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Os três artigos que se seguem foram publicados no jornal republicano radical da manhã “A República Portuguesa”, em 16, 19 e 21 de Março de 1911, quando Francisco Fernandes Lopes tinha apenas 26 anos e assumia-se como um republicano radical, embora já desgostoso com o caminho que o Republicanismo traçava com apenas 6 meses de existência (recorde-se que a República foi implantada no dia 5 de  Outubro de 1910).  A República era, nesse momento, uma mudança de regime cataclísmica, pelo menos do ponto de vista simbólico, porque tinha posto fim a um regime monárquico que, simbolicamente, era o único regime existente na Europa desde o fim do Império Romano!

Na altura discutia-se a lei eleitoral e Francisco Fernandes Lopes, com este este primeiro artigo, entrava na discussão.

Segundo a lei eleitoral de então, o País seria dividido por círculos eleitorais sempre com 4 deputados, excepto Lisboa (dois círculos com 10 deputados cada), Porto (um círculo com 10 deputados) e as Colónias (um círculo com 1 deputado para todas as colónias). Qualquer cidadão poderia disponibilizar-se para deputado, embora apenas para um só círculo. Para ser candidato a deputado, esse cidadão teria de conseguir 50 assinaturas de outros cidadãos residentes nesse círculo e que não poderiam assinar por mais nenhum outro candidato.

Posta esta breve introdução, seguem os três artigos de Francisco Fernandes Lopes sobre o tema.

 

Reforma eleitoral e eleições – As nossas considerações - I

(16-03-1911)

Eis enfim a lei eleitoral.

Primeiro que tudo devemos fazer lembrar que, no programa do Partido Republicano, o que se acha consignado relativamente às bases duma reforma eleitoral é o seguinte: sufrágio universal; representação de minorias.

Desde já devemos dizê-lo: não era uma lei de defesa, uma lei de circunstância, uma lei, digamos tudo, para ganhar ou, pelo menos, para não perder a maioria dos deputados, o que nós desejaríamos que tivesse vindo a lume, para honra da República.

Nós desejámos, desejaríamos que a esta hora o partido republicano em vez de tendente a enfraquecer-se pelas rivalidades ambiciosas dos seus ídolos e pela invasão dos bárbaros da Adesão, em vez de forçado a pactuar com os caciques, se encontrasse fortalecido e, mais do que isto, seguramente organizado por todos o país, para poder resistir aos assaltos dos adversários e para constantemente lhes contrariar os manejos e aniquilar a vitalidade.

O Partido Republicano devia continuar, organizado por todo o país, até final – quer dizer até estar o país completamente republicanizado – a obra de dissolução das influências dos caciques locais de toda a espécie: os caciques do carneiro e caciques da simpatia e da pseudo intelectualidade, como a Revolução começou, a destruição efectiva da organização monárquica. A libertação do caciquismo não pode por natureza ser apenas e sobretudo uma obra da alçada da acção legal: certamente algumas leis da República destruirão um tal ou qual predomínio ou possibilidades de predomínio dos antigos sobas.

Mas criarão sobretudo condições de facilidade e fecundidade para a acção moral que tem de ser exercida, quer pela propaganda em comícios e conferências, quer pela propaganda constante dos republicanos locais, destinada a fortalecer os fracos de espírito e a guerrear os caciques morais que uma vez sentindo um meio hostil perderão da sua prosápia, do seu desatino, da sua importância, em suma, decairão do seu antigo esplendor. Esta propaganda ao mesmo tempo que vai contra as influências criadas, dirige-se, por sua natureza também contra as influências em via de criar-se. O ideal é, destruindo o caciquismo monárquico e talassa, impossibilitar o caciquismo republicano. É preciso, acabando com os deuses monárquicos, tornar impossível os deuses e régulos republicanos. Aqui é que há que dizer: nem Deus, nem dono. É preciso tirar aos nascentes régulos republicanos o seu espírito de domínio e de vingança, tornando-lhes impossíveis os manejos, patenteando-os como são, desacreditando-os como vis. É preciso introduzir o espírito de justiça no mais íntimo da vida política local, é preciso não «aceitar os homens como são», mas tentar torná-los menos piores e melhores se possível for. A República tem para o povo uma alta significação moral que, se ele fosse capaz de formulá-lo ideologicamente traduzir-se-ia por um ideal de Justiça.

