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RAUL BRANDÃO in  Os Pescadores

OLHÃO - Agosto -1922

Tenho de atravessar o Alentejo isolado e concentrado para chegar ao Algarve. É uma província farta, mas a aparência esquelética, a árvore triste a que arrancam a pele em vida, o monte solitário, meteram-me sempre medo. É a terra do ódio. Tudo em que a gente põe a vista é duro e hostil. Ainda o Alto Alentejo quer sorrir - mas o sorriso fica em meio, reservado e triste. Os pinheiros mansos agrupam-se e conversam baixinho uns com os outros para fugirem à solidão do deserto. ..No Baixo Alentejo, porém, os sobreiros, a cor da terra esfarrapada, o céu esbranquiçado, as lascas de pedra que reluzem como vidros negros e polidos, enchem a alma de monotonia e pesadelo. Uma grande fumarada levanta-se no fundo do deserto.

Os homens não se podem ver: um abismo separa o trabalhador do proprietário, que goza em Lisboa e que lhe deixa de quando em quando uma folha para desbravar. Desbravada, tira-lha. E esta solidão redu-lo a atroz realidade. Fica só e o ódio, sob a abóbada de pedra que encerra o extenso panorama, entregue ao tempo que não passa, à morte que não vem, à secura das almas, pior que a secura da terra. Resta-lhe o ódio: com o ódio enche o deserto e enche a própria vida. ..

 

De manhã saio em Olhão deslumbrado. Céu azul-cobalto - por baixo, chapadas de cal. Reverberação de sol, e o azul mais azul, o branco mais branco. Cubos, linhas geométricas, luz animal que estremece e vibra como as asas de uma cigarra. Entre os terraços, um zimbório redondo e túmido como um seio aponta o bico para o ar. E ao cair da tarde, sobre este branco imaculado, o poente fixa-se como um grande resplendor. É uma terra levantina que descubro; só lhe faltam os esguios minaretes. Duas cores e cheiro : branco, branco, branco, branco doirado pelo sol, que atingiu a maturidade como um fruto, pinceladas de roxo uniformes para as sombras, e um cheirinho suspeito a cemitério. O fruto que chega a este estado está a dois dedos do apodrecimento, e é talvez por isso que a ideia do sepulcro me não larga nas noites brancas e pálidas em que me julgo perdido num vasto campo funerário...

O céu aproxima-se de mim. Da açoteia chego às estrelas com a mão. A aragem do mar é tépida e o cheiro persiste... Voluptuosidade e morte... Tenho a sensação criminosa de apertar nos braços uma mulher que se entrega, no momento em que entreabre a boca sucumbida - num vasto campo-santo, onde os espectros imóveis e brancos, de sudário, olham e esperam. ..O fruto vai completar o seu destino. Cheira que tresanda.

Há meio século, Olhão, entranhado de salmoura e perdido no mundo, vivia só do mar. Todos se conheciam. Os que não eram marítimos, eram filhos ou netos de marítimos, contrabandistas uns e outros, pescadores costeiros e pescadores do alto que iam à cavala a Larache. A pesca costeira, a das caçadas, fazia-se com groseiras, grandes espinhéis, para o cachucho, o goraz, o safio, a carocha, o ruivo, a abrótea e a pescada; e com a arte da xávega, em calões e botes, puxando a tripulação o aparelho para terra, enquanto o arrais, numa pequena lancha, a calima, vigiava o lanço e dirigia a manobra. Havia muito peixe e a vida era extraordinária. Toda a noite o chamador batia de porta em porta com um cacete:

-Arriba com Deus, mano João!

Nesta arte ia ao mar quem queria - os pequenos, os humildes e os fracos - todos de varino e por baixo nus.

- Levas a barça? - perguntava o arrais.

Era o essencial. Dizia-se de um homem pobríssimo:

- Aquilo é um homem sem barça nem lasca.

O dinheiro arrecadava-o o dono num monte com uma esteira por cima, e distribuía-o enfiando o braço por um buraco e tirando um punhado de cobre ao acaso:

- Toma lá!

Fazia as contas que entendia e os pobres diziam:

- O que ele tem enricado à custa daquela esteira!...

