou como seu representante nesta terra e, quando me foi dada a palavra para também discursar sobre o acontecimento, comecei por dizer: …acabámos de ouvir a palavra do representante de Deus nesta terra e, gozando eu também aqui o privilégio da imortalidade (pois tinha pelo menos o nome gravado numa rua) e não sendo representante de Deus, serei naturalmente representante do Diabo…

Foi quando desabou sobre mim uma saraivada de palmas e vivas a Salazar, e abaixo… abaixo… fora… fora…, à medida que eu prosseguia com as palavras do discurso, que praticamente ia começar, e não me deixavam falar; novamente vivas, a isto, àquilo, aqueloutro, vivas de “espirra-canivetes”, vivas de burros, que é o que eles são, suas cabeças de alfinete, não veem um palmo diante do nariz… e não me deixaram falar.

Vê tu como eles são. Vão buscar-me a casa para os acompanhar, depois “borram a opa”...

Escreve, escreve…»

De facto escrevi, mostrei-lhe depois, ele leu, aceitou.

Tinha desenvolvido o seu pensamento sobre o acontecimento; escrevi o que ele diria se lho tivessem permitido e avançava críticas à pequenez dos responsáveis por tamanha desfeita e pedia ao diretor do jornal para publicar esta carta aberta às autoridades e ao povo, como considerava ser de direito.

Tinha abandonado a festa, percorreu a pé cerca de quatro quilómetros, de Pechão até ao centro da vila; vinha cansado, coberto de pó porque a estrada era primitiva e ele estava furibundo pela ofensa e pela tolice.

Foi entregar a carta. O diretor do jornal, que tinha assistido à inauguração e colaborado com “os esbirros” no ultraje à dignidade de um homem probo e culto, de estatura moral, cívica e ética elevadíssima, reconhecido já nessa altura no país inteiro pelas figuras mais representativas do saber na época, o diretor recusou a publicação no jornal o único que havia em Olhão.

Voltou desolado e entregou-me o manifesto, que ajudei depois a copiografar no aparelho clandestino do MUD; foi distribuído de noite, entregue por mão própria a algumas pessoas de Olhão e espalhado pelas ruas, como acontecia com os outros documentos do Movimento.

O D. Fernandes Lopes não tinha nesse tempo pretensões políticas. Criticava uns e outros, quer fossem do Governo ou da Oposição. Era, politicamente um homem “Anti” como ele próprio se intitulava.

Assisti muitas vezes e participei em discussões muito acaloradas em que ele se autoproclamava “Anti”. Ao que uma vez, pelo menos à minha vista, o Lopes de Brito lhe disse: «anti… quário, antiquário é o que o senhor é!». O que o enfureceu, acusando o outro de ter «o Stalin na barriga».

Por agora, quero deixar claro que ele foi à sua maneira um pedagogo, com uma cultura notável para a época e um espírito de solidariedade para com os mais desfavorecidos da sua terra que, embora o não compreendessem inteiramente, admiravam a sua generosidade.

Outro amigo que sistematicamente me emprestava com regularidade livros, a ponto de semanalmente renovar remessas de três ou quatro que eu devorava de um fôlego, foi António Simões Júnior, autodidata, cuja profissão era pintor da construção civil, ligeiramente mais velho do que eu, possuindo uma cultura rara em Olhão para pessoas da sua condição social.

Foi ele [António Simões Júnior] que me chamou a atenção para a necessidade de desenvolver ações de ordem política antifascista, tentando materializar na prática, através de trabalho concreto de agitação social, os conhecimentos por nós adquiridos ao longo das nossas leituras; o desejo dele era o de proletarizar a cultura ou intelectualizar os trabalhadores, no sentido de intensificação da luta que em devido tempo acabasse com a exploração do homem pelo homem.

Manuel Madeira com António Simóes Júnior,
no Jardim João Serra, em Olhão

E, juntamente com ele numa noite sem lua e sem medo, resolvemos chamar a atenção das pessoas da localidade ou de outras que por ali passassem, pintando na estrada principal de acesso, assim como nas paredes e muros adjacentes, largas faixas com palavras de ordem contra a situação política e as forças policiais da ditadura, a favor da democracia, com grandes letras visíveis à distância.

No dia seguinte, a vila vibrava de espanto e de alegria e as autoridades empenharam-se na ação de apagar o que não era fácil nem nalguns casos possível, pois o pintor tinha usado um fixador de nitrato de prata para fazer sobressair as letras.

Este amigo emigrou para Marrocos depois para a Argentina, fugindo a perseguições policiais, tendo-se dedicado à literatura e escrito dezenas de ensaios e novelas, uma ou duas das quais sobre Olhão. Um destes livros foi traduzido do castelhano para o português por Diamantino Piloto, e patrocinado em parte pela câmara municipal de Olhão.

Enquanto na Argentina, António Simões Júnior trocou correspondência comigo em que ambos nos referimos a assuntos do nosso interesse. [Correpondência em Anexo]

E voltando à minha juventude, durante aproximadamente cinco anos, isto é, até atingir a idade dos dezoito, li centenas de obras de estudo ou de recreação, que eu de certo modo transformava também em matérias de estudo, como aconteceu com os romances de Dostoievski, Stendhal, Tomas Mann e outros que me ajudaram a compreender Freud na introdução ao estudo da Psicologia.

Em paralelo mantive a leitura sistemática das obras de escritores portugueses, desde os clássicos até aos modernistas, passando pelos poetas, com predominância para as obras de Antero de Quental, Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro e os neorrealistas que na altura surgiam relevantemente acompanhando a onda de participação na contestação política do chamado Estado Novo, que por toda a parte fazia sentir o seu poder policial repressivo sobre as classes trabalhadoras e os jovens que se insurgiam contra a Censura e contra a PIDE que os encarcerava e perseguia nas escolas e nos locais de trabalho, impedindo o desenvolvimento cultural, político e até profissional.

Por volta dos meus quinze anos de idade, vivi o que se pode chamar uma crise de carácter religioso. As minhas convicções religiosas tinham raízes familiares não muito profundas, por ter assistido desde muito novo a discussões em casa onde, como já disse, a minha avó era a pessoa mais imbuída de sentimentos católicos radicais. Minha mãe era mais liberal e a restante família não comungava pela Páscoa nem ia à missa. Mas eu, por influências domésticas e pelas práticas e doutrinação sofridas na escola, assimilei sem espírito crítico, como era vulgar nestas circunstâncias, alguns postulados, sobretudo em contacto muito estreito com o cónego Delgado, como atrás referi. Mas lentamente, a partir dos doze anos, acentuaram-se-me dúvidas que, em consciência, se manifestaram muito cedo. Batia-me intimamente com falsos problemas que a mim me pareciam intransponíveis, angustiando-me sem recursos, pois ninguém se mostrava sensível a esta problemática.

Alguns amigos da minha idade com quem desabafava estas dúvidas, achavam natural, os ensinamentos da catequese e consideravam ser pecado discutir a doutrina de Cristo. Só o Raúl, um pouco mais tarde me apoiava neste debate. Mas era necessário para mim resolver estas dúvidas que sistematicamente me assediavam e faziam sofrer. Comecei a faltar à missa aos domingos.
Li por essa altura a vida de Antero de Quental e o «Drama» de Jean Barrois, obras que me fascinaram. De Antero decorei vários sonetos que recitava sem encontrar muita recetividade, exceto no Raul Veríssimo que era de facto muito sensível a esta prática. [Pequeno ensaio sobre Antero de Quental, muito representativo da admiração que Manuel Madeira tinha por Antero.]

Voltando à questão da igreja, a minha falta na missa passou a ser notada pelo padre Delgado que, junto da minha avó insistia para que me repreendessem e obrigassem a regressar ao caminho de Deus. Sem sucesso por que eu estava cada vez mais distante da religião. Até que um dia o cónego me procurou e, frente a frente, com violência nas palavras e no olhar, me pôs perante o seguinte dilema: «ou tu és católico e vais à missa, ou tens que me dizer o que de facto és»; e eu disse-lhe: não sou católico nem religioso. Foi indescritível a sua reação: espumando de raiva, ameaçadoramente, como quem excomunga com um gesto largo, disse: «vai, que és um idiota!»; e nunca mais falámos.