Se se deixa perder e pior ainda se se perverte esta tendência moral, pode-se contar que o povo tem perdido toda a esperança e confiança na República. O povo o que quer, o que deseja muito embora digam os ambiciosos que ele não sabe o que quer – é que a República seja qualquer coisa que engrandeça Portugal, o torne rico e próspero interior e exteriormente, e de modo que do usufruto real e da consideração deste engrandecimento se possa ter o sentimento intenso e múltiplo que dá uma grande obra moralmente satisfatória.

Era para contribuir à realização desta obra que nós desejaríamos a esta hora que o Partido Republicano se achasse organizado e forte por todo o país, não tendo o Directório dormido como dormiu sobre os loiros da Revolução, e tendo sido o governo mais revolucionário, mais intransigente, mais radical e mais diligente.

Infelizmente todos se repousaram na doce e optimista convicção de que bastariam uns quinze dias antes das eleições para a propaganda eleitoral. A grande verdade democrática é que a Assembleia Nacional, não está nem pode estar no Parlamento, mas é permanente em todo o país. A verdadeira, fundamental Assembleia Nacional é, pelo contrário, esta assembleia especialíssima que toda a Nação constitui na extensão geográfica que Portugal ocupa, em que os indivíduos reunidos não se vêem nem se ouvem todos uns aos outros, mas têm possibilidade de se influenciar mutuamente, de se fazer ouvir, e só em última necessidade precisam dar mandato, passar procuração não a quaisquer dentro deles mas a certos, escolhidos quanto à sua capacidade moral e técnica, para numa reunião ordinária, em parlamento, ultimarem as discussões começadas, discutirem, resolverem e deliberarem segundo o espírito do mandato, o que há-de ser «lei» desde logo reconhecida ou, se o país for suficientemente esclarecido para a poder apreciar antes de entrada na prática, submetida primeiro ao referendo da grande e fundamental Assembleia geralmente que a Nação é.

Não se pensou assim. Mas pensou-se muito mal. Foi-se atrás da doutrina ilusória que faz do parlamento o sinal de uma vida regular, legal, que faz do parlamento a Assembleia da Nação. De modo que a Nação que está na base de todos os parlamentos foi descurada, e só para a factura do parlamento que passa assim a ter uma espécie de poder autónomo e originário é que se recorre ao período dos 15 dias de propaganda eleitoral. A Nação fica assim morta para a vida política como morta era no tempo da Monarquia e só intermitentemente se vem praticar o rito de lhe pedir os votos, de a chamar a burlar-se a si mesma, desempenhando-se com a maior inconsciência deste recado que a chamaram a desempenhar para se poder confeccionar o Parlamento autónomo, agora a verdadeira Assembleia Nacional legiferante e supremamente deliberante. O Parlamento acaba por aparecer assim, como uma coisa indispensável, insubstituível, primacial.

Nós não insistimos por ora mais nesta questão, porque em Portugal, agora, como nos tempos da monarquia, grandes teóricos que se interessam por estas questões de ideias, de orientação fundamental não os há, – pelo menos não aparecem. Dizem que isto são questões de lana-caprina, que não servem a prática. Não servirão, talvez. Mas nós vemos, quando chegam as horas graves de as fórmulas habituais se dissolverem, as horas em que há que ter ideias orientadoras, quer para salvar das fórmulas antigas o que é digno de salvar-se, quer para animar novas fórmulas, nós vemos, dizíamos, essas criaturas soçobrarem lamentavelmente e chafurdarem na mesma lama antiga, pondo sobre outro rótulo, sem discernimento, o que estava de mau como de bom. Se as ideias que supremamente orientam não servem de nada, o que serve então os excelentíssimos doutores?

