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Nota: artigo saído no jornal Diário de Lisboa em 5-7-1958, escrito por Francisco Fernandes Lopes
Um mártir da … era atómica
Naturalmente não deixei de enviar a Boris, para Boppard-am-Rheim, o número do «Diário de Lisboa», com o meu artigo sobre a sua pessoa, enquanto me preparava para dar satisfação ao seu pedido da documentação antiga em meu poder, que lhe interessava agora compulsar…
Ora recebo, no entretanto uma nova carta, escrita à máquina como a anterior e certamente redigida por ele, mas assinada pela sua mulher, que é quem desta vez se me dirige a dar informações, conforme se vai verificar.
Veio a carta por avião e datada de Boppard a 27 de Junho, enviada pela Freifrau v. Skossireff, em papel timbrado da mesma senhora… Traduzo:
Caro doutor Lopes, sei pelo «Diário de Lisboa», de 18 deste mês que V. está em vias de fazer o trabalho de escafandro para reencontrar nas profundidades do oceano dos seus velhos papéis o meu manuscrito. Tal como Ariadno, venho para si, caro Teseu, para o livrar desse labirinto de bolor, estendendo-lhe um fio, o fio a seguir depois de V. ter encontrado as minhas memórias, pois onde elas param, eu retomo a minha Antologia ou a Apoteose. Siga, portanto, este fio:
Estamos a 7 de Junho de 1948. Eu exponho a quem quiser ouvi-lo e dirijo-me aos franceses:
… Meu marido tornado «insaisissable» figurou entre os primeiros internados no Campo de Rieucros, em Mende (Lozére). Foi levado para lá em Janeiro de 1939. Transferido no começo da guerra para o campo militar de Vernet d’Ariège, esteve prisioneiro até Outubro de 1942, data da sua libertação pelas autoridades alemãs de repatriamento. Neste campo francês de concentração ele encontrava-se no «segredo», enterrado vivo, como de resto o publicista Arthur Koestler e, mais tarde, o chefe glorioso dos Rexistas belgas, Degrèlle, e 6 pára-quedistas alemães recalcados da Bélgica, todos companheiros de infortúnio do meu marido. Sobre os horrores deste campo de morte, o sr. Koestler publicou na Inglaterra obras traduzidas em várias línguas.
Por minha parte, eu fui ter com o meu marido em Janeiro de 1943 quando ele se encontrava em Berlim. Deixara todo o meu mobiliário e coisas pessoais em Saint–Cannat. Soube que tudo o que eu possuía em França fora presa das chamas e isto aquando de um bombardeamento aéreo aliado em 1944. A libertação libertara-me de tudo. Um «dossier» fora constituído pelo sr. Vax Juvenal, meu advogado-conselheiro, 48, cours Mirabeau, em Aix-en-Provence. Eu não dou muito crédito à versão oficial; julgo antes que a casa fora primeiro pilhada pelos partidários e depois incendiada. Prisioneiro de guerra dos Americanos, o meu marido foi autorizado a reentrar nos seus lares, o que ele fez, estando, na época, Boppard ocupada pelas tropas americanas. Eu encontrava-me então em Lichtenhain (Saxe) na zona de ocupação soviética, donde o meu marido me mandou vir a 17 de Dezembro de 1945, para casa dele, na zona francesa.
A 4 de Dezembro de 1946, um ano depois, meu marido foi preso no seu domicílio pelo comissário Humbert, da Segurança (francesa) de Sankt Goar, «chef-lieu d’arrodissemente», seguido do seu secretário Lasimone e de numerosos gendarmes (franceses) que puseram a saque a casa, apoderando-se de todos os papéis, livros, etc. No dia seguinte foi a minha vez de ser detida e transferida para os calabouços, para um calabouço vizinho daquele em que se encontrava desde a véspera encarcerado o meu marido. Nenhum motivo da nossa detenção nos fora notificado. Transferidos separadamente e em segredo completo para Coblence-Metternich, sede da Direcção da Segurança junto do Governo Militar da Renânia-Tesse-Nassau, num castelo isolado, preparado segundo a receita, dada pelos filmes policiais, nos locais da G.P.U., nós éramos libertados os dois, a 17 de Dezembro de 1946. Na noite de 7 para 8 desse Dezembro de 1946, o meu marido sofrera sevícias corporais que lhe custaram um dente partido, uma costela metida para dentro, e a cara… que dez dias mais tarde ainda estava tumefacta e com os vestígios das cores arco-íris, pancadas e feridas de que deu fé um atestado médico depois de um exame pelo sr. Doutor Wierleuker, no Hospital de Boppard – certificado visado pelo sr. Oficial da Segurança (2ª repartição francesa) em Boppard!
Aquando da sua saída dos locais de Metternich fora feita notificação ao meu marido, para se apresentar regularmente de oito em oito dias na Gendarmeria Francesa de Boppard. A 16 de Junho de 1947, o comissário da Segurança de St. Goar entregava-lhe uma carta de residência vigiada (apresentação mensal). Está obrigado a residir no círculo de St. Goar, não pode já continuar o seu trabalho de representante de comércio, nem viajar na Bizona (as zonas americanas e inglesas estão reunidas agora sob esta apelação). Não está autorizado senão a fazer mercado negro com a tropa francesa.
Eis os factos que, de resto, podem ser controlados:
1) pelos nossos depoimentos feitos na Segurança, quer em St. Goar, quer em Coblence-Metternich, nos processos verbais assinados em Dezembro de 1946;
2) pela minha memória ilustrada com cortes dos jornais franceses e estrangeiros relatando as atribulações do meu marido em 1931 a 1938, manuscrito que foi apanhado pelo sr. Humbert;
3) pelo sr. Coronel René Baulard, antigo intendente regional da Polícia, em Toulouse, que nos escreveu a 10 de Maio último e seguira o caso de Andorra. Ele visitara o meu marido no campo de Vernet.
O meu marido escreveu-lhe a 25 deste mês uma longa exposição. Enviou-lhe também uma quantidade de fotocópias. Siga este fio!
Com os meus cumprimentos para toda a sua família e para si e para todos os nossos amigos, conhecidos e desconhecidos, no extremo Ocidente da Europa, sua Marie Louise de Skossyreff
Recebida esta carta em 30 de Junho, espero pelo correio vulgar o que me anuncia. Em todo o caso, não quero deixar de assinalar que, afinal, onde, nas gehenas policiais, Boris foi ainda menos maltratado – e poderia dizer mesmo, melhor tratado – foi entre nós. De resto, ele sempre me expressou a sua admiração e amizade pelo nosso país e pela humanidade e urbanidade da nossa gente onde não encontrou senão amigos em todas as classes. Indubitavelmente pessoa muito culta, de fino trato aristocrático, falando, como suas línguas maternas, além do francês, pelo menos o inglês e o alemão, Boris tinha aptidões para qualquer função social de importância em qualquer parte onde estivesse. Julgo que apesar de todos os suplícios suportados, não terá perdido o seu vigor e a sua capacidade de trabalho. Por várias vezes se me mostrou seriamente arrependido de ter recusado o convite, que, em certa altura, lhe fora dirigido por «alguém» a naturalizar-se português; e, se não estou em erro, parece que me disse um dia do seu desejo de, com a sua legítima mulher, vir a ficar sepultado em terra portuguesa...
Pobre Boris! Enigmático! E... mártir da era atómica!
Francisco Fernandes Lopes