Em 1941/1942, com dezoito anos de idade, abandonei a atividade de empregado no comércio e fui admitido como funcionário público na Tesouraria da Fazenda Pública der Olhão, na qualidade de auxiliar do tesoureiro. Esta mudança de tipo de atividade representou um progresso na minha vida profissional, não só porque melhorou o vencimento, mas também porque foi reduzido o número de horas de trabalho consideravelmente. Em vez de oito ou dez horas diárias, passei a trabalhar durante cinco ou seis, além de que a qualidade do trabalho era mais de acordo com as minhas aptidões.


Manuel Madeira no "T" de Olhão.
Efetivamente, além de menos horas de trabalho, o que me permitia ter mais tempo disponível para me dedicar ao estudo de matérias que me interessavam cada vez mais, também a natureza do trabalho era mais de acordo com a minha disposição interior.

Por outro lado, a minha família, principalmente a minha mãe que, entretanto, tinha conquistado alguma independência profissional, precisava mais da minha ajuda em trabalhos domésticos, suscetíveis da minha participação.

Amigos num passeio ao campo. Em cima à direita, Manuel Farracha. Em baixo, Raúl Veríssimo com o filho, Febo, e Manuel Madeira a ler.
Em resumo, esta mudança de vida a nível profissional, intensificou o meu tempo de leitura e sobretudo possibilitou-me aumentar os contactos com os amigos e alargar o âmbito dessa comunicação, através de passeios em pequenos grupos pelos arredores de Olhão, com leituras em comum e troca de impressões sobre acontecimentos, numa época tão fértil em tragédias e barbaridades.

Vivíamos em plena segunda guerra mundial, e a vizinha Espanha tinha saído, havia pouco, de uma guerra civil e as suas marcas indeléveis e dramáticas estavam vivas e presentes aos olhos dos jovens que despertavam então para a vida, que queriam viver intensamente, em toda a usa plenitude e encontravam-se face a mundo conturbado e insólito, difícil para eles de compreender e muito mais de aceitar.



Grupo de amigos, entre os quais António Ramos Rosa, Marina, M.M.,Josefa, António Cortes (irmão de Marina), em passeio ao “Penedo Grande” em S.Bartolomeu de Messines.
Eram longas e profundas as nossas divagações sobre matérias e acontecimentos cujas notícias e informações nos chegavam muitas vezes clandestinamente, ou deformadas pelos noticiários estatais. Havia um meio de informação ao nosso alcance a que recorríamos quase sistematicamente, que era ouvir a BBC de Londres, num rádio quase clandestino, instalado numa sala recôndita do café Avenida existente num edifício da Av. da República em Olhão, onde hoje funciona um Banco privado - Espírito Santo.

Alguns clientes da confiança do proprietário do café tinham acesso às notícias que, todas as noites à mesma hora podiam ser escutadas, emitidas em português pelo Fernando Pessa.

Joaquim Silvestre, Manuel Farracha, Manuel Madeira, Júlio Fradinho. Vitoriano Rosa e outros amigos.
 Eram notícias da guerra transmitidas pelos ingleses, traduzindo naturalmente os pontos de vista dos aliados, em muitos aspetos opostas às que obtínhamos através dos noticiários nacionais que, mais ou menos veladamente defendiam a propaganda nazi, já que se perfilavam a favor das posições políticas da Alemanha de Hitler, contra as democracias ocidentais e a União Soviética.

 
Pelo menos desde fins dos anos trinta, nomeadamente durante os anos da guerra civil em Espanha acentuaram-se no país, com alguma repercussão no Algarve os movimentos de massas contra o governo de Salazar, a favor da democracia, ainda que esses movimentos não fossem ideologicamente homogéneos notando-se entre eles, sinais de filiações divergentes, porventura impulsionados por quadrantes políticos diversos. De vez em quando corriam boatos denunciando prisões ou mortes de pessoas, efetuadas pela PIDE com a colaboração de forças armadas ou de bufos a soldo de Salazar.

Em cima, da direita para a esquerda, Joaquim Silvestre, avô de Manuel Madeira, Vitoriano Rosa, Manuel Madeira, Raúl Veríssimo, Júlio Fradinho. Em baixo, apenas reconhecemos o filho de Raúl Veríssimo - Febo - e talvez António Morgado ou António Ribeiro Saias, à direita.
O clima social, económico e político em que se vivia gerava uma grande agitação entre as populações, sendo os trabalhadores das fábricas de peixe e os pescadores, os mais atingidos pelas dificuldades económicas em geral, particularmente agravadas nos períodos de crise, acentuadas durante as épocas do «defeso» em que não trabalhavam e, portanto, não tinham salário.

Os jovens das classes mais baixas, a que eu pertencia, não eram indiferentes, com é óbvio, a esta situação e davam sinais de se movimentarem, fosse através de intervenções junto dos sindicatos, dominados pelas autoridades políticas e policiais, fosse diretamente junto do patronato, exigindo melhores salários e melhores condições de trabalho, já que nos respetivos locais de laboração não existiam as mínimas condições de higiene e segurança, sendo os próprios horários de trabalho manipulados à descrição das entidades patronais, praticamente sem qualquer fiscalização.


Em cima, da direita para a esquerda, Joaquim Silvestre, Raúl Veríssimo, Júlio Fradinho, Manuel Madeira. Em baixo, Febo e Raúl Veríssimo.

As pessoas mais velhas lembravam-se das greves efetuadas pelos trabalhadores de Olhão, ao longo dos anos vinte e trinta, com manifestações de muito povo à porta da Câmara Municipal exigindo pão e trabalho, que faltava em grande parte do ano.

As minhas leituras nestes anos que vão de 1942 a 1946 incluíam matéria de cariz sociológico. Pela primeira vez tive acesso a obras de Marx e Engels, com relevância para o manifesto comunista que li sofregamente. De novo a filosofia, só que desta vez a filosofia visava diretamente a prática, com a frutuosa aplicabilidade dos postulados de ordem moral e ética abrangendo não só o conhecimento em si, mas principalmente a ação.

Todas estas obras de filosofia política chegavam-me às mãos por via clandestina e por elas ou juntamente com elas, vinhamnotícias de um movimento de unidade democrática juvenil (o MUD juvenil) que não sendo de todo uma organização política, visava unir a juventude numa luta para instauração da democracia em Portugal.

A primeira reunião no Algarve, para a apresentação do MUD juvenil, realizou-se em Faro em casa de António Ramos Rosa, como anfitrião, com a presença de um delegado vindo de Lisboa, talvez Octávio Pato; de representantes de Vila Real de Sto. António, Maria das Dores Medeiros; de Tavira, Garcia Guerreiro; de Olhão, eu próprio; e ainda do concelho de Faro, Galamba da Rocha, que mais tarde com António Ramos Rosa, Duarte Infante e João de Brito Vargas, pertenceram à distrital de Faro.

Foi a partir deste encontro que se começou a estruturar o movimento que, ao fim de poucos meses estava implantado em todos os concelhos do litoral incluindo Silves.

Aderi de imediato a este movimento e, a princípio individualmente e a seguir em conjunto com outros jovens meus amigos com quem já me reunia antes para tratar de assuntos de carácter desportivo, recreativo e cultural, iniciámos a divulgação de manifestos recebidos de Lisboa por correio ou por mão própria, diretamente da comissão central, presidida por Mário Soares.

Tratava-se, na nossa opinião, de um movimento legal, logo não me preocupava com as implicações desta minha participação a nível da minha atividade profissional, que em nada era afetada pela adesão ao movimento, cuja ação decorria fora das horas de serviço e fora do local de trabalho que era na Tesouraria das Finanças de Olhão.

Constituímos aqui uma comissão concelhia com três membros, que eram eu, Raul Veríssimo e José Lopes de Brito, e simultaneamente em Faro uma comissão distrital de que um de nós era membro, e iniciámos o alargamento do movimento a todo o Algarve, com comissões responsáveis em todas as sedes de concelho, de tal modo que em Março de 1947 foi possível realizar nos arredores de Olhão, mais concretamente no sítio de Bela Mandil, a maior concentração de jovens de todo o Algarve (vindos desde de Vila Real de Sto. António até Lagos) num só local e num só dia durante o regime da ditadura, que quase suscitou o levantamento da população desta então vila, já que em plena manifestação de confraternização, com cerca de mil participantes, cujo programa consistia de refeição em comum num pinhal previamente escolhido para o efeito com a concordância do proprietário, leitura de manifesto, recitação de poesia, discussão de projetos de alargamento do movimento, etc., houve intervenção armada da guarda republicana, com apoio de um pelotão do exército, obrigando, sob a ameaça das armas, à dispersão dos participantes.

