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OS PINHEIROS DE MARIM

Arqueologicamente, Olhão, em si, é de pouca importância comparada às suas freguesias rurais, nomeadamente Quelfes e Moncarapacho.

Nos testemunhos históricos de Quelfes, surgem, com relevo, os achados no lugar de Marim, onde se confirma ter existido uma povoação romana. Continuou esse sítio, em nossos dias, tendo muito interesse para arqueólogos e até etnógrafos; tomando-se, em tais aspectos, num centro de atracção.

Fronteiro ao espraiamento dum troço da Ria Formosa, frente às douradas areias da Armona, esse lugar recebia perfumes dum majestoso pinhal que a certa altura, também pelas suas sombras, começou a atrair as gentes olhanenses. Ideal para os seus lazeres, aí se faziam acampamentos, piqueniques e desportos. Era belíssimo para banhos, distracções e festas, nos fins-de-semana.

Mas se o valor dos testemunhos, de antigamente, projectou Marim para dentro e fora de todo o Concelho, os testemunhos turísticos não deixam menos de o notabilizar. Nestes contavam-se os perfumados ramalhetes de lírios, os sacos de pinhas resinosas, as alcofas de agulha de pinho seco, para no lume substituir a charamuga, e as bolsinhas de conchas achadas à beira-mar. Além disso tudo, tomavam um interesse especial os testemunhos de aprazíveis e artísticas manifestações humanas: pinturas, desenhos e fotografias euforicamente aí tiradas à beira-mar duma doirada e azul prainha, ou no miolo do denso, aprumado, pinhal verde. Essas fotografias, ainda hoje guardadas em gavetas de gente olhanense, evocam os dias de felicidade e bulício sentidos no tempo passado. Nelas se vêem a confraternização das modestas famílias, e a camaradagem entre operários, pescadores e humildes empregados.

Lá, estão toalhas estendidas no solo musgoso, pejadas de pão, latas de conserva e garrafas. Também as há, de grupos de futebol, estudantinas e charolas.

Na irrequieta vila das açoteias tudo se combinava durante a semana.

Modestas famílias? E trabalhadores? Então e os ricos? Estes afastavam-se para mais além da estrada. Tinham ou alugavam vivendas e casas, não dando, assim, confiança à plebe.

Voltando às faladas fotografias, há neste momento algumas, onde o imparável tempo já toma impossível a identificação dos figurantes. Reparando nos trajes, concluiremos que os passeios aos Pinheiros de Marim, em domingos, feriados e dias festivos, vieram de longo tempo.

Servindo de informação – como documentário de cinema –, faremos referência ao que se passava nesses saudosos dias:

Tudo principiava aí pelos meses de Abril e Maio. As manhãs, já choradas as lágrimas do inverno, como que esquecidas da tristeza, surgiam claras, mornas e risonhas. Para lhes darem maior alegria, as rosinhas principiavam a trepar pelos caramanchões; os craveiros disputavam a floração e os goivos emprestavam restos de perfumes exalados na noite.

Pela sexta-feira, em vaivém, a ideia de passeio insuflava alegria de viver. Sábado à tarde, começavam-se os preparativos: fritavam-se bifes, confeccionavam-se almôndegas e pastéis; açucaravam-se fatias e as garrafas eram cheias e enrolhadas; isto num papel de seda, aquilo numa folha de jornal; as sanduíches num cesto, a fruta numa cesta. Tudo ficava arrumado no corredor, esperando o dia seguinte.

Na manhã, já nascida, quando o sol se preparava para castigar as pessoas com picadinhas no pescoço, fugindo a essa ira, as gentes abalavam por umas nove horas, rumo a esses Pinheiros de Marim. Quem ia?

O pai, a mãe, os moços, a prima e a filha do aguadeiro, ali vizinha, com o namorado...

Passada a vila, o pai ia à frente com dois cestos, a mãe atrás levava um, e, mais atrás ainda, a prima apanhava, de vez em quando, uma florinha nascida entre as pedras dos carris do caminho-de-ferro. Distanciados, a filha do aguadeiro e o namorado ciciavam de mãos dadas, enquanto os moços saltavam e corriam como cabritos. E assim, o cortejo se ia deslocando lateralmente às calhas do comboio, pisando a cerreteira mole, quente e areenta, ladeada de figueiras de pita, onde uma ou outra nora oferecia fluxos de frescura.

Quando se chegava aos Pinheiros, já outros, abalados mais cedo, tinham armado as «ardoiças» e acendido os fogareiros: a carne sempre levava tempo a guisar. Debaixo dum pinheiro escolhido, um pai de família, com ar grave, lia o jornal, de papo para o ar.

