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Correspondência poética de António Ramos Rosa para Manuel Madeira




No nosso tempo havia cegos e surdos que falavam
e nos queriam cegar e ensurdecer.
Mas nós mantínhamos nos pulsos a tensão vertical
de um fogo verde de um outra vida.
Era um horizonte de palavras novas, de árvores reverentes.
Escrevíamos panfletos que às vezes nos fugiam dos bolsos
em revoadas que se confundiam com as aves.
Acampávamos em pinhais, cantávamos e dançávamos,
saudando o sol de um novo dia
e às vezes a polícia surpreendia-nos
com as metralhadoras aperradas contra nós.
Devorávamos os livros proibidos apaixonadamente
reunidos em exíguos quartos ou solitariamente.
Não importa se muitos se enganavam adorando um déspota como
um deus
porque a verdade estava na sua oposição
à tirania que nos roubava o sol,
à liberdade e à justiça da palavra viva.
Vivemos duramente com obstinada paixão
mas vivíamos solidários e lúcidos na sombra
e a fraternidade era a nossa força e o prémio da nossa luta.
Vencemos finalmente mas a madrugada da nossa liberdade
Foi apenas um momento. O que se seguiu depois
é um sistema que não sabemos como combater
porque a sua teia é anónima, de uma violência esparsa
que nos impede a defrontação
com os seus disfarces e os seus estratagemas.
Diz-me meu querido Manuel, os nossos sonhos diluíram-se,
apagaram-se
ou resta ainda um tronco verde com duas ou três folhas
e a nossa sede não morreu, ela é a nascente viva
tal como eu te procurava para partilhar o meu fogo ansioso
entre as anelantes aranhas da minha angústia obscura?
Será que resta uma centelha insubmissa
desse lume fascinante que nos deslumbrava como se fôssemos
náufragos que procuravam um madeiro ou um giesta incendiada
para que sentíssemos que a vida era a vida com o seu horizonte azul?
Sinto-me tão longe desses pássaros vermelhos
que esvoaçavam em torno das nossas cabeças ébrias
e não pousavam senão para subir mais alto
para além dos nossos braços e da nossa sede de uma maravilha lenta
que pudéssemos abraçar como se fosse um tronco espesso
e a nudez solar num terraço branco?
Diz-me se estou perdido, se a minha voz é a de um estranho
ou ainda de um companheiro que ama o obscuro fascínio
das palavras que poderão reviver a nossa oscilante juventude?
O que subsiste ainda será o fulgor desses anos de delírio solar,
uma brasa sobre a cinza do tempo, uma brasa com as veias
dos nossos corpos que não sabem se estão vivos
ou se o tempo os pulverizou e os reduziu aos fragmentos fumegantes
que são o que resta sob os ventos da noite
que nos vai apagando sob a sua cal obscura
que acabará por nos sepultar como se fôssemos mais do que uma
vertiginosa sombra?   
O que resplandecia na nossa juventude, meu querido Manuel,
não eram bandeiras nem espelhos,
era o nosso próprio sangue,
era a nossa sede de uma gloriosa frescura,
era o vento em torno das nossas torres de vidro,
era o fogo que incendiava a nossa fragilidade.
Éramos acaso felizes? Não, não éramos,
mas o instante de alegria surgia tantas vezes
com a fresca urgência de um ramo de água
ou com a liberdade de um pássaro ébrio
que visse as linhas de cristal num labirinto negro.
Como eram longos os dias e como a solidão às vezes era cálida e tranquila
porque pressentíamos essa rosa de veias
que era a terra fértil, a terra verde
que cintilava nas árvores e nos livros
em consonância com as raparigas e os cavalos
ou algum cordeiro perdido do seu rebanho.
Mas a angústia como um abutre sobre o dorso
rasgava-nos a carne e era  a sombra densa
que nos roubava a lúcida visão das coisas.
Quantas vezes te confessei essa violenta ânsia
da minha fragilidade e foi contigo que travei
o diálogo mais fraterno e mais inteligente
quando eram tantos os que me rejeitavam
e alguns até me consideravam um traidor por não ser ortodoxo.
Sim, devo-te muito, meu querido Manuel,
E hoje aqui estou para celebrar esse encontro que se iniciou há
tantos anos
e continuou e continua tão intenso e vivo como então.
Somos das terras de maresia dos redemoinhos
de areia das vagarosas tardes imóveis
Quando nos abríamos nos meandros obscuros nos recintos  côncavos
acenávamos a um cálido rumor ou a uma respiração
que vinha do horizonte sabíamos os leves movimentos
da figura secreta e transparente que habitava o espaço
Conhecíamos o deserto a faminta paciência do deserto
e bebíamos os inclementes ventos generosos
que sopravam sobre as nossas palavras ébrias e incandescentes
A nossa alegria era um rodopio altíssimo
que vinha pousar sobre os malmequeres e sobre os sapatos
cobertos de poeira
Entre frescos alimentos entre sombras aplacávamos a ausência
quando o mar bramia ao fundo da garganta
