Francisco Fernandes Lopes
Homem de elevada estatura, curvado pelos anos, robusto. Pulsos fortes.
Sobrancelhas bastas, olhar bondoso. Uns olhos castanhos, serenos e profundos. Creio que calçava botas pelo artrelho, vestia colete, onde guardava o relógio de bolso, mais lapinhos e borrachas (...). Botelho Júnior - A Voz de Olhão, 15-10-1994.
Ele está, para
mim, no meio da primeira fila dos que estão à frente disto tudo. Para o
Fernandes Lopes, matemático algarvio do séc. XX, o qual
tornou os números musicais como convém à Poesia. Por mais paradoxal que pareça, uma das coisas notáveis de Faro é a vizinhança de Olhão e algo de muito interessante em Olhão é o velho Dr.
Francisco Fernandes Lopes. [...] é um daqueles fenómenos com que dificilmente deparamos hoje em dia.
[...] O Dr. Lopes é a glória de Olhão. Uma autêntica figura da Renascença desgarrada no nosso tempo. |
Francisco Fernandes Lopes foi um homem enciclopédico e genial, que dedicou-se a estudar quase tudo do Mundo, quase nunca saindo de Olhão.
Embora sendo médico, notabilizou-se sobretudo como musicólogo, musicógrafo, historiador, filósofo, etnógrafo, inventor, etc., etc. ...
Nasceu em Olhão, em 27 de Outubro de 1884, onde permaneceu até 1965, vivendo os últimos anos em Lisboa, onde viria a falecer em 6 de Junho de 1969, com 84 anos.
Foi sempre um aluno brilhante em Olhão (Escola Primária) e em Faro (Curso Liceal Geral). Em 1901 segue para Lisboa para continuar os seus estudos (no Algarve não havia nessa época mais que o curso liceal geral) e conhece no Liceu da Regaleira alguns estudantes que o iriam marcar e tornar-se figuras importantes: Francisco Pulido Valente, que dará o seu nome ao atual Hospital Pulido Valente e o irá convencer a cursar medicina, e o futuro dramaturgo Ramada Curto que o levará a assistir à sua primeira ópera.
Além destes amigos, Francisco Fernandes Lopes torna-se também conhecido e admirado por muitas outras figuras importantes do princípio do séc. XX português: os irmãos músicos Luís e Pedro de Freitas Branco, Castro Freire (primo do poeta Eugénio de Castro), Câmara Reis, Ruy Coelho, Carlos Amaro, Carlos Olavo, Israel Anahory, Ivo Cruz, Almada Negreiros e Fernando Pessoa.
Para conhecer melhor esta fase adolescente da sua vida, assim como dos seus colegas ilustres, convido o leitor a ler um artigo da autoria do próprio Francisco Fernandes Lopes (clique aqui)
Licenciado com dezoito valores pela Faculdade de Medicina de Lisboa em 1911 (terá repetido o 1º e o 2º ano, provavelmente por dispersão e diletantismo juvenil), doutorou-se em 1916 com dezanove valores, com a tese Drogas e Farmacopeia, mas recusa os convites para lecionar nesta Faculdade (logo em 1912) e regressa à sua Vila, provavelmente a contragosto e por dever de acompanhamento dos seus pais já idosos, de acordo com uma carta sua endereçada a sua mãe.
É interessante notar a profunda impressão que Francisco Fernandes Lopes causava em homens de grande craveira intelectual, nomeadamente Almada Negreiros (ver as dedicatórias no início deste artigo) e o poeta Fernando Pessoa que, em três cartas datadas de 1919, o convida para um projeto de edição de uma revista sobre cultura portuguesa dedicada a estrangeiros. Para Fernando Pessoa, apenas Francisco Fernandes Lopes e, mais uns poucos, (nunca referidos mas que seriam "[quase] numericamente ninguém"...) teriam os golpes de génio necessários para mostrar no estrangeiro a grandeza intelectual da cultura portuguesa.
