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Manuel da Fonseca percorreu o litoral algarvio, de Vila Real de Santo António a Sagres, no Verão de 1968, durante 16 dias, tendo escrito 16 artigos que sairam no jornal "A Capital" de 1 a 16 de Agosto desse ano. Estes artigos tinham o objectivo de relatar o Algarve, aos leitores do jornal, com os olhos e impressões de um viajante observador chamado Manuel da Fonseca.

Estes artigos foram então publicados com os "cortes" da censura política da época mas em 1986, o autor republica-os, já sem "cortes", com o título "Crónicas Algarvias". Dois capítulos são  dedicados ao Concelho de Olhão: o primeiro à Fuzeta (segue em baixo), e o segundo dedicado a Olhão.

 

Da Fuzeta à serra com volta a Alfandangas
Breve passeio pela rua principal

Vindo de Alfandangas, ao entrar na Fuzeta pela rua principal, encontramos, à esquerda, um cinema com o nome, em grandes letras, pintado na parede: Cinema Topázio.

Passos andados, a rua alarga um pouco, formando um rectângulo, estreito, arborizado e com bancos de jardim: é a Praça da República. Num dos bancos, um velho de pele amarelada, seco e curvado, de mão nodosa apoiada a um bordão, cabeça tombada, ausente e de olhos parados como de cego, fita o chão. Perto, e tão distantes, debaixo de uma palmeira, dois rapazinhos jogam ao berlinde.

No outro lado há um café. Está aberto e vazio. Sobre o passeio, sentados em cadeiras com os espaldares, onde apoiam os braços, voltados para a frente, dois homens, de chapéu levantado na nuca e caído nos olhos, falam com outros dois homens, os quais, também de chapéus levantados na nuca e caídos nos olhos, estão de pé, pernas cruzadas, corpo inclinado para a banda, e encostam os cotovelos à capota de um automóvel.

Quando passo, calam-se. E todos os quatro, sem se moverem, vão virando furtivamente os olhos, a tentar descobrir quem sou, de onde venho, que faço. Sigo em frente como se nada tivesse notado. Ao passar, noto aborrecido que, à esquina da Praça da República, o Bar da Tia Anica ainda não abriu.

E lá continuo no jogo do cego que vê tudo. A tarefa obriga. Ver, ouvir e saber eis a base do repórter. Assim, indo a meio caminho, avisto, pela porta de uma casa térrea, quatro ciganos vestidos de preto, caras duras e de chapéu negro, sentados em volta de uma mesa. Atrás deles, de pé, quatro ciganas delgadas e altas, também vestidas de preto, aquietavam-se, de braços cruzados sobre os seios. No silêncio da casa, a mais jovem, de queixo atirado para a frente, chora.

Foi somente o que vi. Nada mais do que isso. Um quadro para ilustrar uma crónica de repórter. Bem diferente, no entanto, da fotografia dos três ingleses de Monte Gordo.

 

Uma casinha de açoteia

Quase no fim da rua principal, subo, para a direita, pela Rua da Boavista. Sem disfarce, decido espreitar para as casas de açoteias. Em certa altura, paro. Uma velhinha, que cosia, sentada à sombra, num pátio, fita-me por cima dos óculos encavalitados na ponta do nariz. Cumprimento-a. E, de seguida, peço-lhe licença para entrar. A velhinha olha-me com surpresa.

- Se me desse licença - digo-lhe -, gostava de ver a vista para o mar, lá de cima, da açoteia.

- Sim, senhor, sim, senhor - respondeu-me a velhinha, sorrindo um pouco contrafeita.

O pátio é mais baixo do que o nível da rua. Desço a escada estreita e de poucos degraus. É um patiozinho pobre, mas limpo e fresco, com vasos de flores no chão lajeado. Uma porta e uma janela, de caixilhos pintados de azul, enchem quase toda a parede. Do pátio, uma escada de degraus forrados de tijolo vermelho-escuro sobe para a açoteia, que ocupa o espaço onde seria o telhado.

Desta espécie de terraço, ou mirante, avista-se parte da povoação e, ao longe, a praia, que é um areal imenso para lá de outros areais. Perto, em baixo, o casario une-se num vasto jogo de sombra e cal, recortado pelas superfícies planas dos muros baixos e rectangulares das casas das açoteias.

Desço. Rosto risonho de rugas, a velhinha convida-me para entrar, a ver a casa.

- É uma casa pobre - diz-me. E acrescenta com desgosto: - Como havia de ser, sou pobre!...