***

Era única e exclusivamente para se ter feito o trabalho preparatório de dispor o país para que a vida parlamentar se pudesse desenvolver sem perigo para a República, de modo a se ter em toda a ocasião a República incarnada na Nação e não só no Parlamento – que nós desejáramos uma ditadura revolucionária em que a acção do governo ficasse livre e desimpedida como acção legal e a acção do Directório a secundasse como acção moral.

A Revolução não pode fazer o milagre de tornar republicana a grande maioria da Nação. Se muitos se tornaram sinceramente republicanos só pelo facto de a monarquia ter sido derrubada, à grande maioria dos que até à data o não eram em espírito – que já não dizemos de facto – a revolução não bastou. A estes precisava a República ganhar a adesão sincera com medidas concretas, com o seu procedimento demonstrativo de que realmente cria e sabia interessar-se a sério pelo país.

 Ora, para isto, algum tempo seria preciso. E em que melhores condições a República poderia mostrar a estes cépticos a sua capacidade do que numa situação desimpedida de ditadura?

Mas suponhamos mesmo que a República fizera o incrível milagre de converter em espírito a parte maior da Nação para que pudesse seguramente firmar-se no apoio moral destes cidadãos como para se implantar se firmara na dedicação de uma minoria ajudada da força das armas. Pergunta-se: bastaria que a maioria da Nação fosse republicana «em espírito», republicana «de direito» para o ser «de facto» pela manifestação por meio das urnas?

De modo nenhum. É que entre o sentimento ou a vontade dos cidadãos e a urna há interposto um meio fortemente refringente, desvirtuante das intenções que pode operar este milagre: uma Nação republicana em espírito, na sua maioria, resultar na urna, de facto, monárquica.

Este meio é a nuvem, a atmosfera, o ambiente das influências dos caciques.

Como dissemos, continuamos a dizer: o país não está nas condições próprias para que a Nação possa manifestar dum modo absolutamente livre a sua maneira de pensar em frente da República. Entre a intenção livre, a mais íntima e sincera, a mais pessoal do eleitor e a urna há o cacique. Este é que, pela sua existência, força de facto os cidadãos a não serem, na urna, da opinião a que espontaneamente tenderiam.

Era o tempo preciso para executar esta indispensável obra preparatória: obra de interessar à Nação na vida política, de a convencer de que a verdadeira Assembleia Nacional permanente é ela e de que o Parlamento é uma assembleia secundaria, transitória, ocasional, de circunstância, – preferível certamente a qualquer outro grupo ou personalidade para o trabalho técnico minucioso que o torna necessário e para que recebe mandato ou procuração – e mais o tempo de preparar o meio para que na ocasião da eleição deste parlamento a vontade da Nação não pudesse ser deturpada – era para isto, unicamente para isto, que nós desejáramos, naturalmente, um período ditadura – pois qual seria a forma? - esclarecida, revolucionária, fecunda e eficaz.

Uma vez a Nação preparada – o que em Monarquia se não fizera evidentemente, nem se podia fazer – e preparada não para a poliquice republiqueira mas para a verdadeira politica republicana, viesse então a eleição indispensável da Constituinte, eleição feita não segundo uma lei de circunstância mas, segundo o único sistema sem sofística - o sistema da representação proporcional, e feita pela Nação na sua universalidade politica: - pelo chamado sufrágio universal.

Infelizmente não se enveredou por este caminho. A miserável gente adesiva e os literatos republicanos com Bruno à frente começaram, uns por conveniência torpe e os outros por sincera insensatez, a berrar desesperadamente e reclamando eleições e a Constituinte.

Por seu lado o Directório republicano dormia, e o Governo desprezando quase completamente a sua tarefa ou tomando medidas que só muito indirectamente iam influir na extinção do caciquismo consumia-se numa acção pelo menos estéril desfalecendo assim à sua missão.

De modo que a situação acabou por tornar-se tal que até neste jornal os mais adversos às eleições quanto antes acabaram por reconhecer esta solução como a saída menos pior para uma situação política verdadeiramente intolerável.

Não o fizeram porém sem grande mágoa e grande lástima. Oxalá os que regozijam tenham tido razão.