Como já referi, ainda em Lisboa, por influência de Ramada Curto que o levará a assistir à sua primeira ópera, interessa-se pela música e começa a compor e a notabilizar-se pelo seu conhecimento. Compõe o bailado Cristóvão Colombo, as óperas Belkiss em 1907-1908 (esta ópera, a partir de um poema em prosa de Eugénio de Castro, foi acabada por Ruy Coelho) e Balada de Fumo (publicada em 1913), assim como várias melodias para poemas de poetas nacionais, como Camões, Antero de Quental, António Sardinha, João de Deus, Cândido Guerreiro, Fernando Pessoa e João Lúcio, entre outros (para ouvir algumas músicas clique aqui).
No que diz respeito à enorme importância que Francisco Fernandes Lopes teve para Olhão, apenas poderemos dizer que ele pôs a sua vila de pescadores no mapa cultural, não só a nível nacional como até internacional. Através das suas atividades ele "vendeu" como até hoje mais ninguém conseguiu, a imagem da sua terra, nas décadas de 1920 a 1960, como se tratasse uma autêntica "secretaria de estado da cultura e turismo", apenas dedicada a Olhão. Vivia-se então um momento de prosperidade económica atendendo ao labor das pescas, navegação de cabotagem e, sobretudo, à indústria conserveira e, nesse sentido, Francisco Fernandes Lopes foi também o homem certo no momento certo.
Em 1924-28, já em Olhão, organiza o seu primeiro ciclo de "Serões Musicais", no Grémio Olhanense, onde executa dezenas de palestras, ilustradas por excertos musicais executados por um grupo ensaiado por ele próprio.
Estes Serões Musicais adquiriram grande notoriedade nacional, tendo trazido à vila nomes importantes da música como Luís de Freitas Branco (diretor artístico do Teatro de S. Carlos), Ruy Coelho, Francine Benoit, e a musicóloga Ema Romero da Câmara Reis (esposa de Luís da Câmara Reis). Esta convida Francisco Fernandes Lopes para repetir algumas das suas palestras em Lisboa (integrado num ciclo de conferências chamado Divulgação Musical) e publica-as na sua obra "Seis anos de divulgação musical" (Lisboa, 1929-1930). Foi no âmbito deste convite que Francisco Fernandes Lopes fez ouvir em Portugal, pela primeira vez, em 25 de Janeiro de 1932, o Pierrot Lunaire, de Schoenberg.
Francisco Fernandes Lopes escreve ainda sobre música em vários jornais regionais, nacionais e em revistas francesas da especialidade (entre 1924-27 publica vários artigos sobre música portuguesa na La Révue Musical, dirigida por seu amigo Henri Prunières).
Em 1929-30, continua um segundo ciclo dos seus "Serões Musicais" em Olhão e é convidado a participar em novas conferências musicais em Lisboa (1934) e em programas radiofónicos na Emissora Nacional , onde fica célebre uma sua palestra, pela polémica - "A evolução do Fado, da guitarra à sinfonia"(1935).
Estudou profundamente a música das Cantigas de Santa Maria da autoria de D. Afonso X de Castela, o rei sábio (primeiro rei cristão a intitular-se Rei dos Algarves). Os termos Santa Maria referem-se à Terra de Santa Maria, designação medieval da região de Faro. Estas cantigas tinham um problema de decifração e o Dr. Francisco Fernandes Lopes recebeu uma bolsa da Junta de Educação Nacional para as decifrar, tendo-se deslocado a Madrid, ao Escorial e a Sevilha. Em 1944, apresentou uma comunicação muito aplaudida sobre o assunto no Congresso Luso-Espanhol em Córdova e, em 1950, no II Congresso Regional Algarvio. Em 1985, já depois da sua morte, a Câmara Municipal de Olhão publicou este seu trabalho sob o título "A música das cantigas de Santa Maria e outros ensaios".
Em 1937, presumivelmente a convite de Ivo Cruz, faz a primeira tradução para português da Ode à Alegria, de Shiller (no final da 9ª Sinfonia de Beethoven), muito apreciada pelos críticos da época. Luís de Freitas Branco no jornal "O Século" escreve:
Lamentamos que o tempo e o espaço nos não permitam fundamentar largamente a nossa admiração pelo trabalho do dr. Francisco Fernandes Lopes, que traduziu para português a Ode à Alegria de Shiller, que as vozes entoam no final. Não resistimos porém ao impulso de salientar o modo feliz como foi resolvido o difícil problema da entrada do coro sob as duas sílabas de Freude.
