|
|
Por mais paradoxal que pareça, uma das coisas notáveis de Faro é a vizinhança de Olhão e algo de muito interessante em Olhão é o velho Dr. Francisco Fernandes Lopes. Olhão é uma vila muito especial, como não há outra em todo o Portugal e quiçá mesmo na Europa. E o Dr. Lopes, médico, é um daqueles fenómenos com que dificilmente deparamos hoje em dia. Não só fala meia dúzia de línguas, exerce larga clínica e é chefe de uma policlínica, mas é também um musicólogo invulgar, compositor, tradutor, poeta, escritor, filósofo e crítico de arte. Na sua vila de pescadores faz conferências sobre Bach e sobre música moderna; no Liceu de Faro tem durante muito tempo ensinado línguas.
Traduziu para português as óperas de Wagner e as grandes oratórias alemãs, adaptou óperas italianas, escreveu textos para compositores e musicou por sua vez trechos de poetas portugueses. "A Natureza que se vingue!» - comenta ele rindo. É preciso recuperar o que as gerações anteriores desaproveitaram. Seu pai, por exemplo, não sabia ler nem escrever.
Está tão à vontade nas literaturas dos vários países estrangeiros como nas obras mais representativas dos filósofos contemporâneos. Assim que soube que eu tinha vivido em Nápoles, perguntou-me logo sobre Benedetto Croce.
O Dr. Lopes é a glória de Olhão. Quando se vai a seu lado pelas ruas, a cada passo que se dá, tem-se logo a consciência disso! Quase não há pessoa que o não saúde! Tão importante é a sua personalidade que a própria Câmara já mandou pôr o seu nome a uma das ruas da vila. Eis-nos em frente do rectangulozinho onde se lê: «Rua do Dr. Francisco Fernandes Lopes - Médico e filósofo erudito». «Não deixa de ter uma graça muito especial - comenta sorrindo - o ser capaz de viver com a nossa pedra tumular sempre em frente dos olhos»!
Percorro a seu lado a pequena vila cujas fábricas de conserva são notáveis. Existem algumas dúzias de empresas de preparação e conservação do peixe e na costa há sempre movimento e policromia. O cais é uma teia de velas e mastros.
Duas vezes por ano o atum passa pela costa algarvia: entre Abril e Junho dirige-se ao Mediterrânio, onde costuma desovar; entre Junho e Agosto faz a viagem de regresso. Fica então em frente da costa o "Mare Atum", o mar do atum, e chegou a estação alta para os pescadores. Com fortes redes de malha grossa os barcos rumam ao oceano em noites estreladas. "Adivinhos" acompanham os pescadores, indicando-lhes os locais onde é de esperar a maior passagem do atum. Pelo seu trabalho recebem uma parte da captura.
As redes são estendidas por centenas de metros. Os peixes são cercados e rapidamente se fecha o cerco. Como num saco gigantesco, os grandes animais ficam agora apanhados entre os barcos, que se aproximam cada vez mais, para que, entre eles, a captura fique suspensa no fundo como uma carga pesada. E começa então aquela "matança", tal como eu já as conheço das "câmaras da morte" do mar das sardinhas: investe-se contra os animais com arpões e mocas e a esta matança sangrenta chama-se "copejo".
No meio duma gritaria selvagem os pescadores precipitam-se para as suas sacas, incitando-se contínua e reciprocamente. Os corpulentos animais, que por vezes pesam centenas de quilos, comportam-se selvaticamente, dão altos saltos no ar, tentando escapar. Porém, quanto mais fortemente se defendem, tanto mais selvática se torna a avidez dos atacantes. O mar torna-se vermelho de sangue e faz um estranho contraste com o céu claro que, azul profundo e grave, ilumina este campo de batalha.
A vila está directamente à beira-mar, sobre uma superfície de aluvião arenosa. É toda edificada regularmente e dá-nos a impressão perfeita de ter sido arrancada de algures no deserto e posta aqui. Que delícia para um pintor cubista! É que todas as casas são dados cúbicos e brancos, com telhados planos sobre os quais se erguem outras construções cúbicas e brancas mais pequenas, a que conduzem íngremes escadas exteriores. Uma vez no topo de uma destas, vê-se em baixo um emaranhado de telhados brancos, escadas, terraços, torres, torrezinhas, e chaminés de vários formatos. É como se se vissem de cima as escavações de Herculanum ou de outra cidade em ruínas.
Chamam-se "mirantes" estas construções que se erguem em cima das outras. As mais altas, muitas vezes pequenos varandins ou torres esguias, mas sempre com acesso, têm o nome de «contra-mirantes».
Subo com o Doutor a uma dúzia de telhados e construções sobrepostas. Ele conhece todas as casas que têm especial interesse ou oferecem panorama digno de nota. Entramos em padarias, em galinheiros, abrimos passagem entre brinquedos de crianças e quinquilharias, até alcançarmos os degraus e as escadas que levam às açoteias. Os panoramas são, por vezes, quase de molde a causar vertigens. E entre as casas brancas correm as longas ruas calcetadas com pedras brancas e pretas e isto dá origem aos mais bizarros ornamentos.
Para finalizar visitamos a própria casa do Doutor. É um bonito edifício cuja escadaria está revestida de azulejos multicolores. O pequeno terraço e as janelas brilham com flores; os compartimentos estão cheios de quadros, bustos e objectos artísticos de todos os países. Naturalmente por cima há também um mirante e contra-mirante e o olhar estende-se para longe, por sobre o mar de telhados até ao Oceano de azul profundo.
Sentamo-nos um ao pé do outro na sala de música e ele apresenta-me as suas quatro filhas - lindas e sossegadas raparigas a quem deu os mais estranhos nomes. Uma chama-se Belkiss, outra Isis. Uma é pintora, uma segunda pianista, a mais nova, formosa como uma estampa e muito viva, ainda frequenta o Liceu de Faro. Junto das quatro filhas um único filho, médico como o pai. Sentamo-nos em almofadas turcas e orientais, bebemos café forte e saboreamos o bom doce português.
Assim se faz rapidamente noite. Tenho de regressar a Faro. Atrás de mim a vila afunda-se no crepúsculo do dia que se apaga - a vila, que não mais esquecerei, dos dados brancos e dos mirantes ...
O que eles escrevem: |
. Raul Brandão |
. Zeca Afonso |
. Aquilino Ribeiro |
. Manuel da Fonseca - Fuzeta |
. Manuel da Fonseca - Olhão |