 ***

Entendido que se seguiu um caminho errado e que a lei eleitoral tem de ser nesta situação uma lei de salvação ou de defesa, uma lei de circunstância, - pergunta-se: surtirá ela o efeito desejado?

E aqui importa primeiro que tudo esclarecer um ponto importante. O público bem sabe que nós não pertencemos ao partido do sr. António José de Almeida – se partido há – nem temos, acerca deste senhor, a opinião lisonjeira mas absolutamente lendária que corre – activamente, dizem-nos – por todo o país e, de cada vez mais, levada pelos pombos-correios adesivos, da sua grande inteligência, do seu grande valor moral, etc., etc. Julgamo-lo de há muito um tribuno popular retórico e vazio, vaidoso, empavonado e ambicioso, sem capacidade intelectual à altura do seu renome e com uma ombridade moral que entrou em decadência. Mas daqui a julgá-lo um traidor à República - traidor consciente e propositado vai muita distância.

O sr. António José há-de trair os princípios republicanos, como de resto tem já traído, fazendo a obra dos adesivos, há-de trair a República, não por cálculo, mas, mau grado seu, por inépcia da sua acção.

Querendo fazer bem à República há-de, por inépcia, fazer-lhe mal. Mas não há moralmente «traição» num procedimento destes. Justiça a quem deve ser feita: a ninguém é lícito suspeitar este homem de traição propositada aos princípios republicanos, como o nosso colega do Porto «A Montanha» o considera. Nós não achamos fundadas as suspeitas, nem justas as acusações, do nosso colega. Segundo ele, o sr. António José teria reeditado a «ignóbil porcaria» para eleger 40 deputados do seu partido em germinação.

Ora, primeiramente, o escrutínio da lista com representação de minorias nunca foi a «ignóbil porcaria» e, em segundo lugar, o programa do partido republicano está cumprido à risca, dando-se representação às minorias. Como dar representação às minorias senão pelo escrutínio de lista? Aos círculos nominais que são o sistema mais favorável aos caciques estritamente locais é sem dúvida preferível o escrutínio de lista. Ora o mínimo em escrutínio de lista é, no círculo de 3 deputados, a lista de 2 com minoria de 1, e no de 4, de 3 com minoria de 1.  Pode-se perguntar porque motivo o governo teria feito os círculos uniformemente de 4 deputados e não de 3. 0 governo responderia talvez que pela razão por que se repeliu os círculos uninominais, para entravar a força dos caciques locais.

E se se lhe perguntasse porque ficou nos de 4 e não fez círculos maiores diria provavelmente que, na medida em que os círculos crescem, crescem também a conveniência e a facilidade dos desdobramentos e a espécie de caciquismo «à rebours» que é a neutralização das votações das cidades e vilas pela votação das aldeias, das freguesias rurais.

De modo que os círculos de 4 votos são realmente os mais convenientes por se acharem no limite comum de duas imoralidades em regra inversa uma da outra: a da predominância dos caciques e dos desdobramentos escandalosos.

Ora a «ignóbil porcaria» é caracterizada pela qualidade dos círculos grandes, e mais pela desproporção da representação (ex.: em círculos de 7:5 de maioria e 2 só de minoria; em círculos de 6:5 de maioria e 1 só de minoria; em círculos de 5:4 de maioria e 1 só de minoria, etc.) e mais ainda pela confecção especial de alguns círculos como os de Lisboa e Porto em que a votação rural abafa a urbana tudo condições eminentemente favoráveis às tropelias eleitorais como as chapeladas e os desdobramentos. A «ignóbil porcaria» é isto. – Mas é forçoso reconhecer que, adentro do que podia fazer o governo fez o que era sensatamente o menos vergonhoso, o menos ignóbil e o menos porco.

De resto a responsabilidade do que se fez não é só do sr. António José: é de todo o governo, e, menos que nunca, do governo só, visto a consulta aos governadores civis sobre este ponto preciso, em que quasi por unanimidade aconselharam a adopção dos círculos plurinominais.

A lei eleitoral não é porém apenas o sistema de representação. Outros pontos há que resta examinar.

