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Recordações de Francisco Fernandes Lopes

Encontrei uma fotocópia no Arquivo de Olhão do artigo que se segue, da autoria de Francisco Fernandes Lopes.

Foi publicado em 26 Agosto de 1956, no jornal Notícias do Algarve (p.1 e 4)*, e fala da sua juventude em Lisboa.

Embora uma ou outra palavra esteja omissa na fotocópia a que tive acesso, o texto é, afinal, uma pequena preciosidade, atendendo dar algumas informações sobre a juventude de muitos homens ilustres da primeira metade do séc. XX português, com quem Francisco Fernandes Lopes privou.

António Paula Brito
    * agradeço a Andreia Fidalgo a informação da data e do jornal onde este artigo foi localizado.

 

 


Carta de Lisboa – Recordações… (26-8-1956) 

In illo tempore... – quero dizer, precisamente no último ano do séc. XIX, ainda o Liceu de Faro, – o velho liceu do Largo da Sé, não tinha biblioteca...; e, em toda a cidade, não havia uma única livraria, – pois livraria não pode chamar-se à Tabacaria Havaneza, onde se reuniam a fumar e cavaquear uns conspícuos senhores da cidade, por se encontrarem à venda ali um ou outro romance da colecção Horas de Leitura ou da colecção Pereira, além de livros escolares que também se vendiam numa outra papelaria...

O meio intelectual académico calcula-se assim qual fosse… E a minha vingança, como já disse, eram os Lusíadas.

Ora, a esse tempo existia ainda, nas águas de Faro, a pimpante corveta Duque de Palmela, como escola de alunos marinheiros, da invenção do benemérito Ferreira de Almeida. E precisamente naquele ano, viera para ali tirocinar, um guarda-marinha, que se chamava Jaime Anahory Athias – (mais tarde secretário da Presidência da República, desde o tempo do almirante Canto e Castro). Já não me lembro de como nos conhecemos; mas o que sei é que ele simpatizou com a minha vivacidade e eu com a sua ponderação, e ficámos, para todo o sempre, amigos, como se de há muito o fôramos, - amigos de tu, apesar de ele ser alguns anos mais velho do que eu. Recordo-o sempre com saudade, porque, além de boa inteligência que sempre reinou entre nós, lhe fiquei a dever o meu nascimento para a vida propriamente científica… Enclausurado no Camões, foi ele quem me abriu uma janela larga para o campo das ciências, falando-me da física, da astronomia, do Tycho-Brahe e do Képler, do cálculo integral e diferencial, em que ele era exímio.

E, para cúmulo final, sucedeu até isto: tratando-me como um irmão mais novo, como se dera o caso de ter regressado a Lisboa em 1901, no mesmo comboio em que eu vinha para o 6º ano, foi ele quem me disse, ao chegarmos à capital: «- Olha, tu instalas-te aqui no Francfort de Santa Justa até à tarde, porque, como não sabes nada disto, eu vou arranjar-te casa em sítio bom.» E foi assim que eu vim a ficar instalado na casa onde sempre morei aqui, na rua da Penha de França, 52, 2º, - em casa de duas senhoras velhas, amigas, viúvas ambas, uma com uma filha já mulher, que namorava um ajudante de farmácia com que depois casou, e a outra com um sobrinho, o Duarte, um rapazote empregado no caminho de ferro, no Rossio. A única mudança que houve foi o passarmos depois para o 3.° andar, e a rua ter passado a ser mais tarde Calçada de João do Rio (hoje Calçada do Engenheiro Miguel Pais, conforme acabo de ver). Porque a casa ainda lá está, com a mesma porta e a mesma escada, e ao lado dela, de um e outro lado, o mesmo rés-do-chão onde do lado de baixo havia uma taberna - o três-em-pipa, com uma tabuleta pitoresca alusiva, e do lado de cima um restaurante do mesmo nome, aonde a rapaziada da Politécnica afluía...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Hotel Francfort

 

No meu primeiro ano de Lisboa, o 6º ano de curso, no Liceu do Carmo, lembro-me do velho reitor dr. José Maria Rodrigues, a correr atrás da rapaziada endiabrada, e lembro-me de três professores - o Psique, da filosofia ensinada pelo Boirac, pequenino, todo nervoso na sua vivacidade, o Sá e Oliveira, recentemente despadrado, fino, sagaz, muito simpático, e sobretudo o bondoso Morais de Almeida, que foi quem, com paciência paternal, todo corado e carregando muito nos rr, me rasgou o véu da matemática… - a mim, como a tantos outros, certamente.

