Texto do amigo
Joaquim Silvestre sobre Manuel Madeira.
O amigo Joaquim Carlos Silvestre, conta
como conheceu M.M. e os contactos que mantinham entre si, amigos e a
situação política da altura:
«Conheci Manuel Rodrigues Madeira, tanto
quanto me lembro, em 1946, em Olhão, onde ambos então vivíamos, embora o
Madeira tenha nascido em 1924, em São Bartolomeu de Messines, terra natal
do pedagogo e poeta João de Deus. Assim sendo, ele tinha 22 e eu 17 anos
de idade. A II Guerra Mundial acabara em 1945, um ano antes, portanto.
Ambos vimos as pessoas de Olhão, no dia da vitória dos “Aliados”, descer à
Avenida da República - onde anos atrás assistíramos a exercícios
militarizados da Legião Portuguesa - para festejar o que havia muito tempo
ansiavam: a Paz!
Esta Guerra mexeu muito com o nosso
entendimento das coisas do Mundo, salvaguardado o estádio de
desenvolvimento intelectual de cada um de nós. Os países beligerantes eram
praticamente das quatro partidas do Mundo ou, dizendo de outra forma, as
operações de guerra envolviam os cinco continentes. No início do conflito
bélico, as pessoas apareciam-nos divididas em germanófilos e anglófilos,
mas depois, numa perspetiva ideológica, logo os primeiros se identificaram
como partidários do Nazi-Fascismo e os segundos - reforçados com a aliança
dos E.U.A.- partidários da Democracia, a cujas fileiras se juntou a União
Soviética, dando origem à frente que ficou conhecida por “Aliados”. Mesmo
na nossa política interna, sentia-se que as coisas estavam a mudar. Para
além das mensagens de esperança aos portugueses difundidas pelas rádios
internacionais BBC, Voz da América e Rádio Moscovo, víramos na livraria do
Sr. Pedro Martins, ele também correspondente do jornal Diário de Notícias,
em Olhão, uma lista, aberta à subscrição pública, a requerer aos Poderes
Públicos eleições livres no nosso país - o que levaria Salazar a prometer
hipocritamente que seriam feitas “eleições tão livres como na livre
Inglaterra”.
No contexto descrito, apercebemo-nos que
havia um regime ditatorial a governar-nos, mas que existia também a
Oposição, quase sempre brutalmente reprimida, que lutava denodadamente
para ter direito a igualdade de tratamento com o partido do Estado Novo.
As ideologias apareciam-nos muito extremadas: Nazi-Fascismo versus
Comunismo. A Democracia instalada nos países europeus continentais,
capitulava perante o voto popular (Alemanha) e, inexoravelmente, perante a
força das armas dos invasores (Alemanha e URSS) -qualquer que fosse o
motivo invocado -, como se tratasse de um Regime arcaico , que houvesse
frustrado as aspirações populares.
No nosso país, o Estado Novo com a
promulgação da Constituição Política, de 1933, adotara a
moldura fascista, rotulando-a embora de “corporativa”, e avançara com a
sua implementação. Em 1936 fora publicado e posto em execução o Estatuto
do Trabalho Nacional (ETN), com o fim de regular as relações
do Capital e do Trabalho, quase uma cópia fiel da Carta dei Lavoro,
da Itália de Mussolini. O rumo trágico da vida nacional estava traçado!
Olhão, no fim da II Guerra Mundial, era
uma vila que fervilhava de atividade, por ser um grande centro piscatório
e conserveiro em razão das suas condições naturais e da carência de
alimentos sentida em todo o Mundo, bem como da necessidade de alimentar os
exércitos. Mas as condições de vida dos operários, conserveiros e outros,
e dos pescadores eram duras. O caldo para as reivindicações resultava da
própria existência deste proletariado.
As comissões sindicais movimentam-se na
clandestinidade, envolvendo ou ignorando os sindicatos corporativos
(estatais). A luta de classes, pese embora o ETN e as forças repressivas,
manifesta-se. A Oposição organiza-se. Dá-se a criação do MUD e do MUD
Juvenil. A luta política legal trava-se em torno destas organizações. O
Partido Comunista atua clandestinamente, pretendendo influenciar ou mesmo
conduzir os acontecimentos.
