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A propósito da amizade que une Primavera Lourenço a M.M., a amiga relata como tudo começou:
«Tenho o privilégio de conhecer o Manuel Rodrigues Madeira, há quase meio século. É alguém que vale a pena ter como Amigo, pela sua humanidade, pela sua inteligência, pela sua modéstia. É sempre um prazer conversar com este meu Amigo. Como é muito culto, estou sempre a aprender. Por outro lado, é muito tolerante, e eu, que sou demasiado faladora, por vezes ultrapasso os limites, e ele, sempre atencioso, ouve-me com uma deferência, como se eu desenvolvesse um tema de maior interesse. |
![]() Marina M., Manuel M. e Primavera Lourenço |
Foi muito curiosa a forma como me relacionei com o Madeira:
Em 1959, mudei de residência, de Lisboa para a Amadora, tendo como vizinhos do lado, os três elementos maravilhosos, que acompanham a família Madeira: o Manuel Madeira, a minha Querida Amiga Marina, sua mulher, que infelizmente já nos deixou para sempre e de quem tenho muitas saudades, porque era uma pessoa duma grande generosidade, sempre pronta a ajudar o seu semelhante, tendo o dom de transmitir muita alegria aos seus Amigos. Por fim, não posso deixar de referir-me à pequenina, filha do casal, Natércia (que para mim será sempre a Tété), que conheci tão pequenina, que mal tinha começado a andar. Tirou o curso de agronomia e dedicou-se ao ensino por vocação, e ainda bem, porque é uma professora muito querida dos seus alunos, pela sua competência e pela amizade que lhes dedica.
Quando em
1959, em plena época salazarista, fui morar para a Amadora, fui avisada
de que viviam ali muitos informadores da PIDE, e eu, que era de esquerda
e vivia com a minha mãe, que também era contra o regime de Salazar,
pedi-lhe para ter cuidado com desconhecidos que tentassem falar de
política.
Os dias iam passando; eu ia para o emprego e quando regressava a casa perguntava à minha mãe, que passava os dias sozinha, se já conhecia os vizinhos do lado.
Até que um dia, ela me comunicou que já conhecia a senhora do lado: «deu-me os bons dias da varanda, muito sorridente», disse a minha mãe.
O tempo ia passando, e as vizinhas comunicando, com alguma cortesia.
Entretanto, apareceu na minha caixa do correio um jornal endereçado a Manuel Rodrigues Madeira, que vinha do Brasil e cuja linha política era de direita. Naturalmente, pus o jornal na caixa do meu vizinho, ficando a dúvida de que ao meu lado poderiam morar pessoas suspeitas. A morada estava correcta, mas o carteiro, voltou a pôr novo exemplar na minha caixa do correio. Nessa altura tive curiosidade de ver o que dizia aquele jornal, de tão importante, para ser remetido do Brasil, tão assiduamente. Qual não foi a minha surpresa, quando me apercebi que, o que verdadeiramente interessava o meu vizinho, era um outro jornal que vinha no interior, e que falava sobretudo do general Humberto Delgado, que na altura se encontrava exilado no Brasil.
Nessa noite quase não dormi porque li o jornal de ponta a ponta, e só no dia seguinte o entreguei em mão ao destinatário, feliz por saber que ao meu lado moravam pessoas com as quais me identificava ideologicamente.
Com alguma precaução, comecei a falar de política com o meu vizinho e ambos percebemos que estávamos em sintonia. Daí nasceu a nossa amizade e a minha mãe ficou a saber que estava a conviver com as pessoas certas.
O meu Amigo é um excelente escritor, mas devido à sua modéstia, nunca se preocupou em publicar, por isso só há pouco tempo foi publicada parte da sua obra poética, por iniciativa de sua filha.
Ao escrever estas linhas ocorre-me esta reflexão: a nossa amizade e relacionamento, que se tornaram efectivos depois da troca dos jornais, pelo carteiro, nas caixas do correio, podia ter sido uma complicação se, por infelicidade tivessem ido parar à caixa de um qualquer PIDE, pois os jornais, só por si, eram uma denúncia para quem os recebia. Como felizmente tal não aconteceu, só posso abençoar o Amigo do Brasil e a incompetência do carteiro!
Resta-me acrescentar que o Madeira, com a nossa troca de impressões, consolidou as minhas convicções políticas e também me deu um grande exemplo como trabalhador. Lembro-me que saía de casa de madrugada e regressava de noite. Mesmo assim ainda recebia os Amigos com toda a simpatia. Mas como arranjava tempo para estar sempre actualizado culturalmente? É a incógnita que ainda hoje permanece no meu espírito.»