A porta dá para a cozinha. Lareira, mesa de pinho, três pratos postos ao alto na prateleira, tachos de cobre pendurados de pregos, o candeeiro de petróleo na cantoneira e a bilha de água no poial de pedra.

No quarto da janela que abre para o pátio, uma cama sem guardas, coberta de chita com florinhas roxas. A arca e, sobre a cómoda, três fotografias. Uma, de duas crianças. Outra, ao meio, a mais antiga e já amarelecida pelo tempo, um casal de corpo inteiro; a velhinha e o marido, quando novos, concluo eu. E, na direita, um rapaz: que deve ser o filho, continuo eu a concluir.

Passo à última dependência. Uma arca, duas mesinhas-de-cabeceira, a cama de ferro com maçanetas imitando pinhas e, ao alto, encaixilhada, uma Nossa Senhora dos Aflitos.

Saímos para o pátio.

- Vive sozinha? - pergunto.

Como é um pouco surda, o que já notei, curvo-me e repito a pergunta.

- Vivo - diz-me ela, sorrindo. - Sabe: O meu homem morreu, o meu filho casou-se... foi viver para casa dos sogros.

Magrinha e miúda, de lenço negro sobre os cabelos brancos, continua a fitar-me, como que à espera de nova pergunta. O seu sorriso triste demora-se aguardando. Mas por instantes, deixa de ver-me. Os olhos claros, aguados, olham para o passado. Conformada e triste, volta à tona da realidade:

- Tinha de ser. É o que o tempo faz às pessoas. O meu marido morreu, o meu filho, esse...

 

Taberna numa loja que vende de tudo.
A falta da estrangeirada.
Vinho com pêras e desconfiança.
«Traz navalha?»
A mulher que cala ganha à mulher que fala

Volto à rua principal, pelo caminho para o lado de onde vim. Ao passar pela Praça da República, os rapazinhos que jogavam o berlinde continuam ainda o mesmo jogo. O velho tal e qual: cabeça caída, olhos no chão. Quanto aos homens da porta do café na mesma: dois de cotovelos contra a capota do automóvel, os outros dois sentados nas cadeiras, de espaldares para a frente, e ambos de pernas abertas como quem vai a cavalo. Quando passo, a cena repete-se: todos me olham de través. E o Bar da Tia Anica continua fechado!

Passo o Cinema Topázio, entro numa taberna. Reparo, então, que se trata de uma loja onde se vende de tudo. Mas a área principal, ocupada por mesas e bancos, é a da taberna.

Numa das mesas, copos sobre o tampo redondo de folha, dois homens acompanham o vinho com pedaços de pêras, que cortam e descascam à navalha. Desconfiados, param a manobra e olham-me. Dou a saudação, a que nenhum responde. Continuo até ao balcão e aguardo que alguém me atenda. Demorado, um dos homens levanta-se. Alto e delgado, chapéu preto de pala para os olhos, avia-me uni copo de vinho.

- São servidos? - convido.

Agradecem. Teimo, ganho e falamos disto e daquilo. Ambos ainda reticentes, lá me vão respondendo.

- Quando falta a estrangeirada, que é que se espera? - diz-me o sujeito que me veio servir e parece ser o dono da loja. - O ano passado? O ano passado também foi fraco.

- Pouco dinheiro - intervenho eu para animar um pouco mais a conversa.

- Muito pouco - acrescenta o outro, também de chapéu preto puxado para os olhos. - Se a época de banhos é boa, alugam-se muitas casas, os que lá moram vão dormir onde calha, mas lá lhes fica o dinheiro para irem tapando os buracos o resto do ano. Que isto do peixe anda muito aviltado. A maior parte do tempo não há. Se há, que é que ganha um pescador?

Mando vir outra rodada. Que não, que era a vez deles. Pago eu, pagas tu, opondo-lhes razões fortes: estou de passagem, nunca mais poderei retribuir o obséquio.

- Tenho de ser eu a convidá-los.

- Só se me aceitar um pêro! - opõe como condição o taberneiro.

Aceito. Vai a um cesto buscar um pêro. Dá-mo:

- Traz navalha?

- Esqueci-me ao mudar de fato - respondo eu, para manter-me ao nível da situação.

- Corte com a minha. Não é nada má. Tem-me servido.

- É sempre bom uma navalha - acrescenta o outro.

Pelo tom, as frases dos dois homens parecem-me cheias de insinuações. O pedaço de silêncio demora-se. Pensariam que era fiscal dos géneros, polícia e assim por diante?

