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Natal e os reis magos

A pretexto de qualquer dia santo, ou até feriado, Olhão fazia festa e entra em folguedo, expandindo o seu inconfundível humorismo - abundância de gracejos, trocadilhos, e anedotas...

Assim era em anos passados, nomeadamente no dia de Natal e na semana a seguir, melhor dizendo nos dias de Ano Novo e de Reis.

Duas práticas caracterizavam esses dias. Charolas para o canto do Menino, e o ritual da espera dos Reis Magos.

As charolas obrigavam a organizações mais ou menos demoradas: o estudo da composição dos grupos: quem seriam os bandolins, os violas, os castanholas e os pandeiros? Após os referidos acertos, começavam os ensaios, processo que durava um mês, fazendo-se geralmente pelos arrabaldes rurais: Marim, Pechão, Quelfes e Cavacos, entre outros. Os ensaios sempre obrigavam a alguns sacrifícios, como sujeição à chuva, andar a pé com instrumentos às costas e perder noites. Mas tudo isto era ultrapassado com as alegrias oferecidas nos dias e noites das exibições, bem como nos orgulhos trazidos das mesmas, obtidos pelos juízos populares.

Afora o «canto velho», já vindo de remotos tempos, todos os anos se estreavam outras músicas: «canto novo», marchas e valsas. Também os tocadores mais velhotes, um, este ano, outro, para o ano, iam sendo substituídos.

Tiveram grande repercussão tocadores como Luís Evaristo, Jobeca, Raul de Carvalho, Joaquim Pereira, Belmiro, Padre João, e João Marreco, entre muitos. Todavia o elemento mais famoso nestas práticas era um homem chamado Manuel João Batista Alberto, também conhecido por Manuel Padre João. Para além de fazer parte duma ou doutra charola, a sua grande qualidade estava na composição musical. Era um criador genial de músicas populares.

(...)

 

Todos os músicos tinham, e têm a vaidade de tocar bem, fazendo com que os seus instrumentos se ouçam mais que os dos outros, pondo um ar superior nas suas fisionomias. Nesse sentimento ninguém levava a palma aos humildes pandeiretas e castanholeiros, que chegavam constantemente a levantar os braços, para em bicos dos pés mostrarem a habilidade e destreza no rufar e no bater dos dedos. Só o senhor presunçoso, Cabouco, considerando-se grande castanholeiro, começando com ares de enfrentador, fazia-se, paradoxalmente, sobressair, abaixando-se quase a tocar o solo. Aí tremia as castanholas, na ânsia de estas se salientarem das outras, e desse modo se fazerem notar.

Estas sortidas de casa em casa, tocando e cantando o Menino, faziam-se peloAno Novo e Reis. Mas à meia-noite deste último dia, procedia-se a um dos maiores rituais que jamais se fizeram na terra das açoteias: a espera dos Reis.

Durante muito tempo foi esse ritual organizado pelo dinâmico e famoso actor (também barbeiro) chamado Raul de Carvalho, com oficina de barbearia na Avenida da República, onde hoje é o Calquinhas.

A partir das dez horas da noite, a maioria da vila cubista caminhava estrada afora até aos lendários Pinheiros de Marim. Na frente dos pinheiros, acumulava-se um mar de gente a comprimir-se e a acotovelar-se para esperar os Três Reis que lá dos lados da Armona viriam trazer as ofertas aos meninos. À expectativa juntava-se o desejo da chegada da música, uma das bandas da terra.

Música chegada, emergia uma barulheira e uma confusão, esperando-se a todo o momento o burro a anunciar a vinda, já atrás, dos Reis, montados em cavalos ou mulas, na substituição dos camelos. Não demorava muito e ei-los a aparecer com vestes de tule e turbantes de seda branca, muito direitos sobre as muares. Era então um delírio, na confusão dos verticais pinheiros. A música rompia esperando a chegada de facto, para de seguida entrar na retaguarda dos orientais monarcas que dos alforges começavam a atirar oferendas: rebuçados, laranjas, e (vejam só) notas ao tumultuoso acompanhamento.

Em anos mais recentes, por ser exagerada a distância aos pinheiros, passou a fazer-se a espera na Patinha. Todo este local e parte da Avenida Dr. Bernardino da Silva ficavam repletos de pessoal, nessa noite. Contrariamente à devida orientação, os reis passaram a vir do Norte, por detrás da azinhaga da fábrica do Reis Silva, o que em nada prejudicava o entusiasmo nem o cortejo. O mar de gente, enquanto não surgia o burro anunciador - primeiro elemento da «procissão», agitava-se, rumorejava, e gritava de impaciência. A todo o momento ouvia-se: «parece que já vêm além». Desilusão com grandes ahs! Ainda não era. Por fim, com gritaria inesperada aparecia o burro trazendo um disfarçado escarrapachado no lombo. Principiava a «embaixada». Mais atrás, de olhinho azul, vinha o torto Manita, bochechudo, sustendo a haste com a estrela do oriente lá em cima, bem acesa. Perguntava-se ainda quem trazia a estrela. Era o Zé Manita! Era o Zé Manita! Mais atrás, ainda, vinham quatro ou cinco colunas de gaiatos misturados com matulões; finalmente, no meio duma dúzia de archotes de retenidas bem acesos, montando três escanzeladas alimárias, com passo pachorrento, aparecia, em carne e osso, o cenário do Baltazar, Belchior e Gaspar. O Baltazar era o Tocha que nos pés descalços apenas trazia as grandes e espessas unhas negras; o Gaspar era o Teófilo-pretinho que o inesquecível Zé da Mónica trouxera da América; e o Belchior era o Bocage, engraxador, de olhos aguados enterrados na papuda cara rosada de beiços finos. Embora mal calçados, as vestes eram solenemente orientais. O cortejo avançava calmamente, ouvindo-se aqui e ali «Viva aos Reis», debaixo duma marcha lenta, tocada pela banda. De vez em quando, parava nos pontos considerados mais importantes da Avenida Dr. Bernardino da Silva e por fim na da República. Em cada paragem havia palmas aumentando a gritaria. Assim em passos lentos com os camelos dos reis substituídos por mulas, se chegava ao cinema velho (Cinema-Teatro) deslumbrantemente iluminado por dentro e por fora. Sempre em alarido as reais figuras apeavam-se e avançavam, deitando solenes saudações ao apinhado público que as esperava. De sorrisos esboçados dirigiam-se com lentidão ao palco, onde uma comissão de honra os aguardava. Um dos elementos da comissão discursava, dizendo da grande honra que a terra de Olhão sentia em receber suas majestades. Acabado o protocolo, os reis procediam à distribuição dos brinquedos e de notas (falsas) pelo pessoal miúdo.

No fim, a música rompia numa alegre marcha; os reis eram abraçados; e o pessoal saía, indo, de novo, encher a Avenida que só se esvaziava de madrugada.

 

Retirado de

bulletPiloto, Diamantino - O meu Olhão (crónicas) e Contos de Olhão - Algarve em Foco, Faro, 1997, pp 83-88.