É no quadro descrito que, por intermédio
de António Simões Júnior - ao tempo empenhado em fazer publicar os seus
Poemas Juvenis — que conheço o Manuel Madeira. Este desde logo me cativa e
exerce sobre mim uma grande influência intelectual e política. A sua
bagagem intelectual e as suas qualidades de pedagogo, impressionaram-me..
Era o “mestre” que eu precisava. É também ele quem me desperta para as
questões filosóficas: o real é a representação das nossas ideias?
(princípio do idealismo) ou temos ideias porque as percecionamos do real?
(princípio do materialismo).
Os
nossos horários de trabalho possibilitavam a oportunidade de nos
encontrarmos durante o dia. Mas era à noite, ou aos domingos, que
tínhamos mais tempo para os encontros, íamos - eu e outros amigos,
nomeadamente o Vitoriano Rosa, o Fradinho e o Frederico - por
vezes a sua casa ver a sua pequena biblioteca, manusear os seus
livros e ouvi-lo falar de temas tão diversos como Antero de
Quental, quer quanto poeta quer quanto arauto dos ideais
socialistas, e de poetas como Paul Éluard, Drumond de Andrade,
Garcia Lorca, Adolfo Casais Monteiro, etc. e, como não podia
deixar de ser, dos poemas do próprio Manuel Madeira. |

Em cima, da
direita para a esquerda, Joaquim Silvestre, Raúl Veríssimo,
Júlio Fradinho, Manuel Madeira. Em baixo, Febo e Raúl
Veríssimo.
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Também
tomávamos contacto com livros proibidos, nomeadamente sobre
materialismo dialético - histórico e filosófico - o que,
consequentemente, nos levava ao realismo na Arte e ao “socialismo
real” na Sociedade. E o que também nos haveria de levar à prisão
política, com os sofrimentos inerentes. Por vezes esses encontros
terminavam com uma brincadeira. Algumas delas, dão para escrever
umas “crónicas dos bons amigos”.
Outras reuniões apadrinhadas pelo Manuel Madeira eram realizadas
numa casinha de campo a que chamávamos “A casa do avô do Madeira”,
situada à saída de Olhão, para lá da Patinha. A casinha ficava no
alto de um morro, cercada de pinheiros. Era um ambiente aprazível,
quando o tempo estava bom.
Tenho fotografias colhidas no local onde estão praticamente todos
os amigos que participavam nessas reuniões. |

Em cima, da
direita para a esquerda, Joaquim Silvestre, avô de Manuel
Madeira, Vitoriano Rosa, Manuel Madeira, Raúl Veríssimo, Júlio
Fradinho. Em baixo, apenas reconhecemos o filho de Raúl
Veríssimo - Febo - e talvez António Morgado ou António Ribeiro
Saias, à direita.
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Uma ou outra vez aparecia também José Manuel Tengarrinha, munido de pincéis,
aguarelas e cartolina, mal se adivinhando que haveria de ser jornalista,
historiador e, após o 25 de Abril de 1974, líder do M.D.P/C.D.E. Outro amigo
e grande companheiro, sobretudo do Madeira, por ser da mesma geração, que
participava nestes encontros, e por vezes era ele próprio que os promovia na
sua casa, era o Raul Martins Veríssimo. “Explicador”, que só não foi
professor liceal porque o pai não o pôde manter na Faculdade de Letras, em
Lisboa, era uma pessoa muito exigente consigo própria, muito estudioso,
perfeccionista a tal ponto que não publicou os seus versos, com preocupação
de os rever constantemente. Na relação entre o M. Madeira e o Raul Veríssimo
expressa-se uma outra característica da personalidade do primeiro, digna de
relevo: o espírito de solidariedade atuante, mesmo implicando sacrifícios,
sobretudo quando se trata de amigos íntimos, como era o caso em questão.