Apesar das circunstâncias ou talvez por isso mesmo, dou por mim a beber de gosto. O vinho é aberto e claro, leve. Acabo por concordar que é agradável misturar vinho com o pêro. Deixa na boca um odor saboroso, acre. Sorrio para os dois homens, louvando a receita.

- Isto está a precisar de melhoramentos - diz o mais baixo, olhando para um ponto fixo.

- Melhoramentos? - admiro-me eu.

- Acha que não?

De repente, a conversa mudara. E não era fácil, como a anterior.

- Não estou a ver.

- Por exemplo - prossegue ele, agora a olhar-me. - Umas três pontes que facilitassem a ida para a praia. Quem diz ida, diz volta, claro.

- Que conversa!... Navalhas, pontes. Que linda taberna.

- Há pior.

- Que terão eles contra ti?

- Nada. Como não tenho aspecto de veraneante nem de turista, querem saber quem sou.

- Perguntem.

- Quem responde certo? Ninguém. - Estão no jogo das indirectas.

- Apenas um modo de disfarçar. Falam de coisas inocentes, a ver se pega. Melhoramentos, por exemplo, é um bom assunto.

- Sendo assim...

- É boa gente, acredita.

- Será. Mas como já não há terra que não queira uma ponte...

- Estes querem três para ir à praia.

- Três pontes!... Vão de barco. Calcula tu, com o preço da portagem, a quanto vai ficar cada banho!...

- Não calculo nada. Deixa-me ouvi-los.

Ia o homem enunciar o segundo melhoramento, irrompe pela taberna uma mulher de voz aguda, cantada. Mal a compreendo. Apenas imagino o que diz pelas respostas do taberneiro. Respostas deste género:

- Traz dinheiro? Se não traz dinheiro que quer que lhe faça?

A mulher gesticula, vai à porta, demora-se a olhar para fora, volta. Cabelo em desalinho, o vestido folgado agita-se-lhe nos movimentos do corpo magro. A cara é pardacenta, marcada pelos azares da vida, os olhos grandes e inquietos.

Inesperadamente para mim, uma mulher de cabelos loiros, vinda dos fundos da taberna, e como que desatenta da conversa, aparece atrás do balcão. Veste com elegância, ar senhoril, distante e dominador. Tudo nela está em completo desacordo com a loja, malpronta, sombria.

- Que é que está a olhar? - grita-lhe a outra. - Julga que lhe venho roubar o homem? Guarde-o. Não preciso dele. Nem de ninguém. Não fosse eu estar doente, ainda a esta hora estava lá em França! Mas, logo que me ponha boa, hei-de voltar. Mais certo!...

Relanceia-me o olhar, agacha-se, bate com as mãos nos quadris e, de braço estendido, aponta para a mulher loira:

- Bem te conheço! Mas vejam-me só isto! Feita uma senhora!... Que tipa!...

Faz um violento manguito, e sai, porta fora. Imperturbável, a loira recolhe aos fundos da taberna. Ficámos um bocado cm silêncio. A conversa não tinha jeito de recomeçar. Bebi o resto do vinho e paguei. Nem me despedi, de encantado que ia.

 

Da Fuzeta para Estiramantens,
por Alfandangas, de visita
ao museu

O táxi da Fuzeta leva-me a Alfandangas, onde vou apanhar a camioneta para Olhão. Meio quilómetro andado, diz-me o motorista:

- Talvez gostasse de ver o museu de Estiramantens.

- Museu de onde?

- Do monte da Guerreira, em Estiramantens. É dos mais visitados do País. Às quintas-feiras são às meias dúzias de camionetas, fora os automóveis. Também lá vai o rancho de Moncarapacho para dançar na eira.

O programa pareceu-me aliciante.

Chegamos a Alfandangas, um cruzamento de estradas, quatro casas. uma bomba de gasolina e um café (onde eu deixei a mala antes de ir para a Fuzeta), metemos em direcção à serra, a caminho de Estiramantens.

- É perto - informa-me o motorista. - O dono do museu já foi, com as pratas, representar o País a uma exposição em Londres.

«Prata lavrada, e da antiga!.», penso eu, enquanto a estrada sobe entre olivais e figueiras. Paisagem que se repete até Estiramantens, povoação que não chego a avistar sequer. A casinha, onde, segundo afirma o motorista, está o museu, fica isolada a meio da serra.