E as mães às filhas:

- Ó filha, Deus queira que não olhes para home que ande na arte!...

A pesca do alto fazia-se em caíques cobertos, de vinte e cinco a trinta toneladas, com duas velas triangulares. Este barco voava. Ia a Setúbal, a Lisboa, às Berlengas, ao Porto, e só voltava a casa no S. João, no Natal e nas festas grandes do ano. As mulheres esperavam pelos maridos com alvoroço - dando outra mão de cal nas casas. Tripulavam-no vinte e cinco homens e dois cães, que ganhavam tanto como os homens. E mereciam-no. Era uma raça de bichos peludos, atentos um a cada bordo e ao lado dos pescadores. Fugia o peixe ao alar da linha, saltava o cão no mar e ia agarrá-Io ao meio da água, trazendo-o na boca para bordo. O caíque pescava e vendia pela costa fora. Às vezes sucedia-Ihes estarem em Lisboa, abrigados do temporal, longe da terra em dias de festa, no da procissão do Senhor dos Passos, por exemplo - a que o marítimo nunca falta, vestindo o melhor fato e pondo a cartola na cabeça: - Compadre, vamos nós à procissão? - Ventania rija, vagalhão de meter medo na barra... - Por cima da água ou por baixo da água, vamos sempre. - E iam. Marítimos extraordinários, não usaram nunca agulha de marear: sabiam onde estavam pelo cheiro.

Outro barco, o do navego, comprava géneros em Almeria e Gibraltar, palma na Berberia (Marrocos), ou ia a S. Martinho buscar o pêro que tem fama, levando do Algarve o figo, a alfarroba e o peixe .seco para vender. Mas o grande negócio de Olhão foi sempre o contrabando. Não é contrabandista quem quer: é preciso inteligência e astúcia, arrojo, o alerta dum chefe selvagem e a imaginação dum poeta. Conheço um contrabandista famoso, o senhor Mendinho, que ainda hoje faz na sua goleta a carreira de Gibraltar. Tem setenta e dois anos, um grande engenho e promete levar a Alcácer Quibir todos os poetas portugueses. Agora que criou os filhos, repousa duma vida cheia de peripécias, num sítio romântico entre figueiras, e começa a escrever as suas memórias. É um mestre reputado. Duma vez, um grande temporal assolou a costa algarvia: naufrágios, gritos, mulheres cercando o telégrafo dia e noite, toda a povoação em alvoroço. - Que é de fulano? - Não se sabe! Não se sabe!... - pouco e pouco foram aparecendo derreados, hoje um, amanhã outro - só do .senhor Mendinho não havia notícias. - Isso morreu... – Passaram-se dois dias, mais três dias negros. -Morreu com certeza. - Mas uma tarde correu o grito em Olhão - O barco do Mendinho está na barra!... - Era a goleta, efectivamente - mas em que estado! Os mastros partidos, uma amurada deitada abaixo e as velas em farrapos. Desceu tudo à praia. Meteram-se em barcos e trouxeram-no para a terra abraçado, festejado, aclamado. Quem, em semelhante ocasião, depois de tantos perigos corridos, se lembraria de visitar a goleta? Até a guarda-fiscal chorava. - O Mendinho! O Mendinho!... Que milagre! - Ora o mestre Mendinho imaginara aquele espectaculoso cenário refugiado num abrigo de Marrocos: mandara quebrar os mastros, deitar as amuradas abaixo, rasgar as velas - e trazia o porão atulhado de rico contrabando que descarregou nas barbas do fisco compungido.

Também, diga-se a verdade: toda a gente em Olhão, ricos e pobres, protegia os contrabandistas e entrava no negócio. Nunca em terra se apreendeu uma peça de fazenda. Passava-se de açoteia para açoteia - para o que basta estender os braços - e corria se fosse preciso, a vila toda, porque nessas ocasiões até inimigos rancorosos se julgavam no dever de esconder o contrabando e todas as casas tinham uma guardadeira ou falso entre duas paredes.

Em resumo: este homem é um homem à parte no Algarve. Se veio de Ílhavo, como dizem, não sei, mas é o único homem arrojado desta costa.