Francisco Fernandes Lopes também compõe a música de fundo para o Auto das Rosas de Santa Maria, escrito pelo poeta algarvio Cândido Guerreiro, que é executado em público pela Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional (maestro Pedro de Freitas Branco), em Sagres, no ano de 1940, no âmbito das Comemorações da Fundação da Nacionalidade.
Interessa-se também por História, sobretudo dos Descobrimentos, escrevendo vários artigos sobre a localização da Vila do Infante (que revela ser em Sagres e não no Cabo de S. Vicente), da vida de Cristóvão Colombo, dos irmãos Corte-Real, de Duarte Pacheco Pereira, dos castros e fortalezas portuguesas em África e, sobretudo, da vida do Infante D. Henrique, com a publicação em 1960 do livro "A Figura e a Obra do Infante D. Henrique", ao qual foi atribuído o único Prémio no Concurso das Comemorações Henriquinas desse ano.
Publica ainda vários artigos sobre Olhão (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira) e estuda a gesta colonizadora dos marítimos olhanenses no sul de Angola, em finais do séc. XIX.
Finalmente dedicou-se ao estudo da Filosofia e Arte (na filosofia, dedicou-se sobretudo a Schelling, e na pintura, era um profundo conhecedor da italiana, especialmente da escola de Giotto) e chegou a ser convidado para lecionar Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa em 1919, por Leonardo Coimbra, então Ministro da Instrução e, segundo o próprio Francisco Fernandes Lopes, por indicação de Fernando Pessoa e mais alguns amigos comuns.
Foi também diretor da revista Afinidades, de cultura luso-francesa, editada em Faro e Lisboa, de 1942 a 1946, que teve como colaboradores sumidades como Abel Salazar, Adolfo Casais Monteiro, João Gaspar Simões, Mário Dionísio, Lionel de Roulet e sua mulher Hélène de Beauvoir, André Malraux, Antoine Saint-Exupèry, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir.
No Algarve, sobretudo em Faro, foi professor em diversas escolas - Liceu Nacional João de Deus em Faro, a Escola Primária Superior de Faro (da qual foi diretor durante 7 anos, de 1919 a 1926, por convite de Leonardo Coimbra, depois de ter recusado um convite do mesmo Leonardo Coimbra para lente da Faculdade de Letras em Lisboa) e a Universidade Popular do Algarve - e de diversas disciplinas totalmente diferentes, desde as línguas - dominava o castelhano, francês, alemão, italiano e russo -, até à Matemática, História e Ciências Naturais, Geografia e Desenho.
Uma faceta menos conhecida do seu génio verdadeiramente renascentista é o facto de ter inventado vários artefactos e métodos, como por exemplo:
Como estudioso de quase tudo, Francisco Fernandes Lopes tinha uma atitude categórica para alcançar a verdade: "É preciso ir sempre até ao fundo do fundo do contrafundo de tudo quanto estudamos".
Apesar da sua erudição extraordinária, o Mestre era um homem simples, distraído e até descuidado com ele próprio, quer no vestir, na alimentação, quer mesmo no dormir. Dizia que comia quando tinha fome e dormia onde quer que fosse quando tinha sono.
Não renegava a sua origem social pobre e analfabeta - o pai foi comerciante de peixe - e dizia frequentemente que precisava recuperar o que os seus antepassados não puderam aproveitar. Talvez por isso, quando se casou em Olhão com Raquel Pousão do Ó (sobrinha do pintor Henrique Pousão e prima do poeta João Lúcio), em 9 de Junho de 1915, não quis trajar o melhor fato e pôs sebo nos sapatos para estes não brilharem demasiado...
Foi pai de cinco filhas e um filho, aos quais deu nomes curiosos: Belkiss (nome da Ópera que musicou, retirado de um poema de Eugénio de Castro), Melusina, Raquel , Isis , Selma e o Francisco Lopes (júnior) - o Lopinhos - também médico.
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Tal como Sócrates em Atenas, ele era visto frequentemente a discutir e ensinar na rua, deambulando pela avenida principal de Olhão, num café ou numa das várias sociedades recreativas que animavam a Vila. Tão grande era o entusiasmo com que discutia, que esquecia as horas e até, por vezes, os motivos que o tinham feito passar ali... Por vezes, perante a pertinência dos seus argumentos e a sua firmeza, os seus opositores despeitados não resistiam a chamarem-no burro, cavalgadura e outros adjetivos soezes, tendo os amigos que puxar o Dr. Lopes para casa, para ninguém chegar a vias de facto com ele.