Foi indescritível, na altura e ainda hoje, o aspeto desta multidão que se recusou a dispersar no local, desfilando unida pelas estradas circundantes da vila, nela entrando por uma das ruas principais, suscitando a curiosidade e o interesse dos habitantes, que não se tinham deslocado ao local do comício, ou que porventura não sabiam do evento. Mas quando a multidão compacta se aproximava do centro da povoação, sem obedecer às ordens de dispersão emanadas da GNR, esta, em desespero de causa, em face da firmeza dos manifestantes, resolveu abrir fogo usando as suas armas, tendo atingido com um tiro de espingarda a aba do chapéu que estava na cabeça de um participante, felizmente sem consequências mortíferas.

Foi aqui que se resolveu dispersar, indo cada um e todos em grupos para os seus destinos de comboio ou de autocarro, como tinham vindo.

O chapéu andou, até muito tempo depois, por vários locais, atestando a violência do procedimento policial e a galhardia dos manifestantes. A notícia deste acontecimento chegou à Rádio Moscovo que a transmitiu a todo o mundo.

Destacou-se, como organizador principal deste evento, Raúl Veríssimo e com ele colaboraram, além de mim, José Lopes de Brito, Joaquim Carlos Silvestre, que continuou até hoje interessado no estudo e divulgação de problemas de interesse comum escrevendo em jornais e revistas da especialidade, Vitoriano Rosa, que enveredou pelo jornalismo, de que se tornou profissional, notabilizando-se como estudioso e crítico de cinema e interventor brilhante em questões de ordem cultural e política, tendo publicado vários livros sobre cinema e sobre a pide após o vinte cinco de Abril; Manuel Farracha, filho de pais muito dedicados à luta pela liberdade e pela democracia, tendo por isso sido presos várias vezes; ele próprio aderente e participante nas lutas antifascistas; Júlio Fradinho, empenhado nos movimentos de contestação da ditadura, com interesse notório pela cultura, emigrou nos anos cinquenta para a Argentina com a sua família e dai para o Brasil onde reside.

Todos estes amigos foram presos, alguns várias vezes, pela Pide, tendo suportado condições difíceis que afetaram negativamente as suas vidas.

Mas o acontecimento de Bela Mandil, pelo que teve de grandioso e inesperado, constituiu um safanão na firmeza do regime já um tanto abalado interna e externamente pela derrota do nazi-fascismo e, naturalmente pela vitória das democracias.

Poucos dias depois desta manifestação a PIDE iniciou a caça aos organizadores do comício, que eles conheciam localmente ou de que tinham suspeitas.

E, logo a seguir, encontraram-se em Caxias e no Aljube dezenas de jovens, não só do Algarve, mas também de Lisboa e de quase todos os concelhos do País.
Nos primeiros dias de Abril, foram presos em Olhão, José Lopes de Brito e Raul Veríssimo e no dia dezassete fui eu também, tendo acontecido o mesmo com outros amigos, como António Ramos Rosa e Galamba da Rocha em Faro, e Adalberto Alves em Portimão.

Quando cheguei ao forte de Caxias encontrei, na mesma sala onde fui colocado, toda a comissão central, a que presidia ainda nessa altura Mário Soares.

[Manuel Madeira contava uma história muito curiosa decorrida neste período: um dia que a Maria Barroso foi visitar Mário Soares, levou um molhe de cravos que Mário Soares posteriormente distribuiu por todos os presos, quando estes foram almoçar em conjunto ao refeitório prisional. Sucede que os guardas desconfiaram que isto fosse um sinal com significado revolucionário e decidiram encaminhá-los imediatamente e sem almoçar para as respetivas celas. Quem diria que os mesmos cravos seriam 26 anos mais tarde, na revolução de abril, um sinal com significado revolucionário?!]

Na ausência dos três elementos da comissão de Olhão, presos em Caxias, avançaram para o desempenho das atividades em curso, os jovens Joaquim Carlos Silvestre, Vitoriano Rosa, Júlio Fradinho, Manuel Farracha, João Augusto Frederico e Jorge Temudo, que continuaram escrevendo e copiografando um boletim literário e de informação política, «O Jovem», no seguimento de um anterior, «Clamor», da mesma feição. E todo o trabalho prosseguiu regularmente.

Estive quase três meses, preso sem culpa formada, para averiguações, «como se dizia», porque o objetivo fundamental da polícia era saber o relacionamento que existiria com o Partido Comunista, na clandestinidade, enquanto que, a minha posição foi a de considerar que o movimento era legal, que eu não tinha contactos com o Partido Comunista, mas que pretendia que se instaurasse a democracia em Portugal, em vez da ditadura que nos dominava, impedindo o acesso da juventude a condições de vida, políticas e culturais, democráticas e civilizadas. Fui libertado sem ter sido sujeito a julgamento formal e regressei às finanças onde continuei a trabalhar.

Durou, no entanto, pouco tempo esta situação.

Num fim-de-semana de meados de Abril de 1948, desloquei-me a Silves, onde tinha um grupo de amigos com quem mantinha relações de camaradagem, e seguiram comigo Júlio Fradinho, Vitoriano Rosa, Joaquim Silvestre e Ramos Rosa, para em conjunto confraternizarmos. Utilizamos o comboio e, quando desembarcamos na estação de Silves, verificámos que um polícia, que lá estava, nos seguia [Manuel Madeira contou-me que este polícia o conhecia como "suspeito" oposicionista, porque tinha trabalhado recentemente em Olhão]. Tomámos um autocarro da carreira para o centro da cidade, onde nos encontraríamos com um ou alguns dos amigos, para em seguida organizarmos um passeio com piquenique; mas aí chegados deparámos com o mesmo polícia, como se estivesse à nossa espera, e que de facto nos seguiu sempre a curta distância, pelo que, e antes que o encontro com os amigos se verificasse, resolvemos dispersar-nos para o despistar, porque compreendemos que o polícia não nos abandonaria e seguir-nos-ia para toda a parte, e assim fizemos.

Fiquei eu sozinho. Mas o polícia «colou-se» a mim e, em dada altura, deu-me ordem de prisão e obrigou-me a ir com ele para o posto da polícia, onde comecei a ser interrogado pelo chefe, que queria saber tudo a respeito da minha presença ali, o que ia fazer, com quem me ia encontrar, quem eram os outros que tinham vindo comigo, para onde tinham ido, etc., etc.; pois não sairia da prisão enquanto não confessasse, que me transferiria para o calabouço da PIDE, onde iria ser torturado até confessar tudo.

Conto, a propósito deste interrogatório, a cena pitoresca que se segue, que na altura não pude apreciar devidamente: em dado momento do interrogatório apercebi-me de que na sala ao lado estavam os amigos que se tinham separado de mim para despistar o polícia, mas que, depois, ao saberem que eu estava detido decidiram dirigir-se ao Posto para inquirirem do que se tratava, pois eram meus amigos e estavam comigo solidários. E ficaram todos também presos. Ouviram, entretanto, o meu diálogo com o chefe da polícia, que passo a descrever, e acabaram por sair em liberdade, exceto o Fradinho, que ficou preso comigo por também lhe ter sido encontrado no bolso selos iguais aos meus: quanto a mim fui sujeito a uma busca na carteira e nos bolsos e o polícia encontrou numa das algibeiras selos ou senhas correspondentes a valores monetário de comparticipação voluntária para o MUD. Eram pequenos papéis impressos, retangulares, com cores figuras alusivas a atividades culturais ou económicas no formato de selos de correio. Sito estes pequenos pormenores para realçar a importância psicopatológica que eles tinham para o regime e a quase loucura dos procedimentos.