Na mesma turma me encontrava eu, vindos de Faro, com o Justino Bívar e com o José Sieuve Afonso, que, mais velho do que eu, fora em Faro o meu constante companheiro de estudo. (A propósito dele, lembro-me de que seu pai, o então director das obras públicas, nas férias em Olhão, nos explicava por vezes coisas da difícil matemática e me emprestara uma vez um volume da biblioteca de seu pai, o defunto dr. Estêvão, um volume com obras do teatro de Victor Hugo, o Hernani, o Ruy Blas, a Marion Delorme e o Roi s'amuse, que assim fiquei desde então a conhecer, excepcionalmente.

Na turma, outros rapazes a minha simpatia escolheu: o Arruda Furtado, o Malheiro Reimão, o Feliciano da Costa, o Tibúrcio Teixeira. Ali aprendi, casualmente, estenografia, com um oficial do exército que abrira um curso, facultativo, com a aula repleta no primeiro dia, mas que acabou por ficar só com uns seis, dos quais fui um...

Nesse ano lectivo (1901/1902), como o Justino Bivar morava ali perto, na rua da Escola Politécnica, em casa de seu tio, o velho conselheiro Luís Bivar, e eu ia por vezes procurá-lo, ainda tive ocasião de conhecer assim o venerando presidente da Câmara dos Pares.

No ponto de vista cultural, foi todavia para mim, esse ano, quase nulo...

A minha verdadeira vida intelectual só começou no ano seguinte, com o meu sétimo ano no Liceu da Regaleira, a S. Domingos. O acaso do nome Francisco, fez-me ter, por companheiros de carteira dois outros Franciscos: do lado esquerdo, Francisco de Castro-Freire; do lado direito, Francisco Pulido Valente. Ao primeiro fiquei a dever o ter lido toda a obra de Eugênio de Castro, desde as Cristalizações da morte, início clássico ainda que ele me ia emprestando da biblioteca de seu pai, o dr. António de Castro-Freire, tio do poeta... (Tive assim ocasião de ver a curiosa evolução da caligrafia deste, através do seu nefelibatismo, pelas dedicatórias da oferta: ao seu tio e amigo...) E escuso de dizer como a obra do excelso poeta e artista encontrou perfeito eco no meu gosto, ficando na minha memória, desde então logo, muitas das suas melhores poesias, tanto mais quanto pouco depois adquirira o volumezinho das poesias escolhidas, prefaciado por Silva Gaio, que preciosamente conservo ainda.

Ao outro Francisco a quem por todas as afinidades me liga uma fraterna amizade - fiquei a dever a, camaradagem que mutuamente nos levou para a leitura do Baudelaire e do Guyau e das generosas obras de intuito social que encontrávamos no célebre Kiosque do Rossio, hoje abolido. Falava-me ele muito do dr. Joaquim Madureira, que lhe revelara a Degenerescência do Max Nordau. E como sucedeu que na nossa turma eramos nós os dois que melhor sabíamos francês, além do português, isso mais no aproximou ainda ...
Ora, um dia, creio que conhecendo já eu, por ele, o Carlos Olavo, então militar em perspectiva, o Pulido me fala de um rapaz que tínhamos que conhecer, o Ramada Curto, que já fizera uma peça de teatro e estava a escrever um romance… E foi pelo Ramada, que cantava trechos do Wagner na sua espantosa voz de cantor compositor que imita
va todas as vozes e todos os instrumentos, que eu vim a conhecer a música expressiva do gigante de Bayreuth - antípoda dos garganteados vácuos do famoso bel canto italiano, que eu visceralmente detestava...

Nascido pois, assim para o mundo musical (eu aprendera solfejo em Olhão com o meu saudoso colega, o velho dr. Luís Bernardino da Silva, flautista distinto e amador culto, que fora em 1880 um dos fundadores da Academia dos Amadores de Música, e era companheiro e amigo do Augusto Neuparth e do Viana da Mota), pouca música verdadeira conhecia ainda, além de uma ou outra peça de caixas de música ou de realejos de discos de cartão, e além de passos-dobles e das marchas fúnebres e graves das filarmónicas locais. Assim, a minha atenção musical dirigia-se agora, para os excelentes programas do sexteto do Jansen, a cervejaria que todas as noites o nosso grupo - Olavo, Ramada, Pulido, Israel Anahory e eu - frequentava para ouvir o Caggiani ou o Pedro Blanch (violinos), o Bonnet (piano) e o Passos (violoncelo), e para os concertos da Banda da Guarda Municipal, na Avenida, aos domingos, com o velho Gaspar e depois o maestro Fão.