Quando terminava as suas aulas em Faro, porque os horários dos transportes não eram os mais convenientes, frequentemente vinha a pé para Olhão (cerca de 10 km), conversando e ensinando o pequeno grupo de alunos que o acompanhava. Nunca comprou carro nem aprendeu a conduzir. Quando a idade avançada começou a atrasar-lhe o passo, ao sair do Posto Clínico onde trabalhava em Olhão, na Avenida Bernardino da Silva, frequentemente era visto a pedir boleia à primeira viatura que passasse, para recolher a casa.
Francisco Fernandes Lopes, atendendo ter uma família muito numerosa, tinha também algumas dificuldades económicas, pelo que era obrigado a revelar, para além do seu génio intelectual, a sua faceta prática de operário habilidoso quando em sua casa substituía o carpinteiro, o canalizador ou até o sapateiro: efetivamente, era ele próprio que fazia e colocava as meias-solas das suas botas ...
Em 1940 - era ainda o Mestre bem vivo (faleceu só em 1969) -, a Câmara Municipal de Olhão, em sua homenagem, deu o seu nome à rua onde nasceu, pelo que ele, com humor, costumava dizer que não deixava de ter uma graça muito especial o ser capaz de viver com a sua pedra tumular sempre em frente dos olhos!
O amor imenso pelo povo da sua terra, fizeram-no resistir sempre aos convites prestigiantes para lecionar nas Universidades de Lisboa, Porto e Coimbra. Para ele, o "velhíssimo Reino do Algarve mais cantado" era "aquele que tem Olhão no centro" e "Olhão era um laboratório de sociologia permanente, viva, prática e aplicada, que vale sempre a pena e cada vez mais estudar, compreender e aprofundar, tão rica e surpreendente se nos apresenta". Segundo Alberto Iria escreveu em 1936 (Do Algarve ao Brasil no caíque de pesca "Bom Sucesso" em 1808: um episódio à margem da Guerra Peninsular (excerto de uma tese), deve-se a Francisco Fernandes Lopes a invenção dos termos "Vila Cubista" para designar a então Vila de Olhão. Independentemente de quem inventou tal termo (alguns referem ter sido Roberto Nobre ou José Dias Sancho) foi sem dúvida Francisco Fernandes Lopes que lhe deu eco nacional e internacional nos anos de 1920 a 1960.
Nessa época, vinham a sua casa muitas figuras intelectuais estrangeiras para conhecer pessoalmente Francisco Fernandes Lopes e ele, servindo de cicerone, mostrava a sua terra, a vila cubista, a mais mourisca da Europa, como ele dizia, com as suas açoteias, mirantes e pangaios, que só existiam no norte de África e em Olhão. Aconselharia a leitura de um texto extremamente interessante de um destes estrangeiros - Jacob Job, Director da Rádio Zurich - que em viagem por Portugal conheceu o Mestre - clique aqui!
São exemplos de personalidades internacionais que se deslocaram a Olhão o Marechal Carl Gustaf Emil Mannerheim (herói das guerras fino-russas e Presidente da República da Finlândia), a Princesa de Lichtenstein, o Barão Boris von Skossyreff (auto-proclamado Rei de Andorra), o geógrafo Pierre Deffontaine, o filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1939), os escritores Georges Duhamel, Jean-Louis Vaudoyer, Emile Henriot, Daniel Rops e Simone de Beauvoir (em 1945, porque sua irmã Hélène de Beauvoir casou-se com Lionel de Roulet, enteado de Carlos Porfírio, e viveu em Faro de 1940 a 1942 em Faro), o arabista Evariste Lévy-Provençal, os pintores Mário Eloy, Fausto Sampaio e Eduardo Viana, o crítico musical austríaco Paul Stefan e o geógrafo Orlando Ribeiro. Mas também privou e trocou correspondência com um sem número de intelectuais estrangeiros que provavelmente nunca vieram a Olhão como Miguel Unamuno e Blas Infante (com quem colaborou na homenagem que se fez em Silves ao último rei muçulmano Al-Motamid, em 1928).