Um dos selos tinha numa das faces a imagem reduzida de um livro aberto, onde se reconheciam as cinco letras do alfabeto; outro tinha uma figura que representava uma roda dentada, e o seguinte, que era o último dos três que me encontraram no bolso, representava uma espiga de trigo e uma enxada.

O chefe da polícia queria saber, e perguntava-me insistentemente, o que representavam as figuras acima descritas e eu ia dizendo e repetindo: «esta representa um livro aberto; este representa uma espiga; e este uma roda dentada». E ele, talvez pela décima vez e já exasperado: «mas o que é que isso quer dizer?»; e eu, pela décima primeira, mas ainda tentando estar calmo, respondia: «este quer dizer um livro aberto, aquele, uma espiga e aqueloutro uma roda dentada!». Até que o homem, de cabeça perdida «ou fingindo», me agrediu na face, dizendo: «você está abusando da sua condição de preso»! (como se isso fosse um privilégio, pensei eu) e acabou o interrogatório e fui entregue à PIDE de Faro, para onde me levaram com o Fradinho, que me contou o que tinham ouvido.



24 de Abril de 1948: um grupo de amigos que esperaram Manuel Madeira e Júlio Fradinho na Estação de Comboios de Olhão, após a sua libertação da prisão por motivos políticos, ocorrida em Silves na semana anterior. Vêem-se da direita para a esquerda, em cima, António Ramos Rosa (1º), António Ribeiro Saias (2º), Manuel Madeira (3º), Júlio Fradinho (4º, ao centro); Manuel Ramos (5º), António Morgado (6º, em pé mas inclinado), Joaquim do Carmo Brito (7º), Manuel Edviges (8º e último); em baixo, Vitoriano Rosa (1º), Dinis Martins da Silva (2º), Joaquim Silvestre (3º e último).

Afinal o que o chefe queria ouvir de mim, era que a espiga representava os agricultores ou o campesinato já que de uma luta de classes se tratava; o livro representava os estudantes ou a cultura, e a roda dentada era a indústria ou o proletariado, ou seja, ele queria ouvir a linguagem que era usada por ou atribuída, ao Partido Comunista, com o qual pretendiam confundir o movimento, com o propósito visível de o considerarem ilegal à face da lei.

Libertaram-nos, desta vez, poucos dias depois, após ter assinado um auto em que me perguntavam se eu sabia o motivo por que tinha sido preso, a que eu respondi que não e eles concluíram: «que por precaução, pois nesse dia era esperado um desembarque de russos na costa do Algarve, e eu era suspeito de ser um espião» …

Apresentei-me no local de trabalho no dia seguinte ao da saída da prisão, mas poucas horas depois fui chamado ao Tesoureiro, que era o meu chefe e me mostrou um telegrama recebido «agora» do Diretor Geral da Fazenda Pública, demitindo-me das funções que desempenhava sem direito a qualquer recurso ou alternativa que não fosse a rua.

Entre as acusações que pesavam sobre mim e de que o Tesoureiro tinha conhecimento, por lhe ter sido transmitido por um membro local da «união nacional» (partido do governo), era a de que eu tinha sido visto muitas vezes a conversar com os pescadores e, além disso, usou ou usava uma rosa na lapela do casaco (só não constava a cor).

A minha situação económica ficou muito abalada com este despedimento. De um momento para o outro fiquei sem emprego e sem dinheiro e as condições de vida em minha casa agravavam-se; minha mãe adoecera e, com poucos recursos, andávamos eu e ele muito preocupados. O único irmão que eu tinha morrera recentemente, deixando um rastro de luto profundamente confrangedor.

Sem qualquer outra saída possível para esta calamitosa situação e graças a algumas manifestações de solidariedade de amigos, decidi entrar numa atividade de vendedor de conservas de peixe no mercado interno, através de armazenistas de mercearias e dos próprios retalhistas que visitava, no interior do Algarve e no Baixo Alentejo com fornecimentos diretos pelas próprias fábricas, de Olhão e Vila Real de Sto. António, que eu conhecia. Paralelamente visitava lagares de azeite e vendia equipamentos modernos para a extração e armazenamento do produto, fornecido por uma oficina de serralharia de cujo proprietário eu era amigo. Mais tarde fui admitido como escriturário contabilista desta empresa metalúrgica e fixei residência em Vila Real de Sto. António, onde estava instalada.
Continuei durante estes tempos a manter contactos regulares de carácter cultural e político no âmbito das atividades de luta pela democracia, contra as prepotências do regime fascista em que vivíamos, tomando parte na organização da manifestação, quando da transladação dos restos mortais de Teixeira Gomes, do Bougie, na Argélia, para Portimão; e participei com Almeida Carrapato e outros na campanha da candidatura de Norton de Matos à presidência da República, no cine teatro de Faro, tendo lido nessa altura um discurso que preparei para o efeito.

De um ponto vista pessoal e familiar, foram tempos muito difíceis tanto mais que se agravava a doença de minha mãe, que morreu tuberculosa com quarenta e cinco anos de idade.

Em sete de Abril de 1951 fui novamente preso pela PIDE, em Olhão, transportado para o Aljube, depois para Caxias, onde permaneci durante um período de três meses. Todos os interrogatórios decorreram à volta do meu suposto conhecimento das atividades do Partido Comunista e só secundariamente em torno do MUD e MUD juvenil.

Uma vez encerrado nas cadeias do Aljube ou de Caxias onde regularmente permanecia, desde que estivesse disponível e em salas comuns, (depois dos períodos sempre penosos dos interrogatórios de total isolamento nas celas individuais de mais ou menos de 2m por 1m, incomunicável sem direito a ter livros e/ou correspondência com o exterior), dedicava a quase totalidade do tempo à continuação da minha leitura regular, desde que se tratasse de livros autorizados a entrar nas prisões. Também aproveitava muitas vezes o tempo para conversar com os presos que estivessem nas mesmas condições do que eu, disponíveis para a comunicação.

Quando regressei da prisão, desta vez com residência fixa e obrigado a comunicar à polícia todas as deslocações para fora da morada, reinstalei-me em Vila Real de Sto. António a trabalhar na mesma empresa de onde tinha saído quando fui preso.

Acentuava-se, a nível internacional, o descrédito do regime, sem condições políticas internas para entrar nas Nações Unidas, de criação recente, impondo regras democráticas para a admissão dos Países e Portugal não tinha essas condições políticas e sociais. Por outro lado, internamente aumentava o descontentamento das populações, com grande agitação social dos trabalhadores e dos estudantes, que reivindicavam melhores condições de vida e de estudo.

O fim recente da segunda guerra mundial, com a vitória das Democracias, imprimia um novo surto de esperança às lutas, pelo fim da ditadura, mas paralelamente crescia o desespero dos guardiães do sistema político português, a braços com o aumento do descontentamento e da movimentação das classes mais exploradas. Intensificava-se a luta de massas e a repressão por parte do governo.

Retomei o projeto de casamento de acordo com o pré-estabelecido, prosseguindo a tarefa de fazer algumas economias para o efeito, incluindo o propósito de alugar casa compatível. A minha namorada, que foi depois a minha mulher, visitava-me frequentemente e, agora também com ela, reforcei o nosso relacionamento com os amigos da localidade, continuando a reunir-me com outros a nível do Algarve, como fazia antes, no sentido de manter tanto quanto possível, ou eventualmente aumentar a quantidade e a qualidade dos oposicionistas.

Entre as atividades na ordem do dia, figurava então a colheita de assinaturas para um «abaixo-assinado» em larga escala, exigindo a libertação de um grupo de presos políticos em situação difícil, entre os quais Francisco Martins Rodrigues, sofrendo, todos eles, maus-tratos inqualificáveis na prisão.

Pessoalmente eu tinha assumido compromissos de casamento, dispunha-me a arranjar casa precisamente quando fui detido ao entrar no autocarro que me levaria a Olhão, aonde ia visitar o que restava da minha família.

Aconteceu, que um amigo a quem eu dei uma lista para recolha de assinaturas de apoio a estes presos, foi detido pela polícia e indicou o meu nome como tendo sido o autor da iniciativa. Não tardei a ser de novo preso e enviado para Lisboa, em quinze de Fevereiro de 1952.

