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Buenos Aires, 14 de Outubro de 1988
Caro amigo Madeira:
Por vários motivos não te escrevi antes, para agradecer tua carta e
os livros que tiveste a bem remeter-me. Quanto ao Viriato Camilo,
escreveu-me em seguida, dizendo-me que lhe tinhas telefonado e o mais que
te disse a ti. O seu silêncio inusitado começava a preocupar-me; eu temia
que ele estivesse outra vez internado nalguma clínica devido a
inconvenientes cardíacos. Ainda bem que não foi assim e está levando uma
vida normal (?). Ele é um bom amigo e eu gostaria que tu o conhecesses
pessoalmente. Tenho-lhe falado epistolarmente de ti. Além de editor da
Prelo, que já não existe, tem-se dedicado ao teatro e à música popular; é
amigo e admirador do mestre Lopes Graça.
Assim que recebi os livros de e sobre Cesário Verde, que me mandaste,
li-os em seguida, mas antes já tinha escrito sobre o poeta um artigo de
seis páginas que enviei à redacção de uma revista sem adjuntar nenhuma
carta nem dizer quem eu era. Não creio que mo publiquem e de confirmar-se
esta minha suposição, voltarei ao tema com um ensaio mais extenso.
Veremos?
E o Raúl? Já estará em Lisboa? E tu já haverás regressado ao Algarve?
Creio que sim. Eu daqui mandei-te dois livros brasileiros que podem
interessar-te; lamentavelmente, por equivocação minha ou dos correios,
seguiram por Via Superfície, sob registo. Não sei quando chegarão às tuas
mãos. Desculpa o lapso ou negligência.
Que posso dizer-te de minha vida? Pois sim, como já o estarás pensando,
vivo pouco menos que isolado, tanto mais que numa cidade macroscópica como
Buenos Aires, dez vezes mais grande que Lisboa, é difícil contactar com
amigos. Em meu derredor não há paisagem, e sem paisagem não se pode
escrever com grandes alentos. Além disso, escrever vai deixando de ser
para mim uma necessidade imperativa; prefiro ler, coisa que faço dia e
noche. Buenos Aires é uma cidade de terra adentro, não tem mar, tem o Rio
da Prata e numerosos esteiros já sem vida animal à causa dos resíduos
químicos das fábricas.
E tu saúde como marcha? Aí, pelo menos, o clima é bom comparado com o de
aqui, que é péssimo. Estamos agora em primavera, mas a primavera daqui
somente existe no calendário. As flores não possuem aroma e as andorinhas
não chilreiam como as daí e a sua plumagem é menos vistosa. Chegam da
América do Norte todos os anos.
Sei que estás em contacto quase diário com o Ramos Rosa. Devem manter
práticas acerca da poética universal. Algo salutar, evidentemente.
E como nada mais se me oferece para dizer-te neste momento (?), recebe um
abraço afectuoso do amigo grato e às tuas ordens.
António Simões Júnior
Carcavelos, 17 Dezembro,1988 Meu Caro
Simões:
Muito depois de ter recebido a tua carta de 14 de Outubro, chegaram-me há
dias os dois livros que me enviaste e que te agradeço. Ainda não os li
completamente .mas, o sobre Manual Bandeira interessou-me muito, já
que admiro es¬te poeta desde a minha juventude e pouco sabia acerca da sua
trajectória poética, O outro, de ensaios sobre literatura, tem
para mim a particularidade de apresentar nomes para mim desconhecidos, de
ensaístas e literatos modernos do Brasil.
Os últimos dois meses, passeio-os quase inteiramente no
Algarve, des ta vez em Armação de Pêra, onde temos um
apartamento de férias. Fui uma vez a Olhão visitei o Raul na Ilha, onde
ainda continua. Tem lá, como sabes ,uma casa que neste momento precisa de
algumas obras de beneficiação e ele aguarda pode efectuá-las antes de se
deslocar para Lisboa. Falámos de ti, do teu presente de que pouco sabemos,
dos teus livros de que temos notícias e das tuas cartas sempre recebidas
com afecto. Talvez já saibas que Olhão sofreu durante estes largos anos da
tua ausência um alargamento residencial nas três direcções disponíveis, ou
seja para o lado de Marim, Pechão e Faro, mas, estruturalmente,
permanece como há 50 anos, não obstante ter menos fábricas de conserva de
peixe e muito mais comércio, sobretudo turístico A pesca continua a
ser a fonte principal da economia.; estão, neste momento, alargando
as instalações portuárias, que se desenvolveram no sentido de Marim,
atingindo já a área onde em tempo existiu a fábrica de conservas do Pedro
José, no local on¬de havia a única praia de banhos da rapaziada. Não sei
se te recordas, são tudo zo¬nas por nós calcorreadas, depois da chávena de
café, nas nossas deambulações nocturnas. No lugar onde estava o"Café
Avenida" está instalado um Banco, mas os"Cafés" proliferam por quase toda
a parte principalmente nas avenidas, rua do comércio (vedada a veículos) e
zona de ria, junto ao mercado, que continua perfeitamente igual ao que era
no nosso tempo. Respira-se ainda um ar de maresia impregnado de cheiro a
peixe em decomposição, proveniente da "Safol", fábrica de guano no largo
da feira agora mais povoado. O velho estilo arquitectónico foi
evidentemente desvirtuado. Em vês dos cubos brancos com açoteias
resplandecentes, pululam as construções utilitárias, de seis ou mais
pisos, desfigurando a paisagem. As hortas dos arredores estão plantadas de
edifícios suburbanos; o chiar monocórdico das noras foi substituído pelo
buzinar atónito dos automóveis que circulam; o perfume inebriante das
laranjeiras em flor, trocado pela poluição dos carburadores. A essência
histórica de Olhão permanece oculta, talvez ,na pronúncia dos
habitantes mais velhos ,no linguajar dos homens do mar, agora com
barcos motorizados. As constelações de velas luminosas partindo ao
final do. dia a caminho da Barra, sumiram-se. .Adeus velas latinas da
nossa infância.
O Ramos Rosa foi recentemente galardoado com o prémio "Pessoa",
atribuído anualmente para distinguir a figura nacional das Artes, Letras
ou Ciência que ao longo da sua vida, maior contributo tenha dado, através
da sua obra, para a afirmação de uma personalidade original, de valor e
mérito reconhecidos. O valor pecuniário do prémio é de 4.500 contos, além
do que representa em prestígio, sendo o maior que se atribui em Portugal.
Durante o mês de Novembro, este foi o acontecimento de maior impacto nos
meios literários e artísticos, com alguma projecção no es¬trangeiro,
principalmente em França, onde o R.R. é conhecido. Ele está contente, mas
afadigado, pois tem sido solicitado para muitas conferências e entrevistas
nos jornais e na televisão, a que ele acede sempre com relutância.
Dá-me notícias tuas. É sempre com alegria que as recebo. Desejo-te
um Bom Natal e que o Ano Novo seja melhor que 1988, embora saiba que tu
não esperas milagres de nenhuma espécie.
Aceita um grande abraço do teu
Manuel
Madeira