Francisco Fernandes Lopes é o nº7. Fotografia tirada no casamento da filha do Dr. Carlos Fuzeta (nº 1). Identificamos ainda a filha do Dr. Carlos Fuzeta, Rita Fuzeta (nº2), o genro, advogado Dr. Ponte (nº3), o Dr. Bernardino da Silva (nº5), Lourenço do Ó (nº8), 12 - esposa Dr Fuzeta, 13 - José Mendes de Sousa Calé (pai de Maria Celeste Calé), 22- Teresa Bernardino (filha do Dr. Bernardino da Silva). As restantes pessoas não conseguimos identificar. |
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Daniel Rops em visita a Olhão em Novembro de 1951 com o dr. Francisco Fernandes Lopes. Daniel Rops foi historiador e escritor francês da Academia Francesa, nascido em 1901 e falecido em 1965. Foi o escritor francês mais lido do pós-guerra, sobretudo nos meios católicos. |
Georges Duhamel foi médico e escritor francês, nascido em 1884 e falecido em 1966, membro da Academia Francesa e Presidente da Alliance Française.
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Além da actividade de estudo e criação artística foi ainda um cidadão empenhado no desempenho de inúmeros cargos: Médico Municipal , Subdelegado de Saúde , Director Clínico do antigo Hospital de Nossa Senhora da Conceição, representante da Ordem dos Médicos , Ordem dos Advogados e Ordem dos Engenheiros no Conselho Municipal, Juiz de Tutoria de Infância, etc.
Em 1924 protagonizou uma agressiva polémica nos jornais regionais contra outro olhanense, Francisco Marques da Luz (escritor da época conhecido pelo pseudónimo Marcos Algarve) por este ter escrito um livro escandaloso "Amor à francesa" onde se insinuavam situações amorosas picantes entre algumas personalidades conhecidas de Olhão, nomeadamente ele próprio e outros como o cónego da Vila, o que se revelava insultuoso pela inverdade.
Politicamente foi um republicano radical na sua juventude que, por vezes, se assumia como anarquista. Pertenceu ao corpo redactorial de uma revista mensal - a "Mocidade", publicada em Lisboa entre 1901 e 1905, que congregou jovens estudantes republicanos e libertários. Aquando da instauração da República em 1910, com 26 anos e enquanto terminava o seu curso de Medicina em Lisboa, advogava a instauração da Ditadura Republicana por um período temporário, de forma a ensinar os valores republicanos ao Povo e assim libertá-lo do jugo cultural dos caciques monárquicos da província (ver artigos publicados n' A República Portuguesa)! Após a juventude, nunca revelou grande interesse por se engajar em visões ortodoxas e evitou a participação activa na política, se bem que continuasse sendo um espírito simultaneamente corajoso e demasiado irreverente para a época. Nos anos de 1940, segundo relatos de alguns dos seus contemporâneos ainda hoje vivos, Francisco Fernandes Lopes, tinha em casa, escondidos no meio de revistas diversas, alguns números do "Avante" - jornal oficial do Partido Comunista Português - e no Arquivo de Olhão encontra-se correspondência do Conselho Nacional de Unidade Anti-Fascista, datada de Agosto de 1944. A filha referiu-me que o pai, se bem que da oposição, atendendo ter uma família tão grande e poucas posses económicas, nunca quis tomar posições demasiado contrárias ao regime totalitário do Estado Novo. Sabemos que costumava assumir-se mais como anarquista que como socialista ou comunista. Nunca confiou nas ideias mais ortodoxas do socialismo científico e suas aplicações soviéticas como se pode ver de uma carta sua, datada de 1948, ao Padre Diniz da Luz.
A PIDE tinha-o referenciado como avesso ao Estado Novo, mas pouco ativo politicamente. A pedido da PIDE, o presidente da Câmara Municipal, dr. Fausto Redondo Pinheiro (1946-1950), informa em 23 de janeiro de 1948:
Embora não esteja integrado na doutrina do Estado Novo, é contudo pessoa que nos presta toda a colaboração não só como membro do Conselho Municipal, mas em todos os actos para que a sua presença é chamada. É um publicista distinto, pessoa de nome no meio intelectual português, colaborador das obras do S.N.I. e Cultura Popular, além de ser um modelar chefe duma família numerosa, não tendo outros rendimentos senão aqueles que da sua clínica resultam.