Como das outras vezes, recusei-me a prestar declarações que de algum modo comprometessem algum dos meus amigos, mas, neste caso, o que eles queriam era que eu confirmasse que tinha entregado a lista a «fulano» e indicavam de facto o nome da pessoa a quem eu tinha entregue a lista para o abaixo-assinado. Esta minha atitude visava evitar o possível alargamento do interrogatório a outras possíveis áreas das minhas atividades, sabendo eu que quando o preso começava a confirmar o que eles sabiam, nunca mais acabavam as perguntas. Assim, suportei os embates violentos, de pé com agressões físicas, murros e pontapés até que ao fim de muitas horas, enfraquecido, caí no chão e fui transportado para «o segredo», onde durante a noite ou o dia, de que perdi a noção, sofri uma hemorragia que se repetiu e era afinal uma hemoptise, confirmada pelo médico da prisão, que fora chamado de urgência.

Apesar dos maus-tratos infligidos aos presos, que eles aplicavam com prazer sádico, serem motivo de mofa e divertimento entre eles, quando se tratava de excessos, que podiam por em risco a vida dos detidos, recorriam à presença do médico que muitas vezes se comportava como carcereiro, mas queriam evitar que as notícias, através dos familiares dos presos, constassem no exterior, agravando na opinião pública a imagem de facínoras que eles já tinham, mas que ultimamente se esforçavam por ocultar, sobretudo porque o regime, tanto interna como externamente, estava perdendo todo o crédito que eles tentavam ainda salvar.

Levaram-me, portanto, imediatamente para a enfermaria onde fiquei na cama até praticamente à hora de sair, três meses depois. Durante este período não sofri qualquer interrogatório, mas uns dias antes de me soltarem, submeteram-me a uma sessão de perguntas, aparentemente informais, a que mais uma vez recusei responder, pelo que dias depois me apresentaram um auto de libertação, que assinei.

Na véspera de me libertarem, encontrando-me na enfermaria desde 17 de Março, fizeram-me mais um interrogatório:

«aos dezoito dias do mês de Abril do ano de 1952…compareceu o nacional M.M.,…a fim de dar continuação ao seu Auto de Perguntas. À matéria dos Autos, respondeu: que confirma as suas anteriores declarações,…. E sendo-lhe dado a conhecer que se encontra referenciado nesta polícia, como tendo feito parte da Comissão Concelhia e Distrital do Movimento de Unidade Democrática Juvenil, no Algarve e ultimamente pertencer à Comissão Regional do Sotavento, do citado Movimento, indicando quais as suas actividades e localidades que “controlava”, respondeu: que, não tem actualmente quaisquer actividades políticas…. E sendo-lhe feito sentir que a sua relutância em confessar as suas actividades conspirativas, mostra que…está cumprindo a palavra de “ordem”do…partido [PCP], que obriga os seus “membros” a não prestarem à polícia quaisquer declarações de natureza partidária, respondeu: que repudia a pergunta, por não ser “membro” do Partido Comunista Português.
E sendo-lhe novamente demonstrado que não se justifica nem se compreende a razão da sua negativa sistemática ao esclarecimento das suas actividades e responsabilidades, é pela última vez instado a que modifique essa atitude e se disponha a esclarecer concretamente as suas responsabilidades e, assim, respondeu: que igualmente repudia a pergunta que lhe é formulada. E mais não respondeu».
«Para os fins que V Ex.ª julgar por mais convenientes, cumpre-me informar que pelos últimos interrogatórios feitos ao arguido Manuel Rodrigues Madeira, tem-se verificado que o mesmo se encontra em precário estado de saúde, apesar de assistência médica contínua, pelo que não se pode prosseguir com as investigações. Lisboa, 19 de Abril de 1952».

                                                                                                                                                  
Foi o tempo de prisão mais difícil de suportar em toda a minha vida, como prisioneiro. Ou por que a polícia tivesse informações mais concretas, supostamente seguras e penalizantes das minhas atividades, ou por que suspeitasse de que a frequência com que eu era detido significava, como parecia lógico, maior envolvimento e responsabilidade nas ações; a verdade é que fui submetido intensamente à panóplia de atrocidades físicas e morais a que eles recorriam, sempre que julgassem ser possível obter das vítimas, informações ou dados importantes para as suas investigações.

Ao mesmo tempo eu estava moralmente muito afetado pela morte da minha mãe e a própria saúde física estava combalida.

Saí da enfermaria da prisão em muito mau estado de saúde e não tinha, na altura, as condições mínimas de alojamento e tratamento, pois não tinha família, praticamente e, segundo o médico particular, amigo que consultei em Lisboa e me assistiu primorosamente ao longo de vários meses, eu precisava de me manter em repouso com assistência médica e medicamentosa, com uma alimentação adequada a um doente pré tuberculoso.

Valeu-me nesta emergência, o meu amigo, o Poeta António Ramos Rosa de Faro, que vivia em Lisboa e me ofereceu parte do seu quarto, numa residencial no Largo de Sta. Bárbara, onde me instalei confortavelmente, beneficiando dos cuidados do anfitrião, da assistência médica e enfermagem de amigos comuns, do repouso necessário à recuperação da saúde, muito afetada durante a permanência no Aljube.

Foi, por outro lado, extremamente interessante, sob o ponto de vista cultural, esta convalescença, em virtude de, nessa residencial, coexistirem, em regime exclusivo de refeições diárias, outros intelectuais, como João Rui de Sousa e Raul de Carvalho que, em conjunto com o Ramos Rosa, formavam um grupo interessado na divulgação da poesia, eles próprios poetas, tendo Ramos Rosa fundado e dirigido, nesse ocasião, a revista «Árvore», de arte, literatura e crítica, com um papel relevante no panorama português nos anos cinquenta.

Foi para mim um convívio inesquecível, com discussões muito acesas e debates sobre variados aspetos da cultura, em que avultavam intervenções acaloradas nos domínios da Filosofia, Arte em geral e Poesia, que me ajudaram a aprofundar matérias que constituíam, e ainda constituem, valores inestimáveis da minha própria formação; tendo sido, na altura, convidado pelo Ramos Rosa, para colaborar nas revistas que então publicavam, nomeadamente a «Árvore» e posteriormente, «Cadernos do Meio-dia», de Faro, em que participei.

Como o meu estado de saúde melhorava consideravelmente, resolvi deixar a residencial onde estava e partir para o Algarve a convite da família da minha namorada, em cuja casa fui acolhido, em S. Bartolomeu de Messines, prosseguindo, todavia, os tratamentos que me tinham sido prescritos pelo médico em Lisboa. Agora, em contacto mais direto com a natureza, de clima privilegiado, com o ar puro da serra, a beleza da paisagem e o convívio com familiares e amigos, foi uma recuperação maravilhosa de que guardo felizes recordações.

Continuei a interessar-me pelos problemas do MUD juvenil e a participar em reuniões, principalmente com amigos de Messines, de Silves e de Portimão, que frequentemente me visitavam. Também de Lisboa, alguns se deslocaram para me contactar e dar notícias do Movimento.

Até que, ao cabo de cerca de três meses, regressei a Lisboa, desta vez com o propósito de me empregar, já que no Algarve tal não era possível, devido não só à grise que se atravessava como também às reservas que muitos empregadores punham em relação a mim, devido às perseguições políticas a que estaria sujeito; enquanto, em Lisboa, seria mais fácil arranjar emprego.

De facto, assim foi: empreguei-me na cooperativa dos trabalhadores de Portugal, com sede nas Escadinhas do Duque, perto do Rossio.

E aí conheci pessoalmente figuras das artes e das letras que já admirava, como Ferreira de Castro e Fernando Lopes Graça e convivi, mais de perto com amigos que já vinham do Algarve, como o José Manuel Tengarrinha e outros de Lisboa, como o António Borges Coelho, Carlos Aboim Inglês e Antunes da Silva.

Com eles, passei a encontrar-me sistematicamente quase sempre nos cafés do Rossio, alternadamente no «Portugal» e no «Gelo», onde se reuniam escritores e artistas de várias tendências estéticas e ideológicas, e onde a PIDE também aparecia, embora sabendo, ou parecendo saber, que nos cafés, nesse tempo de lutas e perseguições, não se faziam comícios ou reuniões conspirativas. Falava-se sim e muito de trabalhos literários, correntes ideológicas de vários matizes e proveniências, fervilhantes de agitação intelectual, que, o fim da «guerra quente» e o princípio da «guerra-fria» propiciava. 