D. Carlos estimava-os e eles ainda hoje se lembram do rei a quem falavam, não com a subserviência dos políticos, mas de igual para igual, como a um pescador de maior categoria. Às vezes, D. Carlos encontrava-os no mar alto. - Então que tal a pesca? - Nada. - Também, vocês estão aqui, e ali em baixo, a três milhas, o peixe anda aos cardumes. - Mas, com este vento, como é que a gente há-de lá ir? -Botem os cabos!... - E, voltando atrás, levava-os a reboque do iate até ao sítio da abundância.

O marítimo de Olhão tem, como nenhum outro, um grande sentimento de igualdade: estende a mão a toda a gente. É que no mar os homens correm os mesmos perigos. São também profundamente religiosos, porque estão a toda a hora na presença de Deus. Duas tábuas, a fragilidade e a incerteza forçam-nos a contar consigo e com a companha. Arriscam a vida para salvar a dos outros: hoje por ti, amanhã por mim. Homens simples porque a profissão é simples e o meio, grande e eterno, não os corrompe. E, como o mar abundante e pródigo não tem cancelas, são generosos, imprevidentes e comunistas. Detestam os tribunais, que não compreendem, e ignoram a vida da terra. Se a mulher lhes morre, não entram em licitações com os filhos: deixem-lhes a eles o barco e as redes e tomem conta do resto. Reparei que em todas as casas havia uma gaiola com um pintassilgo. Os homens do mar tiveram sempre uma grande ternura pelas aves. Na Foz também era assim. Quando os via passar para o Monte com o chamariz, o alçapão e o ramo, lembrava-me sempre de um velho marítimo colérico e um pouco funambulesco da vasta galeria de Dickens. Voz de tempestade e rajadas desabridas. Passeava por toda a parte uma grande irritação e acompanhava-o por toda a parte um canário domesticado, que não lhes tinha medo nenhum, porque sabia perfeitamente que sob aquele aspecto de ferocidade se escondia uma alma feminina. O rude pescador de Olhão, que passa a existência no mar, também tem necessidade de uma ave e não pode viver sem a sua companhia...

Em todo o Algarve, a mulher é a prenda da casa. Trá-la muito bem tratada, muito bem fechada, restos da vida moura. A de Olhão, trigueira, de olhos negros e um lindo sorriso reservado, passa por a mais bela da província, pela vivacidade e pela fartura do cabelo. Já em S. Brás de Alportel, ali perto, as cabeças têm reflexos doirados e os peitos são desenvolvidos. Sentadas nas esteiras sobre os calcanhares, nas casas forradas de junco ou de palma, fabricam as alcofas, a golpelha em que se transporta a alfarroba e o figo e as alcofinhas mais pequenas, chamadas alcoviteiras. Ainda há pouco tempo todas usavam cloques e bioco. O capote, muito amplo e atirado com elegância sobre a cabeça, tornava-as impenetráveis.

É um trajo misterioso e atraente. Quando saem, de negro, envoltas nos biocos, parecem fantasmas. Passam, olham-nos e não as vemos. Mas o lume do olhar, mais vivo no rebuço, tem outro realce... Desaparecem e deixam-nos cismáticos. Ao longe, no lajedo da rua ouve-se ainda o cloque-cloque do calçado - e já o fantasma se esvaiu, deixando-nos uma impressão de mistério e sonho. É uma mulher esplêndida que vai para uma aventura de amor? De quem são aqueles olhos que ferem lume?. Fitou-nos, sumiu-se, e ainda - perdida para sempre a figura -, ainda o som chama por nós baixinho, muito ao longe -cloque...

Antes de casar, a mulher enfeita-se muito. Depois não. - Já enganei quem tinha a enganar... - dizem. Mesmo se continua a enfeitar-se, murmuram dela: - É alvanaira. - É ela quem dirige a casa e quem incute ânimo ao homem timorato. De noite, quando ele tem medo às bruxas, acompanha-o ao barco. Nas ocasiões graves, se é preciso falar, quem fala é ela. Sozinha, põe e dispõe. Quando o homem vai ao médico, precede-o. Ele cala-se, ela explica. - Ele que tem? - Ela responde. - Olhe, queixa-se disto e daquilo...