Duas histórias mundanas revelam sua faceta política agnóstica e liberal, embora sempre pouco engajada em doutrinas ideológico-partidárias:
1º - Em 31 de Outubro de 1948, foi inaugurado em Pechão o lavadouro público com toda a pompa e circunstância: para o momento do corta-fitas estavam presentes o Governador do Distrito, o Presidente da Câmara e todas as sumidades políticas e religiosas locais. Foram convidados para discursar em primeiro lugar o Padre Delgado (Cónego de Olhão) e em segundo lugar o Dr. Lopes. O Padre Delgado terá realçado que atrás do esforço dos homens na concretização da obra, estava sempre o dedo omnipresente de Deus, a quem em última instância todos deveriam estar agradecidos. Seguidamente, o Dr. Lopes introduz o seu discurso, tentando fazer algum humor, dizendo que, se antes dele falou o Padre Delgado como representante de Deus, então ele, que não era padre mas tal como a ele também lhe tinham dado a imortalidade [alusão ao facto, então bem conhecido, de a Câmara Municipal ter atribuído a ambos, ruas com os seus respetivos nomes, apesar de ainda vivos...], só poderia falar como representante do Diabo!... Esta introdução provocou um tal coro de vaias e apupos da audiência que o Doutor não teve remédio senão calar-se e regressar a Olhão a pé, pela estrada poeirenta e ainda não alcatroada - o Presidente da Câmara que se tinha prontificado para o levar à boleia não o quis trazer de regresso - num dia com temperaturas escaldantes ... Nesse dia, quando o Doutor chegou a Olhão, encarniçado do calor, encontrou o meu amigo Manuel Rodrigues Madeira, então um jovem, a quem ele pediu que lhe dactilografasse um texto de protesto para propor ao jornal Correio Olhanense. Evidentemente, o jornal em causa, bem acomodado ao poder salazarento da época, recusou-se a publicar o artigo e, bem pelo contrário, publicou um artigo no número de 7 de Novembro de 1948, na qual o seu Redactor Principal, Mário Gentil-Homem, referia que o Dr. Lopes teria sido possuído pelo Diabo naquele momento... Devido ao sucedido, Francisco Fernandes Lopes perdeu o certificado de professor, que o habilitava oficialmente a dar aulas no sistema escolar público. |
1959: Comissão de homenagem à viagem de José Belchior e Felismina Inês, organizada em Olhão em 1959, com Francisco Fernandes Lopes ao centro e, à direita, o irmão de José Belchior, a mãe e o pai. |
2º - Em 1959, quando José Belchior e Felismina Inez atravessaram o Atlântico, de Olhão ao Brasil, num pequeno veleiro de 6,5 metros de comprimento, o acto heróico foi muito celebrado na Vila. Todos os notáveis da comissão de comemoração então criada, esqueciam-se sistematicamente de referir Felismina nos seus discursos, atendendo esta ter abandonado o seu marido para acompanhar José Belchior, o que era na época um escândalo. Só Francisco Fernandes Lopes não se esqueceu de homenagear publicamente Felismina pela sua coragem... Em relatório da PIDE, sobre o acontecimento, lê-se que se referiu no seu discurso sobretudo a Felismina:
... focando o facto da mulher ter abandonado o seu marido e acrescentando que isso não era razão para lhe atirar pedras. Ela deixara-o por "Desamor" para se juntar àquele que amava. Se assim procedessem o mesmo teriam de fazer (...) com Amália Rodrigues, há ainda pouco tempo condecorada pelo governo. Que se a Felismina vivia amancebada era porque as leis não consentiram que ela casasse com o Belchior, mas que talvez quando as leis um dia se voltassem a amancebia se desfizesse.
Disse seguidamente que o povo de Olhão não poderia deixar de homenagear aqueles "heróis" já que quem devia fazê-lo "vilmente o esquecia"(...).