Em princípios de 1953 consegui um melhor emprego, concorrendo a uma empresa de organização de contabilidade, onde fui admitido como escriturário e, a breve trecho, promovido a chefe de escritório. Trabalhava na Venda Nova, arredores de Lisboa, para onde fui residir e, em Outubro casei-me. Tinha finalmente casa perto do local de trabalho e, em conjunto com a minha mulher, dispúnhamos de condições para dedicar para nos dedicar às lutas pelas transformações políticas e sociais por que ansiávamos.

O meu tempo estava praticamente tomado pelo trabalho na empresa, mas a Marina estava mais disponível para ajudar os amigos; oferecemos a nossa residência para apoio a amigos com atividades clandestinas, e para reuniões partidárias. A condição «conspirativa» era a de que eu me privasse de atividades ou atitudes suscetíveis de «dar nas vistas», chamando a atenção da polícia ou dos «bufos», que depois da minha última prisão, me podiam perseguir.

          Manuel Madeira ao fundo, sentado; à direita da foto, de branco, o seu amigo Henrique Madeira

O meu contacto com a Organização Política (Partido Comunista), para efeitos de execução de tarefas, marcação de datas de reunião, etc., era feito através de um amigo credenciado para esse fim, que me visitava e punha ao corrente da situação interna do Movimento, prisões efetuadas e projetos de lutas.

As reuniões efetuadas em minha casa, eram as do topo do Partido, nomeadamente do Comité Central, e obrigavam a muita vigilância, antes, durante e depois de realizadas, «não fosse o diabo tecê-las».

Foi decidido, entre mim e a Organização do Partido, para segurança de todos, que cessassem as minhas atividades políticas. Continuei, no entanto, a encontrar-me com os amigos fora do perigo de sermos detidos, ou pelo menos tentando evitá-lo.

E de facto, ao fim de algum tempo, cerca de cinco anos, foi necessário mudar de lugar, por suspeita, justificada, de que a polícia passara a rondar a minha porta.

No escritório da empresa, onde trabalhava com uma equipa de cinco pessoas, o ambiente era ótimo em eficiência de serviço e de camaradagem.


Entre nós trabalhava um jovem, recentemente admitido que tinha saído do liceu, em Lisboa, para ajudar a família. Embora muito novo na idade, revelava aptidões que excediam as exigidas para o desempenho da função. Estabeleceu-se, entre nós, uma esplêndida relação de trabalho e de convívio, tanto mais que ele manifestava também muito interesse pela literatura, principalmente pela poesia, de que passámos a falar, dentro e fora das horas de serviço.

Um dia, o patrão surpreendeu-nos num desses momentos de comunicação, de que não gostou, responsabilizou-me pelo facto e despediu-me. Depois, no dia seguinte, arrependeu-se, pediu-me para ficar, prometendo mesmo aumentar o meu ordenado, mas eu, sentindo-me justificadamente ofendido, não aceitei; procurei trabalho noutro lugar, respondi a anúncios, fiz provas de competência e fui rapidamente admitido noutra empresa, por sinal de maior projeção no mercado de trabalho e na indústria em geral, era uma multinacional.



O conjunto de colegas, José Henrique Madeira, José Soeiro, José Monteiro Pote, numa atitude de protesto e de solidariedade comigo, resolveram também abandonar o trabalho, foi uma manifestação de «unidade fraterna» no trabalho! Só mais tarde soube deste evento, que me comoveu.

Continuei a manter relações de amizade com todos, entre os quais destaco Henrique Madeira, pela frequência dos contactos, hoje escritor, dramaturgo e professor universitário.

Entretanto (em 1958) nascera a minha filha e, em nossa casa as condições deixaram de satisfazer as exigências de segurança absoluta. De facto, a PIDE «descobriu» o meu local de trabalho e residência e passou a convocar-me para apresentação periódica na sua sede, na Rua António Maria Cardoso.


Henrique Madeira, num reencontro com Manuel Madeira a 16 de Agosto de 2005, no Parque das Nações, recordou a longa amizade, desde os seus 15 anos, quando entrou numa empresa em que M. M. trabalhava e conta [Anexo - texto de Henrique Madeira].

Fui admitido em 1958 no grupo de empresas Fima/Lever/Iglo associadas da multinacional Unilever, com sede na Holanda e fábricas em quase todo o mundo, como ainda hoje. O exercício da minha função dependia diretamente do diretor técnico da fábrica e tinha uma «linha ponteada» em termos de organigrama, o que significava dependência secundária do administrador local.

O meu trabalho estava sujeito também à supervisão periódica de um coordenador internacional que respondia diretamente à administração central, em Roterdão. Depois de um período de treino, que incluiu um curso da língua inglesa, que era a oficialmente praticada em todo o grupo de companhias, iniciei a minha atividade local, como controlador de stocks de matérias-primas e de produto final, função específica que dantes não existia.

Manuel Madeira com a sua filha Natércia

Um dia, em circunstâncias difíceis de gerir, infringi uma regra estabelecida e fui chamado ao administrador local, com a ameaça de poder ser despedido. Ele ouviu as minhas explicações e, no final, disse: «bem, você de facto transgrediu o que estava por mim determinado, mas eu, no seu lugar, em face das mesmas circunstâncias, teria feito o mesmo». Por estranho que possa parecer, este incidente teve um efeito positivo na apreciação de mérito e contribuiu para o progresso e desenvolvimento da minha carreira profissional, no âmbito da empresa.

Em 1959 foi comprada em Portugal, no centro de Lisboa, uma fábrica para produzir gelados, cujo método de fabrico, até então era artesanal, e o objetivo era a produção industrial.

Fui indigitado para dirigir essa produção e durante quatro anos, a produção decorreu ainda em moldes artesanais; enquanto simultaneamente decorriam as operações de compra de terreno, em Santa Iria de Azóia e licenciamento da obra para a construção da nova fábrica.

Entretanto estagiei em vários países da Europa, onde havia fábricas modernas do grupo; comecei pela Alemanha, depois Inglaterra, Itália, Dinamarca, Holanda, Bélgica e Espanha. Quando regressei, em 1964, iniciou-se a produção industrial. Com cerca de trinta trabalhadores.

Ao fim de vinte anos de atividade, quando saí da companhia para me reformar, havia mais de seiscentos empregados desempenhando funções.

Foi um percurso longo e atribulado, uma experiência cheia de acontecimentos originais, para mim fértil em aquisição de conhecimentos, alguns para mim, imprevisíveis. Num dado momento, tive que enfrentar, perante mim mesmo, o problema da falta de diplomas que certificassem as minhas aptidões, para o desempenho de uma função que me obrigava a dirigir pessoal com formação académica certificada superior à minha, pois permaneci autodidata até ao fim ou «self-made man», como era internamente considerado; tendo o meu cargo, desde a admissão até ao controlo do desempenho da função, uma dezena de pessoas mais classificadas.

Observava, um tanto surpreendido, que os meus superiores hierárquicos, subestimavam esta particularidade em relação a mim, e algumas vezes me tranquilizavam, depois naturalmente de me terem submetido a várias provas a que eu, talvez ignorando, era sujeito.

No decorrer da minha atividade profissional, como responsável pelo funcionamento do Laboratório de análises e desenvolvimento de novos produtos e tecnologias, foi admitido para este sector da fábrica, um funcionário com habilitações académicas de nível superior, compatíveis com a natureza do seu desempenho. Este acontecimento coincidiu com o período revolucionário de 25 de Abril de 1974 e, sabendo-se do meu passado de intervenção política e das minhas ideias democráticas, o funcionário em causa aproximou-se de mim, fora das horas de trabalho, manifestando o seu interesse pela democracia, através de livros que partilhava comigo e de atitudes supostamente revolucionárias, que em dada altura envolviam outros trabalhadores. Havendo na fábrica, no referido período revolucionário várias correntes de opinião dominadas por diferentes partidos políticos, alguns formados na ocasião, foi decidido pela direção deixar um espaço em local determinado das instalações fabris para afixação da propaganda política, em geral.