Todos estes costumes vão desaparecer. Na população, maior que a de Faro, os naturais estão em minoria e vão sendo pouco e pouco expulsos da sua própria terra. Já o povo canta:

Adeus, ó terra de Olhão,

Cercada de morraçais,

És a mãe dos forasteiro,

Madrasta dos naturais.

Sigo por um novelo de ruas pelos dois bairros típicos, o da Barreta e o da banda do Levante. A boca negra dum arco e outra rua tortuosa onde a luz não penetra. Algumas têm nomes que as pintam: a Rua dos Abraços, a Rua dos Sete Cotovelos. Vive-se ao ar livre, come-se ao ar livre, dorme-se ao ar livre. A rua, fedorenta e animada, pertence aos pobres. Abancam no meio das viela.". Mulheres curvam-se sobre as sertãs frigindo peixe. O azeite respinga e fede. Risos. Reparo nas atitudes, no suor e na cor avermelhada das mulheres debruçadas sobre as brasas, na familiaridade, no à-vontade, e naquele velho sátiro que avança para mim, com a caneca de vinho na mão a trasbordar. À roda, encostados às paredes, os remos, os cabazes e as redes; ao lado, o cano de esgoto que passa à mostra pelo meio da rua num escorro fétido.

Mas, se a rua é suja, a casa é limpa. A habitação primitiva é um cubo com uma porta e uma janela Em cima a açoteia, para onde se sobe por degraus de tijolos, e muitas vezes sobre a açoteia o mirante. Entro num e noutro destes buracos com as telhas assentes em canas. Todas eles reluzem de cal. Dois compartimentos: a chaminé, que é o nome da cozinha, e a casa de fora. Uma esteira no chão, uma cama com uma colcha de seda, que só serve nos dias de festa, uma cómoda e um bancal de renda. A um canto um pote e o indispensável pincel. Caia-se tudo. Caia-se o lar e os degraus. Caia-se sempre. É um delírio de branco. Subo à açoteia - a melhor parte da casa. O homem de Olhão tem por ela uma paixão entranhada. Se um vizinho a ergue, ele nunca fica atrás - levanta-a logo mais alto. É que a açoteia é o seu encanto: sitio esplêndido para. respirar, eira para a alfarroba e o figo, e quarto para dormir no Verão sob um pedaço de vela.

É no cais, ao pé da praia, a que chamam baixa-mar, é no cais fedorento, entre os homens que andam na faina, os estaleiros abandonados e as caixas de sardinha para embarque, que eu assisto todos os dias ao espectáculo da chegada dos barcos e que vejo os peixes, as redes e o leilão. Para lá da água empoçada ficam os areais, a ilha da Armona, a do Levante, a ilha da Culatra e o farol de Santa Maria. Perto de mim, as velas dos barcos reflectem-se em manchas coloridas no azul retinto e ondulado. Desde o calão, tipo mais antigo, grego ou fenício, até ao caíque, estão aqui representados a chalupa, o iate de pequena cabotagem, o bote, as lanchas de vela latina e as de Albufeira, com uma grande cabeleira na proa e dois olhos pintados no costado. Ao lado do cais ficam os armazéns da salga, donde outrora saía a sardinha em barris para Orão e Marselha, a pescada descabeçada para a Espanha e os almocreves com cargas para o Alentejo. Entro. No escuro, pios metidos no chão, preparos para a salga do biqueirão, do charro (chicharro) e da sardinha, e ao lado a caldeira para extrair o óleo do peixe de couro - azeite de queIme -, cuja pele, chamada de lixa, se aproveita para vários usos conforme as qualidades - lixa de lé, a pailona e os barrosos, fêmeas dos queImes. Em Agosto, quando a sardinha abunda, prensam-na em cascos, ou mulheres, enfiando-a aos quarteirões em varetas, dispõem-na em costais para embarque. É no cais que se vende o peixe em lotas, quando chegam as pequenas canoas das caçadas, com sessenta aparelhos de oitenta braças iscados a sardinha e as canoas maiores de duas velas, tripuladas por dez a dezoito homens, que vão pescar até S. Vicente com o espinheI, cabo da grossura dum dedo, chamado manoio, com perto de dois mil anzóis. E é aqui também, na agitação da baixa-mar, que eu anoto os nomes das diferentes redes e dos diferentes peixes: a murjona, o tapa-esteiros, que apanha o peixe no rio à maneira que a água vai vazando, a toneira para os chocos e as lulas, a redinha e o tresmalho, e outras engenhocas do subtil pescador, que chega a agarrar o langueirão com um botão de ceroula e alguns alfinetes e o polvo com velhos alcatruzes de nora. Tudo vem ter ao cais - peixes esplêndidos de uma abundância e de uma variedade extraordinária -, do rio o linguado, o pregado, o peixe-rei, o xarroco, os capitães, os alcabrozes, os robalos, etc., uns pescados à fisga, como a liça, a safata, o robalo, outros ao anzol e ao candeio; e do mar, despejados nas linguetas, montes de cações, de galhudos, que têm um pique no cerro, de monstruosas raias, de donzeIas, de albufares pardacentos e enormes e de feios dentulhos. Atiram do fundo do barco para as pedras a abrótea, bandos de vermelhos e lindos cantarilhos, que parecem peixes de aquário, xaputas dum negro-prateado com o rabo aberto como as pontas da cauda da andorinha, esguias tintureiras, corvinas e cestos de polvos enrodilhados. É uma magnificência. Paro com assombro diante do monstruoso tamboril, só boca, com uma boca maior que um açafate, e que usa para atrair a presa duas linhas na cabeça com uma isca na extremidade. Já cheiro a peixe e a salmoura e não me canso. Outra canoa chega. Venham assistir à lota! O pregoeiro no meio do grupo parte sempre - costume que começa em Sesimbra - de uma quantia alta para ir descendo até encontrar comprador. E também - já se fica sabendo -, quando fala por exemplo em oitenta e seis mil réis, são três mil réis a menos.