Ora em 1903, no S. Carlos, dava-se uma ópera, O Demónio, de Anton Rubinstein, sobre um conto de Lermontoff, com um prólogo exclusivamente sinfónico, ilustrado pela projecção de uma paisagem selvagem em quadros dissolventes. A música era, como mais tarde reconheci, dum género misto italo-beethoveniano-wagneriano. Agradou-me então muito. Ainda me lembro duma ária célebre - a ária de Azael... Enfim, posso dizer que fui tentado pelo Demónio... - E desde então, pensei em fazer uma ópera... A princípio sobre o Eurico, de Herculano: esbocei um libreto e compus uma ária de poesia lenta e grave, que ainda conservo de memória. Depois rodei para a Constança, do Eugênio de Castro, para a qual rabisquei também algumas passagens musicais. Mas por fim, tendo-me o Ramada emprestado a Belkiss - libreto em prosa, já feito e pronto, por assim dizer, a ele me atirei então, aí por 1907 ou 1908, pois encontro apontamentos datados deste ano.

Voltando porém ao meu sétimo ano, de 1903 a 1904, foi nesse ano que, nascido também já para a filosofia, pela leitura do Fouillée e do seu genial enteado Guyau, entrei com o Platão, ali na Biblioteca Nacional, pela porta do Teeteto, na elegante tradução de Victor Cousin; e assim me encontrei com o velho Sócrates, - meu semelhante e meu irmão.

Escuso de dizer que a Biblioteca Nacional foi desde então a minha verdadeira Universidade, em letras em ciências e filosofia... (e não era só minha, naturalmente; ainda me lembro, pelo menos, de um outro que lá via, assíduo, o hoje dr. Gustavo Cordeiro Ramos...)

Mas nesse meu sétimo ano, à rapaziada da minha turma juntara-se a da outra onde vinham o Alberto Mac-Bride, que de amizade se ligara ao Pulido e a mim, e o Trindade Coelho, e tantos outros, notáveis depois. E toda esta rapaziada confraternizou na representação que se fez, ali no D. Amélia, da peça de despedida, Nos jardins de Acádemo, arquitectada pelo João Marcelino Dias Pereira, mais homem já que qualquer de nós, sargento-cadete, e que me convidara para a escrever [palavras omissas] parte fora bastante medíocre… Não recordaria essa récita se o seu produto, avultado ainda assim, não tivesse sido destinado ao monumento a Antero de Quental que então se projectara; pois a figura e a poesia de Antero haviam merecido a nossa veneração; e numa Revista Académica de que se publicaram apenas três ou quatro números, dirigida ou secretariada pelo João Marcelino, pelo Feliciano da Costa, pelo Melo Vieira e por mim, um dos números fora dedicado ao Antero, com um inflamado artigo medíocre da minha lavra a circundar o retrato do filósofo-poeta, reproduzido do In Memoriam que eu recentemente adquirira.

Foi nessas horas de mocidade e de efervescência que um dia o Pulido e eu, falando da carreira a seguir, nos decidimos pela Medicina - ou, melhor, me decidi eu, pois ele já estava tentado desde que o Francisco Gentil o operara não sei de quê. Tendo ambos cultura literária a par da científica -(o sétimo ano de então era de letras e ciências), olhávamos com certo desdém para os advogados, uns palavrosos, literatóides, estranhos à ciência, sem o espírito científico que a Medicina podia dar... E assim a Medicina o captou a ele - com a eficácia que se sabe, e me captou também a mim, que, nunca tendo querido absorver-me nela, com quebra do meu visceral enciclopedismo incoercível, não vim afinal a passar dum vulgaríssimo João Semana, - por demais, enquistado desde há quarenta anos numa terra de província, onde, por ser a minha terra natal, jamais virei, decerto, a ser profeta.

Lisboa, 16 de Agosto de 1956.

Francisco Fernandes Lopes