Ora, um dia, de manhã, ao entrar no meu gabinete de trabalho, verifiquei, com espanto, que todas as paredes interiores, estavam cobertas de cartazes de uma única corrente política. Chamei imediatamente a pessoa que se identificava com as referidas ideias expressas nessa propaganda e intimei-a a retirar todos os cartazes, deixando as paredes limpas, o que de facto aconteceu. Mas, a partir dessa data, comecei a sentir à minha volta, uma certa hostilidade subjetiva, principalmente da parte da pessoa que, inicialmente, se dizia minha amiga e correligionária. Soube, entretanto, que este colaborador tinha um familiar seu muito bem relacionado com a administração central da empresa, o que lhe daria certamente, como parece lógico, alguma “força” para continuar mantendo sobre mim, atitudes de pressão que eu de facto sentia agravar-se ao longo do tempo, chegando a assumir aspetos de ameaça concorrencial…. Foi o único caso de quase conflito suportado ao longo de 50 anos. O empregado em causa foi obrigado a sair da Companhia.

Abomino contar estórias de pescadores e caçadores, que quando chegam a velhos, foram sempre os melhores e nunca levaram porrada de ninguém. A este respeito identifico-me com o Álvaro de Campos em quem todos bateram.

Mas não posso deixar de referir o que sucedeu no último «curso de atualização tecnológica» em que participei, em Londres em 1980.

Na prova final, o grupo de que faziam parte trinta pessoas, foi subdividido em frações de cinco elementos que apresentariam o resultado prático e o grau de aproveitamento durante o curso. Cada um era representante técnico da fábrica da Unilever existente e assim estavam presentes indivíduos da Commonwealth, dos E.U.A., do Japão, Brasil e da Europa e entre eles.

As pessoas eram escolhidas, tendo em conta o conhecimento da língua inglesa, a expressividade e o «know-how» para representar o grupo no exame final.

Contra todas as minhas expectativas e até contra o meu mais íntimo desejo, fui escolhido.

É certo que outros saberiam melhor falar inglês, língua originária do seu próprio país, mas faltar-lhes-ia conhecimentos específicos da matéria ou vice-versa. Feitas as opções, fiquei.


Manuel Madeira com os seus colegas na formação da Unilever em Londres é o 3º a contar da direita, na 2ª fila.

O Diretor do curso era alemão, dois assistentes eram ingleses, e nestas coisas, quer se goste ou não, a subjetividade também conta e a tendência é para preferir os países de maior notoriedade e Portugal era dos mais pequenos e de mais recente e original participação.

O teste consistia na apresentação de um produto de gama comum a todos, e distinguir-se-ia pela qualidade específica, aspeto, composição, propriedades organoléticas, tecnologia, método de produção e custo final.

A apreciação era coletiva e o método de avaliação consistia no chamado «blind test» (que consiste em apresentar, por exemplo, em cada amostra de três, dois exemplares falsos e um verdadeiro, aparentemente iguais, mas de sabores e outras características intrínsecas diferentes).

Para terminar esta já longa efabulação, Portugal apresentou o produto preferido por todos os participantes.

Preteri na descrição destes eventos detalhes menos relevantes, porventura mais significativos, ou descrições minuciosas de maior impacto emocional, mas talvez de menor objetividade. Coloquei-me tanto quanto possível na posição de quem observa a realidade de um ponto de vista distante, sabendo embora que ko «eu» de cada um está sempre presente e ipso facto altera a imagem do real, que ao certo escapa a todas as tentativas de o reproduzir com exatidão absoluta.

[Anexo com texto do colega de trabalho José Pedro Mendonça]

[Anexo com artigo saído na revista internacional da Unilever]

Por outro lado, gostaria de me referir nesta breve” história de vida”, a uma atividade literária que tenho desenvolvido desde a adolescência até à velhice, em que ainda continuo laborando, embora tenha publicado relativamente pouco destas produções literárias. No entanto venho dando à estampa, pelo menos desde 1949, em jornais e revistas, casualmente em livro, poemas, alguns bem aceites em publicações da especialidade, como a “Vértice” de Coimbra (de que junto exemplares, alguns cortados pela censura). Também apresento fotocópia de outros já publicados, e estou coligindo nesta ocasião, vários inéditos, para reunir em um ou dois volumes a sair em breve.

Eles refletem também aspetos porventura importantes da minha vida, possivelmente frustrada devido a contingências desfavoráveis, mas para mim não menos significativos, já que fazem parte de um acervo de vivências emocionais e objetivas, que constituem toda a minha experiência de vida.

A partir de 1964, a minha atividade profissional, desenvolve-se e intensifica-se, com a introdução de novas tecnologias, modernização de processos de fabrico de novos produtos, visitas ao estrangeiro para atualização de conhecimentos; mudança de residência, da Amadora para a linha de Cascais, fixando-nos em S. Domingos de Rana, depois em Carcavelos, onde permanecemos até 1992.

Até ao 25 de Abril de 1974, as minhas atividades políticas foram condicionadas pela necessidade de tentar evitar novas prisões, por motivos de saúde pessoal, que fora gravemente afetada pela última prisão; por razões de segurança profissional e por motivos propriamente políticos, evitando pôr em risco a segurança de amigos com quem continuara a manter contactos regulares.

Continuei colaborando literariamente na revista «Vértice», de Coimbra, e em publicações periódicas locais; fui cofundador de uma revista de literatura, poesia, ensaio e crítica, e continuei escrevendo e lendo regularmente. A evolução da situação política internacional e nacional motivava o meu interesse por elas, sabendo que tudo se reflete nas condições de vida das populações, dando-nos indicações para previsões de futuros desenvolvimentos, através de projeções teóricas.

Manuel Madeira com a mulher, Marina, e a filha, Natércia, em S. Domingos de Rana


Em Portugal, deteriorava-se a situação social e política, com a continuação agravada das guerras coloniais, com o envio crescente de tropas e as notícias frequentes de mortos nas frentes e no interior dos territórios atingidos pelas guerrilhas. Agravava-se também o poder de compra das populações, sucediam-se as greves dos trabalhadores nas fábricas e outros locais de trabalho. o regime político dava sinais de desagregação. Salazar caíra da cadeira, Marcelo Caetano prosseguia, com ligeira oscilação, o rigor bélico e repressivo do regime. A nossa filha continuava com êxito os seus estudos universitários. Devido à sua avançada idade e faltas de saúde, os meus sogros vieram para a nossa casa, para viverem connosco, o que aconteceu até ao fim das suas vidas. Minha mulher suportava uma maior carga de trabalho e de preocupações.

Manuel Madeira na Ilha do Farol, onde na época o seu amigo Raúl Veríssimo tinha uma casa.

O meu convívio com amigos, nomeadamente, Raúl Veríssimo, Ramos Rosa, Antunes da Silva, Primavera Lourenço [Anexo com texto sobre Manuel Madeira], José Mendonça, e outros acentuou-se sempre ao longo destes anos.

Os temas dominantes nesses encontros, eram a política em geral, a literatura que todos admiravam e alguns, como o Ramos Rosa e Antunes da Silva praticavam no romance e na poesia, que eu continuava escrevendo, sempre ameaçado pela Polícia e pela Censura.

Passávamos, no Verão, férias no Algarve, entre Messines, Ilha do Farol, em Olhão, e Armação de Pêra, onde, a partir de 1973 passámos a ter casa própria.

Durante esse período, era o regresso às raízes familiares e geográficas, com o encanto próprio de quem revive, em contacto real com o ambiente social e paisagístico, as emoções sentidas desde os primeiros encontros com o mundo. São ainda hoje inesquecíveis esses momentos, para sempre gravados na memória.

A leitura dos mais diversos livros, em que avultavam os géneros dominantes desde sempre, a poesia, o romance, os ensaios, a sociologia, a ciência, era uma companhia sempre indispensável. Preocupavam-me sobretudo os acontecimentos locais ou distantes relacionados com a política interna, os atritos provocados pela existência da «guerra-fria», a eminência possível de um novo conflito internacional. Através de contactos com amigos ou colegas de trabalho no estrangeiro, tomava conhecimento dos problemas vividos nos países dominados pela União Soviética, a deterioração das relações entre eles, as dificuldades económicas e sociais que também tendiam a agravar-se, com prisões, censura, agressões mesmo. Entre mim e o meu amigo Raúl Veríssimo surgiram atritos frequentes quanto à interpretação do evoluir da História, a partir de meados do século XX. Um dia zangámo-nos mesmo, juntos das nossas famílias, aquando das invasões de alguns países do Leste da Europa pelas tropas da URSS, que eu verberava e ele aceitava plenamente. Acabámos, ao fim de pouco tempo, talvez meses, por nos reencontrarmos e prosseguir a nossa amizade.