- Todos estes peixes juntos 86 mil réis. - E rapidamente. - 85, 84, 83...

- Três peixes cada um por 5 mil réis... 4900... 4800...

- Chut! - diz um dos do grupo. É o sinal de que está arrematado.

Mas a abundância e a riqueza, a fartura, é a sardinha. Foi inesgotável, foi compacta, tanta que noites inteiras e seguidas ninguém em Olhão podia dormir. E dizia-se: - Houve hoje grande matação de peixe. - Há aqui duas qualidades: a do sueste, que vem em Abril e arranca aos cardumes da costa de Marrocos; e o peixe do sudoeste, maior, mais gordo e menos saboroso, isto sem contar com a sardinha de passagem, que aparece em Janeiro, quando desova. - Já lá anda perdida... - dizem os pescadores. - Morde-lhe a ova. - Morde talvez, talvez a sardinha arraste a barriga na areia para tornar a pele mais fina, facilitando a saída da ova, porque chega nessa época até três braças de altura. Na Páscoa também é certa. Vai correndo por esse mar o cardume da sardinha, e os barcos, as toninhas, os homens e os peixes vorazes, uns na cauda, outros na cabeça daquele formidável rolo prateado, cevam-se de dia e de noite, pescando sempre, apanhando sempre, destruindo sempre, sem o extinguirem.

É do cais que larga a sacada com que os pescadores há uns anos procuram desforrar-se dos grandes industriais da pesca. A sardinha é atraída com engodo e fogachos e a rede puxada do fundo para cima. E ao fim da tarde é daqui também que partem os vapores do cerco com as redes - quarenta cabos de redes, com uma parte central, a copejada. Chamam-se calões os cabos extremos desta rede tão fina que parece a que as mulheres usam para segurar o cabelo.

A sardinha vem ã terra todas as tardes e retira pela manhã. Se há luar, desaparece. Os vapores navegam com as luzes apagadas no silêncio entorpecido destas noites de Verão, em que as estrelas se reflectem na água como faúlhas de lume e a Via Láctea desdobrada ilumina ao mesmo tempo o céu e o mar duma vaga brancura. Um ou outro fantasma de vapor passa por nós e some-se. O mestre Fadagulha, concentrado, espera... A bordo não se respira, e dir-se-ia que os outros barcos andam também na ponta dos pés. Silêncio e estrelas, cada vez mais estrelas. E sempre este movimento que sinto debaixo dos pés e este negrume que me envolve em círculos concêntricos, à medida que o barco se desloca, sob o céu que se aproxima e que sinto arfar. Toda a tripulação está atenta, desde os criados, os proeiros, até ao pedreiro e ao mestre, que são as pessoas importantes de bordo. O mestre não é apenas um observador - é um bruxo. Para largar a rede é preciso saber não só onde está o peixe - e o mestre adivinha o cardume -, mas calcular de antemão a qualidade e a quantidade de sardinha que se vai tirar no lanço porque não vale a pena fazer a manobra por uma pequena porção. - Quantos barcos, mestre? E ele responde logo:

- Dois, quatro, cinco...

Há em Olhão alguns mestres extraordinários: o mestre Manuel Gomes, José Coelho, o José Farroba, etc., que afinaram a observação e os nervos até ao golpe de vista preciso e exacto, à intuição rápida e infalível. Mestre Fadagulha é um velho curvado e seco, que conhece o mar como as suas mãos. Tem já um filho para o substituir, mas diz: - É bom, mas as sardinhas ainda o não conhecem como a mim. - Se o mestre sabe onde está o peixe, o pedreiro sabe onde estão as pedras. Com uma rede tão cara e tão fina, uma pedra inesperada é a ruína. A rede há-de ser lançada em sítio limpo.

- Posso largar aqui? - pergunta-Ihe sempre o mestre antes do lanço.

Ele tem a sonda, mas pedreiro que se preze raro a usa. Muitos nem saem do porão: olham o céu pela escotilha e a posição das estrelas. - Largue... - Ou dizem: - Mais ao norte... - É certo que o mar de Olhão até às sete braças é limpo, das sete às catorze sujo, e depois outra vez sem pedras. Mas há a contar com os calhaus isolados; que só quem foi criado na costa desde pequeno, como os pedreiros, e a conhece a palmos, tendo pescado toda a vida à linha, sabe onde ficam.

Noite cada vez mais escura, silêncio cada vez maior. Fervilham as estrelas no céu, isoladas ou aos grupos, com buracos de escuridão profunda no alto que fazem sobressair as jóias mais puras. Uma coisa indistinta bóia ali à superfície, que não sei se é fosforescência, se reflexo da Via Láctea... Escuro - mais escuro, e depois outra vez ascendendo do mar uma claridade vaga como um bafo que se dissolve. E sempre este ar salgado, esta exalação das águas que me deitam a respiração à cara. Começo a perceber no mestre, curvado e calado ao pé de mim, uma grande excitação. Fala baixo: - Cá está a brancura! Cá está a brancura da sardinha!... Bate lá!...

A seu lado, um homem bate com um malho numa tábua, e este ruído faz estremecer e reluzir o cardume na profundidade das águas. O barco roda. O silêncio aumenta. Aqui, acolá, no negrume, ouve-se o mesmo bater compassado a bordo de outros vapores que deslizam na noite como sombras. - Bate lá!

E não despega os olhos do mar em busca da ardentia. São dez horas. O mestre imobilizou-se, petrificado... Entre ele e o banco do peixe estabelece-se uma comunicação magnética: durante alguns momentos é um adivinho, sob uma excitação nervosa extraordinária.

- Bate lá!... Bate lá!... Isto deve andar por perto.

Pressente-a. Vai-lhe já no rasto. E começa a falar sozinho - mais alto - mais baixo - ao acaso:

- Ela está aqui... ela não está longe. Não, não é esta... Isto é, quando muito, um barco... Bate lá! Bate lá!...

O bruxo interroga a noite, o silêncio e o mar. A excitação aumenta:

- Mais ao norte! - berra -, mais ao norte, estas são pequenas! Proa ao norte! Bate lá!... Aqui é que elas estão! Pois não deviam de estar! São elas. ..

- Quantos barcos, mestre Fadagulha?

Mas nesses momentos não gosta que o interrompam e responde com modo brusco:

- Quatro barcos, senhor; devem ser quatro barcos. Cá estão elas, eu não o dizia! Cá estão elas! - E num grito de triunfo: - Rede ao mar! Venha a chata!