 Francisco Fernandes Lopes,  "Reforma eleitoral e eleições – As nossas considerações - I" in A República Portuguesa, Lisboa, 19-03-1911

 

 

Reforma eleitoral e eleições – As nossas considerações - II

(19-03-1911)

 

 Que, ainda, o sistema dos círculos plurinominais com lista incompleta e pois representação de minorias, adoptado, não é a reedição da «ignóbil porcaria», prova-o o que na lei se dispõe no § 2.° do artigo 42.º:

«A cada candidato só será permitido fazer parte de uma lista electiva no mesmo ou diversos círculos, sob pena de ineligibilidade»

e no art. 53.°:

«São nulos os boletins de voto nos quais se tenham inscrito nomes estranhos às candidaturas do círculo ou pertencentes a listas electivas diversas, etc. -»

É evidente que, por virtude destas disposições, os desdobramentos são todos impossíveis. Poderão os republicanos ganhar a minoria aos monárquicos ou aos adesivos, em alguns ou porventura em todos os círculos, mas será por uma votação efectiva, real e não fictícia, como quando era possível desdobrar.

A defesa que o sistema dos círculos plurinominais oferece à República está apenas, portanto, no arbitrário, que é próprio da sua essência: o fixar arbitrariamente a minoria ao sabor, é claro, das conveniências; decide-se assim para todos os círculos de quatro deputados que o partido maior de todos poderá levar três deputados e o maior dos restantes um deputado só, embora o primeiro exceda a votação do segundo de um voto apenas que seja: «Poderá levar», dissemos nós, e não levará, porque conforme se dispõe no artigo 90º:

«Em cada um dos círculos que não forem os de Lisboa e Porto serão considerados eleitos os tantos candidatos mais votados, quantos constituem a representação parlamentar do círculo».

Quer isto dizer que se o partido maior, uma vez decidida a sua lista (no que é preciso haver todo o senso, cercando de resto a lei esta apresentação das candidaturas de cuidados muito importantes) não votar nela integra, arrisca-se, onde os adversários forem em maioria numerosa e unida a perder todos ou alguns dos deputados que, como partido maior, pode conquistar.

Nós estamos certos que o bom senso dos republicanos locais lhes dará lucidez e perspicácia para que candidatura monárquica ou adesiva nenhuma vingue, a não ser onde de todo em todo não possa deixar de vingar. A defesa da República, nesta situação, está nisto. E foi isto o que com os círculos plurinominais de 4 deputados se pretendeu, a nosso ver; como de resto ainda com o facto de se não ter fixado desde já na lei tanto o número de círculos como a composição de cada círculo, facto que tanto magoou o “Dia”.

Não se sabe ainda, de facto, nem quantos os deputados serão, nem quantos serão os círculos, nem como serão confeccionados. Dos vários termos do problema só um é dado, por enquanto, o número 4 de deputados que terá cada um dos círculos. Quanto a Lisboa não se sabe porém muito mais. O que a lei dispõe é unicamente isto:

«Art. 33 § 1.°- O município de Lisboa constituirá dois círculos e o do Porto um, elegendo dez deputados».

Em rigor só se conhece por ora a composição dum único círculo – o círculo cuja área é todo o município do Porto.

Mas o município de Lisboa como ficará concretamente dividido? Ainda se não sabe.

E menos se sabe ainda segundo que critério: - se de habitantes, se de eleitores inscritos -  que o de votantes fica, excluído, estando já fixado para cada círculo o número dos deputados.

Seria para desejar que se estabelecesse um quociente uniforme, para Lisboa e Porto e para todo o país ficando, assim todos os círculos de 4 deputados com o mesmo número de habitantes ou com o mesmo número de eleitores inscritos, e tanto neles, como em Lisboa e Porto, cada deputado à razão do mesmo quociente.

Se o governo quer adoptar o segundo critério – a nosso ver o mais razoável, já que se não pode adoptar o dos votantes – é evidente que os círculos só poderão ser talhados depois de feitos os recenseamentos.

Então, homologando os círculos de 4 deputados pelos de 10, fixar-se-ia o número total dos deputados uma vez fixado o quociente de eleitores inscritos, ou vice-versa.