Submetido o Raul a tratamento, com o acompanhamento do filho Dr. Sérgio
Veríssimo, só recuperou parcialmente. A sua mulher, a D. Lídia, uma criatura
sorridente e serena, que a todos os amigos do marido recebia com
afabilidade, afetada por uma arteriosclerose gravíssima, que a alheara do
mundo, deixara de poder tratar do marido. Na altura viviam os dois amigos
novamente em Olhão, não muito distantes um do outro, porque assim mesmo
haviam decidido entre eles. Perante a situação em que o Raul se encontrava,
foi o Madeira quem passou a ajudá-lo desde os pequenos gestos indispensáveis
à vida diária até ao banho periódico. Fez tudo isto até que, fisicamente,
pôde! Na fase subsequente, a do seu internamento num lar de terceira idade,
em Faro, a dedicação manteve-se até ao falecimento daquele amigo.
Há um outro amigo e companheiro do Manuel
Madeira, com grande significado na sua vida, na medida em que se relaciona
com a sua propensão para a Poesia. Trata-se de António Ramos Rosa. Os dois
tiveram um percurso algo semelhante. Ambos algarvios, - conheceram-se no
Algarve, no âmbito das atividades do MUD Juvenil onde, além da comunhão
das ideias políticas, descobriram que partilhavam também preocupações
literárias comuns, incluindo poéticas. Mais tarde a viver em Lisboa,
chegaram a partilhar a mesma habitação, por uma questão de economia,
permitindo-lhes acompanhar e refletir sobre as interrogações da sociedade
e da alma humana, num período difícil da vida portuguesa, que terminou em
25 de Abril de 1974. Porém, o Ramos Rosa, hoje com mais de cem livros
publicados, seguiu o “sacerdócio” da Poesia e nada o deteve no exercício
da sua vocação. M. Madeira, por seu turno, optou pelo pragmatismo perante
a rudeza da vida que tivera na juventude, período em que perdeu o irmão e
a mãe, e, ainda, pela incerteza quanto ao futuro. Deixou a Poesia para uma
segunda ocupação, sem dela nunca se separar, porque era preciso ganhar
para sobreviver. Hoje, aos 80 anos de idade, ele venceu a batalha do Pão e
ganhará também a do Espírito ao alcançar um lugar na história da poesia
portuguesa. A sua obra poética reunida demonstrá-lo-á. Uma pequenina
amostra (apetecia-me dizer vibração) da sua poesia:
“Diz-me que vale a pena ouvir o vento
(“ só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido”
Ó Alberto Caeiro!)
escutar a voz das coisas mudas intocáveis
ouvir o silêncio ranger nos dentes as cordas dos navios
esticadas no ponto crítico prestes a estoirar
a marinhagem tensa no vórtice da tormenta”
(Do poema À Revelia dos Sentidos, publicado in SOL XXI)
Manuel Madeira além de poeta tem uma grande facilidade em redigir. Os anos
de seminário devem ter-lhe dado uma boa preparação para o efeito. Começou
por escrever artigos para publicações clandestinas. Clamor?, Clarim?, O
Porvir? Já não recordo bem.
Escreveu também para jornais e revistas tais como Planície, Vértice,
Cadernos do Meio Dia e SOL XXI, onde, nesta última publicou, além de
poemas, um excelente ensaio sobre o escritor olhanense emigrado na
Argentina, António Simões Júnior, já acima referido, de quem era amigo e
confidente. Este escritor só publicou obras em prosa em língua castelhana,
mas a sua novela Vieja Crónica de Olhão, um título obviamente para
“argentino comprar “, teve, em 1996, uma tradução em português feita por
Diamantino Augusto Piloto, patrocinada pela Câmara Municipal de Olhão e
pela Caixa Crédito Agrícola Mútuo de Olhão.
Além disso, as cartas que escreve aos amigos
são autênticos ensaios, expressando ideias e conceitos em volta dos temas
tratados. As epístolas trocadas entre ele e António Ramos Rosa são disso
prova. Haverá que publicá-las. É um alvitre que aqui deixo, no seguimento
do que tem feito Vitoriano Rosa - a quem confidenciei a existência destas
cartas - para que se não perca essa importante documentação, que regista
as reflexões destes dois grandes espíritos das letras portuguesas.
Lisboa, 15-08-2004»