Líamos nos portais das casas de cal ouvindo amadurecer
uma lua oceânica e o canto obstinado das cigarras
Embriagávamo-nos de uvas e de iodo fermentávamos o sonho
num desordenado coração que errava em misteriosas linhas
O sangue latejava as estrelas eram próximas as árvores companheiras
As lagartixas corriam minúsculas e esguias sobre um solo cintilante
Aproximávamo-nos da fonte Bebíamos por uma boca a rosa fresca e total
Ninguém ninguém poderia conhecer as nossas ligeiras tempestades
nem os nossos cárceres melodiosos nem as verdes túnicas
que nos cobriam nas noites cálidas de verão
Acariciávamos devagar um corpo e era o mundo
povoado de vozes escuras e de violentas cabeças
E sempre o longo rumor do mar o fogo dos barcos
e as vozes ao longe sob as estrelas o mistério da calma
amplitude obscura o lugar da nossa ausência o silêncio do azul
Ó meu amigo Manuel o que foi a nossa vida
foi o que passou e já não passa
agora que nós a perdemos como uma sombra
ou uma chama fugitiva o que foi a nossa vida sabemos nós dizer o que passou e sem passar passou
Ó meu amigo Manuel o nosso desejo de existir
o nosso grito dentro de uma chama a nossa vida
era o grito de um pássaro que voava sobre o mar
e caía sobre o mar?
Ó meu amigo Manuel que procurávamos nós
procurávamos e encontrávamos sonhávamos cantávamos
era sempre a mesma chama de uma primavera desconhecida
era sempre o mesmo vinho da mesma chama que bebíamos
Era a vida que bebíamos pelo mesmo copo
e viajávamos sempre no sol da mesma noite
no mesmo enigma na mesma chama na mesma sombra
era a nossa vida que nascia e que morria
no mesmo mar no mesmo grito na mesma chama
foi isso a nossa vida e foi a vida toda
foi a vida toda que nascia
ó meu amigo Manuel!
Encontrei em ti o maravilhoso amigo
para partilhar a deslumbrada adolescência
e as suas obscuras ânsias a sua vertigem verde
e o seu desamparo em inóspitos planaltos
Consagrávamos as essências do mundo
entre as palavras e o vinho em inebriada consonância
e amávamos o delicado esplendor dos nomes e das coisas
como se tivéssemos acordado de um sonho para o sonho do real
Nunca poderei esquecer a pureza selvagem
do nosso encantamento sempre ébrio como se tivéssemos
a sonâmbula lucidez de uma lenta pupila
e permanentemente singrássemos num voluptuoso barco
que sulcava a terra entre a frondosa folhagem
e penetrava numa gruta onde uma nascente fluía
e era uma rapariga sorrindo com os braços abertos
Nós conhecemos o tremor frágil e a audácia ávida
da adolescência Uma estrela clandestina acompanhava-nos
Nós sentíamos a efervescência do mundo como se ele fosse
opaco
talvez porque nas veias o sangue era também efervescente
Amávamos os veios da terra a profusão do vento
e a grande rosa verde do mar com suas violentas ou
pacíficas pétalas
As palavras tinham o encanto e o aroma da secreta nudez
de um ser que se propagava em flutuantes nomes
Respirávamos o alvor do mundo apesar dos déspotas
e líamos os livros que iam mudar o mundo
mas também os poemas que já o transformavam
Tudo o que escrevíamos tinha o perfume dos montes
ora claro e fresco como um canavial ora sombrio como uma cortina de fetos
ora esbraseado como uma giesta ou altissonante como um girassol
Sentíamos que era a terra que vibrava aos nossos pulsos
e respirávamos a frescura de uma clandestina estrela do vento
Ah o tempo enterra tudo, mas como esquecer
essa alvorada ébria que foi a nossa incerta juventude?
Recordo as tardes cálidas em que amávamos tímidas costureirinhas em juncais verdes
ou entre a massa negra dos fetos à beira de um regato.
As que estão vivas têm a nossa idade e são provavelmente feias,
as outras terão morrido, algumas eram tão frágeis.
Que energia é a de uma tesão tensa
que parece que poderia penetrar um hímen de pedra!
Ela é uma força vital absoluta e às vezes é tão incandescente num jovem como num velho
e nada se compara a esse gozo a não ser a sua continuidade
na plenitude da corola aberta
que é mais subversiva do que todas as revoluções!
Bebemos a seiva verde por conchas vermelhas
e o vinho rubro dos figos das piteiras
enquanto líamos apaixonadamente os versos trágicos de Pessoa
ou os simétricos alexandrinos de Cesário.
Abríamos os ângulos do tempo, sentávamo-nos nos joelhos da terra
e ouvíamos a monotonia com os seus minúsculos violinos de abelhas
ou pressentíamos o centro cintilante da vida
quando víamos uma libélula mergulhar a fina ponta da sua trompa
e produzir um pequeno círculo que se multiplicava.
Dormíamos sobre a caruma à sombra de um pinheiro
e quando acordávamos o mundo inclinara-se um pouco
ou tornara-se mais vertical e resplandecente.
Respirávamos, embora através de uma estratégia tirânica,
e saudávamos o mundo como se os deuses ainda o habitassem.

20 de Março de 2002
«A verdade de tudo o que não somos, qual é?
A verdade é não sabermos e não sermos
Mas o corpo requer em nós um contacto feliz absoluto
E já não se trata de verdade pura ou não verdade
É o grito o desejo o sabor da terra e do mar
num corpo que se fende, o sangue do sol
e o peso obscuro de um rio rutilante
e o ouro da neve entre virilhas de sombra
a floração da água em seios e dunas
e a nudez inteira de uma onda sem ombros

3 de Janeiro de 1995
 «Li o texto que me enviaste há dias e gostei muito. Tu és um verdadeiro ensaísta. O teu texto é uma confirmação do que te enviei antes, mas isto não é uma restrição; porque considero que ele é suficientemente autónomo e, por conseguinte não é dependente do meu.

Além dos poemas que te envio regularmente, envio-te hoje um texto que me parece ter interesse, porque talvez eu nunca tenha formalizado o que nele, bem ou mal, consegui dizer.

O nosso diálogo é para mim, como ele é para ti, uma felicidade. Quando ele terminar, não será o fim, mas apenas um momento em que recomeçaremos outro, ou o mesmo.»

11 de Janeiro de 1995
 «Inesperadamente, quando pretendia fazer outras coisas, escrevi os poemas que te envio. Os que te dizem respeito podem constituir um diálogo, que te proponho e que me seria muito grato se aceitasses.

Para mim foi uma felicidade escrever estes poemas em que rememoro o que eu supunha estar soterrado em mim e que, afinal estava bem vivo e tão espontaneamente veio ao de cima. Gostaria muito que respondesses, em forma poética, a estas duas cartas, em cartas em que mantivesses uma certa semelhança formal. Assim, os poemas que escrevesses poderiam ser mais longos ou mais curtos, mas terem uma certa correspondência formal, isto é, não seriam por exemplo, sonetos, mas teriam uma certa linha de versos curtos e longos, ou só longos ou curtos. De qualquer modo, terias a liberdade de escrever conforme entendesses, mesmo se não seguisses estas minhas indicações.»

17 de Janeiro de 1995
«Os teus poemas corresponderam a uma expectativa para os poemas que te dirigi. Confesso que receava que não estivesses com disposição para corresponderes a toda esta série de poemas que te tenho enviado, mas verifico, afinal, que possuis a capacidade de replicar a esses poemas e até de me surpreender, nomeadamente com o teu léxico, onde aparecem, por exemplo, palavras como «escalracho» ou «turíbulos» que eu nunca empreguei na minha poesia.

Esta inesperada exumação poética veio despertar o que parecia estar soterrado, mas afinal estava bem vivo e que, diríamos, nós continuamos o diálogo que iniciámos aos vinte anos.

23 de Janeiro de 1995
«Se eu não te tivesse conhecido eu sentiria decerto a tua ausência, ainda que não soubesse determiná-la. Mas felizmente, conheci-te e isso constitui um estímulo para que tudo quanto escreva tenha um timbre de existência, por mais fictício que seja. Se eu não te tivesse conhecido, eu não era quem sou.»

24 de Janeiro de 95
«Agradeço-te a tua carta e os teus poemas. Não pude ler senão o primeiro, porque estou muito cansado. Acho-o excelente e verifico com satisfação que as tuas réplicas têm o mesmo nível poético que eu esperava de ti, embora receasse que não tivesses disposição para o fazer. E, por conseguinte, constato que o meu projecto de escrever um diálogo contigo é perfeitamente viável.»

8 de Fevereiro de 1995
«Ainda não consegui ler todos os textos que acompanharam a tua última carta. A Agripina leu-os e achou interessantíssima a tua exegese poética. Tu és um verdadeiro ensaísta e eu sinto-me feliz por ter contribuído para que esse facto se manifestasse no nosso diálogo.»


Março de 2003
Carta para uma Amiga: «Tenho estado nesta tarde de sábado um pouco escura a conversar com o meu amigo Manuel Madeira. Penso sem qualquer exagero que é uma das pessoas com quem eu sinto uma sintonia muito grande quando lhe falo sobre problemas filosóficos ou literários.»