Uma outra história curiosa contada por Manuel Madeira que teria ocorrido nos últimos anos da 2ª Guerra Mundial dá bem a ideia do perfil oposicionista de Francisco Fernandes Lopes:
Era, como se sabe, muito versátil em quase todas as áreas do conhecimento humano, como as Artes e as Letras, Filosofia, Ciências, História, Filologia, Musicologia, Musicografia, escrevendo e executando trabalhos musicais que divulgava também a partir de alto-falantes instalados em pontos altos da Avenida da República, acompanhados de comentários e explicações emitidos por ele, pessoalmente. Assistimos, o Raul e eu, muitas vezes a estas exibições, entre os anos 40 e 50, sentados na relva do pequeno jardim de João Lúcio, ou em bancos adjacentes, com muitas pessoas interessadas assistindo também quando o tempo permitia e convidava.
Recordo uma vez em que ele tocava uma sinfonia de Eduard Grieg, compositor norueguês, de uma grande suavidade melódica, enquanto o Dr. Lopes dizia: «oiçam com muita atenção, porque estão ouvindo uma poeirada musical».
Mas, desta vez, no Café Danúbio falava-se de política, então muito em moda…na clandestinidade, porque a Pide «estava em toda a parte»: ouvidos estranhos escutavam até o impossível, e o medo acompanhava-nos sempre. Por uma razão ou por outra, o médico não se manifestava intimamente nestes domínios. No entanto, nesta ocasião falando com o José Lopes de Brito que também estava presente, disse: «homem! Tu parece que tens o Staline na barriga!». E foi para a sua casa, por ser já tarde. No dia seguinte, passou, como era costume (ficava em mão) pelo pequeno escritório onde eu trabalhava e convidou-me a ir com ele a sua casa: queria mostrar-me uma coisa. E fui. À porta, mandou-me entrar, dirigiu-se ao seu escritório no rés-do-chão, abriu a gaveta de um móvel repleto de livros, tirou um envelope relativamente grande, meio aberto, retirou de dentro um maço de pequenos jornais em papel bíblia, dobrados, mostrou-mos: eram «Avantes», jornais do partido Comunista Português, e disse-me: «só tu ficas sabendo!». E guardou-os de novo, enigmaticamente.
No entanto, em 1961, quando se inicia a guerra colonial em Angola, com um primeiro ataque sanguinário a algumas famílias de colonos portugueses, em que estes são mortos à catanada, Francisco Fernandes Lopes põe-se ao lado da então posição oficial portuguesa, advogando que Portugal tinha direitos históricos sobre a sua África, ao contrário das outras potências europeias.
J.H. Botelho Júnior revela no O Olhanense de 1-8-2003 algumas das suas memórias resultantes do convívio que teve com o Francisco Fernandes Lopes já na fase final da vida, em Lisboa, e um amigo de ambos, o Dr. Israel Anahory. O Mestre esboçava uma concepção filosófica que designava "Bioverismo", segundo a qual os valores morais, assim como as manifestações psíquicas teriam uma base biológica. Por outro lado, o psiquismo também teria manifestações biológicas. Avançava com dois exemplos curiosos: a agressividade militar de Napoleão seria devida a inflamação da hipófise, e os traços psíquicos e biológicos de Salazar seriam decorrentes da recusa que em jovem sofreu da Sra. Asseca, fidalga que o teria repudiado por ele ser apenas o filho do caseiro.
J.H. Botelho Júnior revela ainda que o Mestre continuava com imensos projectos, nomeadamente escrever uma história da filosofia (pois que a leitura de uma publicação com este título de Bertrand Russel não o tinha satisfeito) e uma antologia comentada de Bocage. Queria também regressar a Olhão, e para tanto mandaria restaurar uma das casas que herdara do pai. " O Dr. Anahory, ouviu-o com uma ternura comovida, pousou-lhe a mão sobre o pulso e disse-lhe: oh Lopes, eu acho melhor que mandes restaurar o jazigo da família...' Não muito tempo depois, faleciam estes amigos, com meses de intervalo."
Efectivamente, Francisco Fernandes Lopes morreu dia 6 de Junho de 1969, cerca de um mês depois da sua mulher.
Aqui poderá ver um conjunto de fotografias adicional de Francisco Fernandes Lopes que constitui uma autêntica fotobiografia.