A rede é lançada ao mar e fixa pela chata. Toda a excitação do mestre desapareceu de repente. Toma o leme e brada ao maquinista:

- Toda a força à máquina!

Trata-se agora de envolver rapidamente o cardume da sardinha e ouve-se o vozeirão no escuro repetir: - Toda a força! Toda a força!

E o vapor desliza, fechando o círculo. Aqui e ali, lá para o fundo, sob o rodilhão das estrelas, repete-se a mesma manobra; aqui e ali, mais perto, mais longe e apagado, ouve-se o bater compassado dos malhos que fazem vibrar e reluzir os cardumes no fundo da água e os mesmos gritos de comando:

- Mais ao norte! Mais ao sul! Larga a chata! - De novo interrogo o mestre:

- Quantos barcos?

- Quatro barcos, senhor, devem ser quatro barcos - responde com a maior serenidade.

Ele não só pressentiu a sardinha: soube também se era grande ou pequena e quantos barcos, mais xalavar, menos xalavar, estavam dentro da rede. A manobra executou-se rapidamente e a companha trata de apanhar o peixe, puxando as chumbadas e colhendo-as do fundo até se unirem no ponto onde o círculo se fechou. Resta meter o peixe para dentro das cavernas: são efectivamente quatro barcos de peixe.

Pela manhã, à luz da madrugada, na frescura que se exala da primeira claridade e do hálito do mar misturados, faz-se o lanço da sorte. É o último e ao acaso, mas sempre para o lado donde se conta que venha a sardinha. O mestre descobre-se e com ela toda a companha e diz, com solenidade:

- Em nome de Deus e do altar, esta rede ao mar! Antigamente, o produto da pesca dividia-se em partes iguais por todos os homens das canoas, incluindo o arrais, e o Senhor dos Passos não era esquecido nos lucros, ganhando também o seu quinhão. Com os aparelhos de pesca mais complicados, tira-se do monte comum um certo número de partes para o barco, que representa uma personalidade, e outras para o aparelho, para a companha, para o Compromisso Marítimo e para a gente nova no serviço que vai a merecer. A parte do mestre chama-se a parte do corpo e a parte do governo. No cerco americano ou nas artes valencianas, os homens têm um salário mínimo de oito tostões por dia e uma percentagem sobre a pesca, que no cerco vai até quinze por cento. Além disto, distribuem-se dois xalavares para cada três homens, peixe do rancho, que lhes dá para comer e para vender. E sobretudo há a furtança, que é uma instituição. Ninguém o ignora. Eles próprios o dizem. Sabem-no os patrões: o peixe é tanto e dá tanto dinheiro que fecham os olhos. A tarrafia, isto é, o logro, é corrente e de todos os dias. A furtança é geral. Roubam os homens, que escondem o peixe nos cestos, nos cantos do barco, onde podem. Roubam as mulheres e os rapazes. E até gente de certa categoria o furtava nas ruas. Era talvez por isso que o Tarraço, homem do campo, avarento, dizia: - Esta gente do mar nasce roubando e morre pedindo.

Tarde. Olho pela última vez a brancura imaculada dos terraços com o céu todo de oiro em cima e deixo com saudade esta luz e esta terra embruxada.

...Teria aqui uma casa numa das vielas fedorentas mais escusas. Para o exterior um muro sem uma janela, um muro velho, com um postigo mais velho ainda para entrar. Aberta a porta, seria um deslumbramento: no pátio caiado, só luz e folhas gordas, da variedade dos cactos que dão flor verme- lha, humedecidas de água sempre a escorrer. Teria duas escravas para me servirem frutos translúcidos acabados de apanhar. Teria um barco para o contrabando nos mercados de Gibraltar e de Marrocos, satisfazendo assim os meus velhos instintos de pirata. E de noite, a este luar que tem não sei o quê de mulher, de pele de mulher, de seios duros e brancos de mulher, dormiria na açoteia sob as estrelas, grandes como fogachos.

Era viver num meio adormecimento, seduzido pela luz, fora de todos os interesses e realidades, em Portugal e no Sonho...

 

O que eles escrevem:
. Jacob Job
. Zeca Afonso
. Aquilino Ribeiro
. Manuel da Fonseca - Fuseta
. Manuel da Fonseca - Olhão