Procurava-se então o melhor sítio: mais plano e servido pela sombra de dois ou três pinheiros vizinhos.

Daí a pouco tempo na vasta clareira aberta frente aos tanques da quinta que se integrava no pinhal, já havia futebol mesmo com os sapatos de domingo.

Pelas escadarias envolventes, e acessíveis ao «chalet» do poeta João Lúcio, pessoas paradas admiravam o harmonioso edifício; outros desciam os degraus a dois, com a mesma liberdade dos pássaros a saltitar; muitos subiam, para depois sentirem o prazer de olhar para baixo. Desejando que esses dias se perpetuassem, escreviam ou gravavam as datas e os seus nomes, por paredes e cantarias.

O «chalet» tornou-se familiar aos filhos de Olhão, não deixando de impor respeito e misteriosa admiração: ele evocava as musas que em noites serenas se escondiam pêlos torreões; cânticos dum mundo longínquo transmitidos a este mundo; representava um palácio que já teria jorrado poesia, como fonte de água cristalina.

Se a suave aragem passeava os odores dos «lírios amigos das crianças» e da vegetação alastrada no pinhal, o peito inchava aprazivelmente com o ar: uma onda de apetite obrigava a abrir os cestos antes da hora.

Daí a pouco, sol a pino, era o piquenicar. Por cada ramalhudo pinheiro, uma família.

Rolhas sacadas, garrafões e garrafas cediam os líquidos para o refresco das gargantas. A rapaziada dirigia-se à nora para trazer água, bem pura e fria, em infusas e desmontáveis copinhos de alumínio. Era derramada dos alcatruzes vindos na descida. Por toda a parte se ouvia:

- É servido? São servidos? Querem daqui? Estes convites com os dentes a trincar rissóis ou rasgar bifes. - Bom proveito, vamos fazer o mesmo, respondiam os que passavam.

Durante a calma, ausentava-se a algazarra e um silêncio momo era por vezes, interrompido por zumbidos de mosquitos ou então de besouros ziguezagueando no pinhal.

Logo que o calor amornava e alguns se espreguiçavam ou sacudiam; começavam a ouvir-se as roufenhas vozes de grafonolas. Era a Adelina Fernandes, ou a Maria Alice a cantar os fados tristes desse tempo, Mudava-se a agulha, escovava-se o disco e de novo se dava à manivela: agora era um «One Step» ou um «Fox-Trot»... Antes de acabar o disco, moços e moças enlaçavam-se em bailarico sobre os pastos secos.

Ao meio da tarde recomeçava o reboliço, agora com mais barulheira, porque na parte da tarde surgia mais pessoal.

A gaiatagem exibia a destreza da idade: saltos, gritos, subidas às árvores, o que os moços fazem quando se apanham donos de si. Os de quinze em diante procuravam as fêmeas da sua idade para maliciosamente jogarem ao padre-cura.

Na clareira junto aos tanques, um desafio de futebol: quinze de cada lado atrás da bola, num terreno poeirento com vegetação seca. Se havia interrupções?... Sim! a montes. Frequentemente, a bola furava-se nos bicos dos tojos.

Entre a multidão a divertir-se, um mestre-barbeiro e o seu aprendiz tocavam instrumentos de corda. Se o vento estava de feição, também se ouviam instrumentos de sopro a tocar ao longe. Por toda a parte eram sorvetes com gritos de mola-abaixo. «Kodaques» focavam ranchos estendidos, ou alinhados, de campânula de grafonola em primeiro plano, enquanto famílias da Barreta chupavam amêijoas, atirando as cascas para trás. Lá para os lados da estrada alcatroada, deparava-se a Mãe-dos-Pinheiros com o seu descomunal manto a proteger uma roda de pinheirinhos espigadinhos. - A célebre bruta mãe dos pinheiros do mano João Lúcio. O seu vasto perímetro limitava alta e densa ramaria por onde os lagartos corriam espantados.

Um grupo de pândegos vindos da venda do Zé Gaitinha, de tacho pousado nas emergentes e grossas raízes, e garrafões nas mãos, após a caracolada, preparava-se para abraçar a arcaica pinheira. Para isso, quantos seriam precisos? De guitarra na mão, olhos brilhantes, trocando as pernas, cercavam o tronco num abraço colectivo. Contavam e o resultado era meia-dúzia.

Eram estes os Pinheiros de Marim até o sol abrandar e a tarde morrer!...

Depois?... Depois, fechar cestos e voltar pachorrentamente.

Donde vens?

Cabisbaixo: - Venho da festa.

 

 

Retirado de

bulletPiloto, Diamantino - O meu Olhão (crónicas) e Contos de Olhão - Algarve em Foco, Faro, 1997, pp.63-67