A produção bibliográfica de Francisco Fernandes Lopes encontra-se dispersa por dezenas de jornais e revistas, havendo ainda muitos trabalhos publicados embora desconhecidos dos seus bibliógrafos, ou totalmente inéditos que nunca viram a luz do dia. Fornece-se uma listagem de publicações baseada em grande parte na recolha bibliográfica de Antero Nobre (O Doutor Fernandes Lopes, apontamento bio-bibliográfico - Separatas de "A Voz de Olhão", Olhão, 1984):
A- Publicações relacionadas com o tema Música:
B- Publicações relacionadas com o tema História:
C- Publicações relacionadas com Olhão:
D- Publicações relacionadas com outros temas:
Há ainda comunicações e obras desaparecidas para as quais existem referências, nomeadamente no seu espólio que se encontra no Arquivo Municipal de Olhão:
"Consequências dos Descobrimentos Henriquinos na Lusitanização do Ultramar Português", Sociedade de Geografia de Lisboa, 1960
Um bailado com meia-hora de música, sobre o libreto Melos de Marie Laure que concorreu ao Prix Biarritz (antes de 1960)
Um bailado com libreto sobre Cristóvão Colombo e uma partitura em piano que concorreu ao Concurso Internacional de Génova (antes de 1960)
Resumidamente, poderemos encontrar artigos de Francisco Fernandes Lopes pelo menos, nas seguintes revistas e jornais nacionais e internacionais:
e nos seguintes jornais regionais:
Finalmente disponibilizamos uma relação de obras musicais que conhecemos:
Cristóvão Colombo (bailado)
Belkiss em 1907-1908 (esta ópera, a partir de um poema em prosa de Eugénio de Castro, foi acabada por Ruy Coelho);
Balada de Fumo (ópera, publicada em 1913);
Auto das Rosas de Santa Maria (escrito pelo poeta algarvio Cândido Guerreiro, no ano de 1940);
Seis composições para piano inspiradas em sonetos de D. Luís de Góngora e Argote;
Ó Madame (canto e piano, poesia de Jean Cocteau);
Chanson du sixiéme hiver (canto e piano, poesia de Aragon);
La mort de Marie (canto e piano, poesia de Pierre de Ronsard);
A saudade (canto e piano, poesia de Afonso Lopes Vieira);
Tarde (canto e piano, poesia de Fernanda de Castro);
Os teus olhos (poesia de João Lúcio);
Como acorda um bosque (canto e piano, poesia de Bernardo de Passos);
Embalando um coração (canto, coro e piano, poesia de Bernardo Passos).
(para ouvir algumas destas músicas clique aqui).
Autor: António Paula Brito, 2007
Fonte:
| Barbosa, José - Visto e ouvido... em Olhão... reflexões - 1ª ed., Olhão: Câmara Municipal de Olhão, 1993 |
| Botelho Júnior, J.H. - O saudoso Dr. Fernandes Lopes - Jornal O Olhanense, Olhão, 1 de Agosto de 2003, p. 3. |
| Cadafaz de Matos, Manuel - Francisco Fernandes Lopes (1884-1969): um historiador na sua diversidade; elementos para uma biografia – Faro, Delegação Regional da Cultura do Algarve, 1994 |
| Fidalgo, Andreia - Francisco Fernandes Lopes, um invulgar médico olhanense in Contributo para a história da saúde no Algarve - Faro, Universidade do Algarve, 2013 |
| Lopes, Francisco Fernandes - A Música das Cantigas de Sta Maria e ouros ensaios - Olhão, Câmara Municipal de Olhão, 1985 |
| Iria, Alberto - Centenário de Francisco Fernandes Lopes: cartas coligidas e comentadas - Faro: Universidade do Algarve, 1986 |
| Marreiros, Glória Maria - Quem foi quem?: 200 Algarvios do Sec. XX - 1ªed. Lisboa: Colibri, 2000. |
| Nobre, Antero - Uma figura da Renascença gesgarrada do séc. XX - Jornal "A Voz de Olhão", 30-06-1977 |
| Nobre, Antero - O Doutor Fernandes Lopes, apontamento bio-bibliográfico - Olhão: Separatas de "A Voz de Olhão", 1984 |
| Villares, João - A vida em Olhão no tempo do Padre Delgado - Faro: Seminário Episcopal de S. José do Algarve, 1989 |
| Texto de Conceição Pires, retirado do site da Escola Secundária Dr. Francisco Lopes |