Esperamos que o governo fará o que mais convier à República, já que se teve de entrar, repetimos, neste errado caminho de defesa habilidosa, por via do clamor pérfido ou insensato de uns e dos descuidos e ilusões de outros.

  Francisco Fernandes Lopes,  "Reforma eleitoral e eleições – As nossas considerações - II" in A República Portuguesa, Lisboa, 16-03-1911

 

 

Reforma eleitoral e eleições – As nossas considerações - III

(21-03-1911)

 

Conforme não já propriamente ao programa do partido republicano, mas a decisões posteriores de comícios e não sabemos mesmo se de congressos, além do sistema dos círculos plurinominais produziu-se na lei, para Lisboa e Porto, o sistema da representação proporcional.

Seria caricato dizer que isto foi feito a título de ensaio.

Numa lei de defesa não se percebe muito bem a razão deste ensaio.

De resto, ensaiar o quê? Cada sistema de representação não dá senão aquilo que pode dar. Mas se intervêm a falar da «necessidade de ensaiar» os receosos, os circunspectos, os homens da frase banal, sobre a qual já Kant fizera uma dissertação, (Da frase banal: isso pode ser verdadeiro em teoria, mas não vale nada na prática), é isso prova de que essa gente não quer, no fundo, a representação proporcional ou não percebe nada a tal respeito.

O ensaio só poderia servir para provar a eficácia do método ou processo que se dá como meio de conseguir essa representação. Mas aqui, como em tudo quando se trata de reconhecer a verdade de uma noção, não é à prática que se recorre primeiro, mas é ao espírito, à inteligência, à razão – para analisar e ver se se consegue demonstrar verdade dessa noção.

Qualquer método de representação proporcional que se vai praticar com qualquer extensão, o que tem é de não ser irracionalmente ensaiado, mas sim primeiro examinado, a ver se satisfaz ou não ao fim a que foi proposto. Porque uma vez examinado e reconhecido, com as devidas prevenções, garantidamente exacto, bastará pô-lo então em prática nas condições requeridas para o ver surtir necessariamente o efeito previsto.

Que, se, porém, na prática, como em toda a empresa humana pode suceder uma contingência se introduzir, quer por descuido nosso, quer por impossibilidade de precisão da nossa parte, só resta examinar o resultado e tentar ver, analisando-o comparativamente com o que devia previamente ser, em que medida foi deturpado e a que foi esta deturpação devida, ou seja, tentar descobrir o que é que de contingente se introduziu.

Mas, precisamente porque a contingência, no caso de que se trata, não é de facto tão desconhecível, nem tão imprevisível como à primeira vista poderia supor-se, mas a uma análise suficiente pode ser revelada e, então, tomada em conta, se inevitável, ou arredada, se evitável, para que o problema se simplifique é que se requer um estudo detalhado, minucioso, atento por parte de quantas criaturas realmente competentes se oferecerem. Não é que a verdade, para ser autenticada, precise de ser vista por mais de uma inteligência humana, mas é porque mais fácil é a prevenção contra o erro e a deficiência de atenção por parte de muitos igualmente competentes do que por parte de um só.

Examinar, pois, se um método de representação proporcional proposto satisfaz ou não ao fim requerido, eis o que importaria; e, no caso de não satisfazer, estudar a questão no sentido de procurar uma exacta solução absoluta, se possível, ou, quando menos, aproximada.

Em vez de ensaiar, pois, o método de Hondt, que é o proposto na lei para a prática da representação proporcional, havia primeiro que examinar se ele é um método de representação proporcional. Porque não está de modo nenhum estabelecido que o seja.

O governo terá errado de boa fé. Mas não é menos certo que errou, se pretendeu com a adopção do método de Hondt, fazer representação proporcional.

É verdade que os resultados desconcertantes de algumas das eleições belgas não derivam só do método de Hondt, mas de muitas outras causas de erro que nem proporcionalistas nem anti-proporcionalistas conseguiram ainda devidamente apurar nem conseguirão, dada a maneira incrivelmente irracional porque raciocinam e examinam a questão.