Em 1973, com a liquidação da «Revolução Chilena» e a morte de Allende, sofri emocional e intelectualmente um golpe muito violento. Alimentara a esperança de ver instaurado num país latino-americano um regime socialista, justificando com êxito as lutas populares e as aspirações à mudança para um sistema político restaurador da esperança pela vida num mundo melhor. Foi com pena e sofrimento que assisti à derrocada de ideias maravilhosas e atitudes humanas de grande dignidade. A breve trecho, a morte de Pablo Neruda, de quem era e sou admirador profundo e leitor assíduo, a ponto de ainda recentemente, no centenário do seu nascimento lhe ter dedicado um poema, publicado em livro muito atual, foi um acontecimento infausto, de triste memória para mim.

Cerca de um mês antes do 25 de Abril, assisti eu e a minha família, a um concerto musical no Coliseu dos Recreios em Lisboa, com intervenção especial do Zeca Afonso, cantando «Grândola Vila Morena», com a casa cheia de espectadores, mas onde era visível a presença esmagadora da PIDE. A dada altura do concerto, foi proibida a continuação da música do Zeca Afonso. Tivemos nessa altura a sensação de que a queda do regime estava eminente, até porque, também perto de um mês antes, tinha sido desmobilizada uma tentativa de golpe de Estado, detida uma coluna militar perto da Mealhada, que vinha do Norte, com intenção de derrubar o Governo. Foi abortada esta tentativa, mas pressentia-se já no ar a aproximação do fim do fascismo português.

No período de tempo decorrido entre o 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975, o ambiente de trabalho na fábrica provocado pelos trabalhadores na sua luta por melhores condições de vida, com reuniões frequentes entre as suas Comissões e a Administração da Empresa, foi bastante turbulento, não só pelas paragens repetidas da produção, mas também por lutas de desentendimento político entre correntes de opinião diferentes entre eles. Algumas vezes tive que intervir pessoalmente para os apaziguar. Estavam em geral divididos quanto aos métodos de prosseguir as lutas e havia até uma parte deles que preconizava a ocupação das instalações e dos serviços com intenção de «nacionalizar» a Empresa. Como sabiam que eu tinha ideias favoráveis à «socialização» das riquezas, pelas quais tinha estado preso várias vezes, contavam comigo, sem eu saber, para um possível empreendimento dessa natureza. Foi com alguma surpresa minha, que concordaram comigo, quando lhes apresentei as minhas discordâncias fundamentadas em critérios, que eles reconheceram favoráveis ao progresso da fábrica e aos seus, deles, próprios interesses. Teria sido um desastre para os trabalhadores em geral, se eles tivessem tentado a «nacionalização», como aliás aconteceu noutros locais.

Tive ao longo dos anos de trabalho alguns problemas de saúde no campo da ortopedia, em parte devido a condições de trabalho prático em contacto com o frio, por se ter tratado de uma fábrica de gelados.

Ainda em 1980/81 frequentei um curso em Londres para discussão e atualização de novos processos de produção visando sempre uma melhor qualidade. Foi produtivo o desempenho da minha função, mas foi a última vez em que participei nessas reuniões de desenvolvimento.

Reformei-me entretanto, mas continuei trabalhando para a Empresa como consultor técnico durante quase dez anos. No desempenho desta função, mas para outra empresa, participei no processo de organização de uma Fábrica em Angola e visitei Luanda, onde efetuei reuniões de trabalho técnico com ministros da Agricultura e do Comércio, para a instalação da produção de gelados, utilizando o remanescente de uma Central Leiteira do Estado Angolano. Foi um trabalho para mim revelador das possibilidades de desenvolvimento industrial de um país economicamente atrasado, devido principalmente às difíceis condições sofridas pela ocupação colonial durante séculos, mas perfeitamente à altura de iniciar uma nova fase da sua evolução.

A queda do «Muro de Berlim», símbolo da divisão entre povos criada artificialmente pela «Guerra-Fria», consumou o «União Soviética» como sistema político e social para se afirmar no mundo. Era visível à distância, sobretudo a partir dos anos setenta do século XX, a cada vez maior incompatibilidade entre o sistema economicamente fechado do chamado bloco comunista e a tendência consumada, cada vez mais ampla, para a abertura de mercados de modelo capitalista, praticamente imposto na maior parte dos países do mundo. Assisti, a princípio perplexo, ao desabar do modelo «socialista», sob o ponto de vista social e económico, já que politicamente o sistema vinha manifestando sintomas de falência a partir, pelo menos, dos anos sessenta. Considero que a queda do «Comunismo» real põe em causa a estrutura ideológica que o suportava, tanto mais atingida quanto maior é a amplitude pragmática da «globalização».

Deslocámo-nos em 1991, eu e a minha família, de Lisboa para o Algarve e fixámos residência em Olhão. Com a minha reforma monetária e algumas economias acumuladas ao longo dos últimos anos de trabalho, foi possível construir uma moradia unifamiliar, onde ainda resido, ocupando a minha filha outra parte da casa.

A minha ocupação diária é (além de pequenos trabalhos de jardinagem, com o prazer dia-a-dia renovado de poder contemplar as flores que modestamente ajudo a florir), continuar lendo livros de interesse científico, filosófico ou artístico, e escrever poesia ou pequenos apontamentos de carácter sociológico, produto de leituras e de observações aleatórias.

Com António Ramos Rosa, troco correspondência, da qual revelo algumas das suas cartas.

[Anexo com a correspondência e fotos de António Ramos Rosa]

[Anexo com texto do amigo Joaquim Silvestre sobre Manuel Madeira]

Contacto também com amigos, principalmente pelo telefone, trocando impressões sobre acontecimentos e ideias, e convivo e converso com a minha filha e algumas amigas ou colegas dela. Também assisto a pequenos acontecimentos de carácter mundano ou cultural, como conferências, apresentação de livros, etc. Troco também, com menos frequência, correspondência escrita com amigos distantes.

No ano de 2004, a minha filha compilou poemas meus, publicados e inéditos entre 1949 e 2004, tendo organizado um volume de 409 páginas, editado e apresentado em Lisboa e em Faro, durante os primeiros meses de 2005.

Constituiu uma boa oportunidade para rever amigos, conversar com eles, discutir possíveis projetos de futuro… mas o mais importante foi e é atualizar pontos de vista, rever conceitos que foram «atuais» há cinquenta anos e que, como nós, envelheceram. É necessário confrontá-los agora com as realidades confrontáveis, já que muitos novos aspetos do real não eram previsíveis no passado distante, quer nos domínios das ciências, quer nos aspetos humanos comportamentais.

Ainda este ano, colaborei com um poema no livro de Homenagem a Pablo Neruda, e também em prosa, noutro livro homenageando, um amigo e camarada de luta antifascista, que foi João de Brito Vargas, residente em Faro.


Tenho em preparação um livro de ensaios literários e poéticos e poesia recente, que desejo publicar brevemente.

Setembro de 2005 - FIM DA AUTOBIOGRAFIA


Após o ano de 2005 e até 2016 (ano do falecimento) a vida de Manuel Madeira preencheu-se sobretudo pela publicação de poesia em livros e tertúlias literárias.

Em 2014, foi a Itália por convite do projeto cultural europeu que envolve a «Associazione Nuovi Linguaggi» e «Acta», (A Companhia de Teatro do Algarve), onde permaneceu 21 dias a promover a poesia portuguesa em várias sessóes com públicos de vários países, tais como Bulgária, Roménia, Letónia, Grécia, Turquia, Itália, França, Alemanha, Portugal e Espanha.


Manuel Madeira escolheu alguns poetas, clássicos e modernos, como Camões, Antero de Quental, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, António Ramos Rosa, Fernando Esteves Pinto e a sua própria poesia.





Vídeos sobre Manuel Madeira: