Antero de Quental,
segundo Manuel Madeira
O meu primeiro contacto com Antero de
Quental, foi através da leitura dos seus poemas, tinha 14 ou 15 anos,
principalmente os sonetos, em selectas literárias que me serviam também de
estudos, enfim, complementares da instrução primária que eu já tinha
feito. Mas para além dos poemas, de que gostava muito e que lia o mais que
podia, interessou-me a vida do Antero, a sua vida pessoal, como estudante.
Revelando-se muito cedo um indivíduo lutador por melhores condições de
vida para todos, a começar pela vida académica, provocando rebeliões,
agitação entre os estudantes, um dia vaiando o próprio reitor,
aproveitando-se da vinda a Portugal e a Coimbra, onde ele estudava, de um
representante do rei de Itália, Victor Manuel, (uma figura progressista
para a época).
Relacionado com isto e, ainda dentro da vida académica,
impressionou-me a continuação da luta, de um ponto de vista cultural, de
um ponto de vista tendente a criar um espírito emancipador, de um atraso
histórico que era patente em toda a parte; assim ele foi o criador ou
co-criador, de uma sociedade que se chamava a Sociedade do Raio, que
parecendo ser uma brincadeira de moços, enfim…pelos vinte anos, continha
em si os germes de uma emancipação intelectual em relação ao que era comum
e assim eles interessavam-se por tudo, por literatura para além do próprio
ensino, dos próprios programas, por filosofia, que também estava para além
dos limites da própria filosofia que era adaptada na universidade.
Recebiam de Paris livros, que tinham sido a continuação do chamado século
das luzes, pós revolução francesa, que deu origem ao aparecimento de
escritores de grande nomeada e filósofos e…cientistas, entre os quais,
Michelet, um escritor francês, contemporâneo de Antero, outros
historiadores e outros filósofos por exemplo Jean Jacques Rousseau, que
não era francês, era suíço; era toda uma abertura, o próprio Descartes que
sendo de uma época anterior, adquiria nessa altura uma grande projecção,
em Portugal; esses sócios, esses amigos da sociedade do raio, metiam-se em
tudo e divulgavam em jornais locais, em Coimbra, em sessões, manifestações
diversas, esse interesse pelas novas ideias valorizando os acontecimentos
que ocorriam lá fora.
Uma vez, essa sociedade do raio, numa brincadeira académica, estava
reunida e desencadeou-se uma grande trovoada, com relâmpagos e trovões,
como é natural, e assustou muita gente; o Antero teve um gesto…enfim de
uma fantasia espantosa: abriu uma das janelas do local, da casa onde
estavam e desafiou Deus, disse: «se Deus existe que me fulmine, que me
mate! que um raio me parta já!». Os seus colegas teriam ficado, a maior
parte muito, muito aflitos, ele esperou algum tempo, deu tempo…Uns
segundos ao Deus e… «Deus não existe!».
Depois, ele licenciou-se, estudou direito mas nunca exerceu; era, como se
sabe, natural dos Açores, era de uma família de gente notável e talvez de
uma classe média superior, semi-aristocrática, creio que um avô de Antero
era um grande cónego ou uma figura religiosa de grande prestígio. O Antero
identificou-se com a causa do socialismo, era um socialismo nascente; ele
foi o introdutor de um marxismo, mas um marxismo literário, um marxismo
filosófico, em Portugal, juntamente com outros amigos, entre os quais,
Salomão Sarga e Batalha Reis; uma noite num barco às escuras, sem luz, no
Tejo, eles receberam e tiveram uma entrevista com o representante da
Internacional, da primeira Internacional, isso era uma coisa, que não
existia e que pouca gente ou ninguém falava mas já eram perseguidos por
isso e este encontro foi feito no rio Tejo numa noite sem luz e num barco
sem velas, tratava-se da introdução do socialismo, em Portugal, no campo
das ideias.
Mais ou menos por esta época, fizeram-se também as chamadas Conferências
do casino; ele, juntamente com outros, entre os quais Eça de Queiroz,
propuseram-se fazer e iniciaram, sessões políticas de esclarecimento e de
divulgação das ideias novas. O Antero, acho que foi o primeiro a abrir
essa conferência e fez, uma a uma, a apresentação de uma teoria de uma
tese que era «A causa da decadência dos povos peninsulares nos últimos
três séculos». Estas Conferências do casino, nas imediações do teatro da
ópera de S. Carlos; parece-me que o primeiro foi o Antero, o segundo julgo
que foi o Eça de Queiroz sobre o Realismo na literatura, porque era também
uma ideia nova, mas a terceira parece-me que já não foi feita, uma
autoridade do próprio governo, encerrou as Conferências do casino e tudo o
que aparece no seguimento foi nos jornais, enfim a censura não existia mas
não passava tudo, e além disso havia já uma grande agitação política em
Portugal, visando a instauração da República.
Mais tarde, e ainda dentro desta luta por ideias novas, apareceu um,
trabalho do Antero que foi… «Bom censo e bom gosto», fazia a apologia das
ideias novas, dos seus reflexos, reflexos dessas ideias em tudo, na
literatura, na arte, na poesia, opondo-se naturalmente, ou contrariando as
ideias antigas de Feliciano Castilho, era um dos representantes que
tinha vindo a público censurar o Antero e os seus amigos.
O Antero entretanto, escrevia, mas não tinha na altura publicado nada;
dentro do seu espírito de luta por um mundo melhor e nomeadamente um
socialismo teórico, que na altura era uma novidade, fez-se operário,
fez-se operário tipógrafo e foi para Paris; porquê? Aqui, como é que era
possível? Foi para Paris e lá chegou a trabalhar. E um dia pediu uma
entrevista a um escritor, Michelet, historiador notável, e marcou uma
entrevista; disse que tinha vindo de Portugal embora trabalhasse em Paris,
com um pedido de um amigo seu que era poeta e tinha-lhe publicado um
livro, que eram as Odes Modernas…e Michelet recebeu-o e ficou com o
livro.
Mais tarde, ficou combinado um novo encontro; o Michelet teria lido o
livro e ter-lhe-ia dito:«Oh homem, Portugal diz que é um país atrasado,
que é um país, enfim…, mas se há lá pessoas, se há lá um poeta… que
escreve como este, então é um país de futuro, é um país com gente que
merece ser apoiada, dignificada!».
Isto é também um episódio que me recordo acerca do interesse pelas
leituras do Antero.
- Influências sem dúvida que houve; influência directa era a leitura dos
seus poemas que me agradava e ainda hoje são de qualidade superior e
inscrevem-se no seguimento do que há de melhor na literatura portuguesa,
na poesia portuguesa depois de Camões. O Antero tem um lugar muito
especial, não só no meu conceito, mesmo na História, na literatura
portuguesa e na poesia, em especial, isso aos poucos me cultivou, apoiou o
princípio do meu interesse por coisas que me pareciam e eram novas em
relação ao que lia e fazia na época.