Mas deixando isto ao estendal de erudição dos nossos fonógrafos proporcionalistas e anti-proporcionalistas, diremos apenas que não está provado que o método de Hondt seja um método proporcional. Mas, pelo contrário, se pode avançar dum modo absolutamente seguro que o método de Hondt não é nem pode ser um método de praticar a representação proporcional tal e qual como pela operação de somar se não pode efectuar uma divisão. É um método de divisão dum número em partes – o que é um quesito do problema da representação - mas não é um método proporcional, isto é, tal que as partes da divisão obtida sejam proporcionais a números dados, o que está, como não pode deixar de estar sempre, no espírito de quem fala em representação proporcional e quer apreciar os resultados segundo este critério. Ora os resultados obtidos pelo método de Hondt só por acaso, - embora se trate dum acaso habitual, mas nem por isso menos acaso – podem ser proporcionais. Mas racionalmente não o podem ser, não podem ser considerados como proporcionais, porque o método de Hondt diz respeito a um certo problema de aritmética mas não ao da divisão em partes proporcionais.

Nós não falamos aqui, dizendo coisas vagas, acenando a fantasmagorias mais ou menos obscuras e imprecisas de vária espécie, como Hanotaux fez em França e como outros fizeram.

Nós dizemos, como proporcionalistas estritos e sinceros amigos da verdade, muito simplesmente o seguinte: o método de Hondt não é, porque não pode ser, um método racional de representação proporcional. É matematicamente um método de divisão em partes, mas não com partes proporcionais. Dizemo-lo sem receio de ser contraditado, porque o que afirmam é susceptível de ser mostrado até aos mais ignorantes. De resto, não se julgue que isto é uma pretensão nossa. Aqueles que mesmo tendo-se-lhes dito a verdade não a acreditam quando lha diz quem não tem autoridade conceituada, saibam, se admirarem, que muito boa gente reconheceu o mesmo que nós reconhecemos e que todos podem reconhecer, e o disse, em termos precisos entre outros, La Chesnais. Hondtista nenhum soube ainda nem poderá refutar isto, que é irrefutável. Quem julga o método de Hondt o método mais rigoroso de representação proporcional, nem sabe o que é à justa o método de Hondt, nem sabe o que é fundamental na representação proporcional.

O método de Hondt está, porém, na moda. E se o governo o adoptou por uma espécie de descargo de consciência, pode deixá-lo ficar, que tem a virtude reconhecida de favorecer os partidos grandes e unidos em detrimento dos partidos minúsculos. É, repetimos, um ilusório método de proporcionalidade: resolve autenticamente um problema próximo do da representação proporcional, e um problema tal que exige praticamente ser-se partido mais forte para se ser mais favorecido. Briand, em França, ainda o achava pouco favorecedor dos grandes partidos, por isso lhe preferia o sistema, cremos de sua invenção, em que se atribuíam ao partido maior os deputados restantes pelo método racional da divisão em partes proporcionais. Cá não será preciso tanto. O método de Hondt basta. De resto, é só em Lisboa e Porto para a eleição de 30 deputados que vai ser praticado. E assim quase não merece a pena discuti-lo. É ainda uma forma de defesa; o método de Hondt aplicado a representação proporcional. Pode-se tê-lo posto sem esta intenção. Método proporcional, repetimos que não é. Se, não o sendo, prejudicasse a República, combatê-lo-íamos. Assim, não o combatemos, achamo-lo bem numa lei de defesa. Mas, numa lei de representação proporcional, não o toleraríamos.

Se os nossos doutores pretenderem saber porquê, explicá-lo-emos. Senão como não vem a propósito repetir-lhes-emos apenas: o método de Hondt é tanto um método de representação proporcional, como a operação de somar é a operação de dividir. Fiquem os doutores com esta.

Mas sempre examinaremos como foi disposta a prática do método, segundo a lei.

 

 Francisco Fernandes Lopes,  "Reforma eleitoral e eleições – As nossas considerações - III" in A República Portuguesa, Lisboa, 21-03-1911