Passado o portão do muro fronteiro ao museu, o carro pára entre dois automóveis estacionados no terreiro. Em volta há um ar de festa. Debaixo de oliveiras, grupos petiscam. Ciclistas procuram resguardar as máquinas do sol.

- Gente dos arredores - diz-me o motorista. - O museu é por aqui.

Estreita passagem de tijolos, entre vasos e o jardinzinho rústico, dá acesso ao museu, moradia de um só piso e caiada, com duas janelas e uma porta ao meio, por onde um formigueiro vagaroso. formado de camponeses, mulheres e crianças e outros indivíduos de diferente camada social, singra, cauteloso e atento, ladeando móveis, colunas, cadeiras, jarras, de modo a não deixar abaixo nenhum dos objectos expostos, tão amorosamente guardados durante tantos anos, nem perder nenhuma das palavras das circunstanciadas explicações, que um senhor baixinho, de cabelos brancos, óculos esfumados (segreda-me, aqui ao lado, o motorista: «É o dono do museu, este senhor!...») vai dando acerca dos predicados, particularidades, números, factos circunstanciais e datas relacionadas com as peças mais valiosas da colecção, na qual são dignas de admirar entre outras...

- Pára lá, homem!

- Agora que ia embalado!...

- Pára. Já ninguém escreve períodos desse tamanho. E se os escrevem têm mãos, puxam pelo estilo. Suam, que lhes custa, mas aguentam-se bem. Abrem orquestrações de uma arquitectura de melodias inesperadas, voláteis. Filigranam o ondear da frase. Ritmam os elementos constituintes. Aprimoram o entretecer do fio da ironia. Distribuem sabiamente os adjectivos. Amontoam-nos. Dispersam-nos. E quando o leitor perde o fôlego, rematam-no com o verbo no fim, segundo a boa lição dos clássicos. Que é o que tu não sabes fazer.

- Mas eu ainda não cheguei ao fim.

- Nem chegas, que te quero avisar de uma coisa: não te ponhas a descrever miudamente as peças do museu. Além de enfadonho de ler, não percebes nada disso. Por outro lado, viste de passagem, ouviste mal as explicações e acabas por baralhar tudo e baralhar-nos a nós. Deixa. Não descrevas. Quando calhar, a gente vem cá ver.

- Documentei-me.

- Fica-te bem dizer isso. Mas, guarda os documentos e ouve. Não seria melhor eu ditar-te a parte do museu? Ditado por mim livravas-te de responsabilidades...

- Se teimas tanto!...

- Então, escreve lá. «São quatro salinhas, trás contíguas, e a última separada destas pelo corredor de entrada. Ou seja, salinha de jantar, quarto de dormir, capela e salinha de visitas, cheias todas de variadíssimos objectos cada um de sua época, uso e todos muito antigos.» Agora, se queres dar urna nota de erudição, escreve: «Segundo verifiquei objecto por objecto, o quarto de dormir é unicamente composto de peças D. Maria II.» Escreveste tudo?

- Escrevi.

- Belo. Podes ir ver dançar as raparigas de Moncarapacho.

- Mas, antes, quero agradecer-te.

- Não tens de quê.

- Tenho. Eu já não sabia para que lado me voltar, no tal período. Descrever um museu!... Livraste-me de boa.

 

De uma cana se faz um cesto.
Três velhos ensinados em curvaturas.
Inglesas bebendo e ingleses provando.
Corridinho e outras danças na eira.
A volta a Alfandangas

Com a chegada de duas camionetas de turistas ingleses, homens e mulheres todos além dos cinquenta anos e ostentando, desde os cabelos às sandálias, as mais variadas combinações de cores vivíssimas, a eira, que é grande, fica envolvida...

-Atenção ao tamanho do período.

- Acabo já.

... por um vasto círculo de espectadores.

- Só duas camionetas - admira-se do meu lado o motorista. - Costumam vir mais.

- Se costumam! - exclama, do meu outro lado, um homem de Estiramantens. - Quinta-feira passada esteve aí um porradão dessa gente inglesa.

- Está a reparar nos cesteiros? - pergunta-me o motorista. - Depois de acabarem, começa a dança.

- A mim já me chateia aquilo - protesta o homem de Estiramantens. - Vim pelo baile. Que graça terá ver fazer cestos?

Sentados em bancos, no lado da sombra da eira, dois velhos camponeses e uma camponesa velha trabalham para ingleses verem. Um dos velhos corta canas verdes, o outro entrelaça-as, construindo um cesto. A velha, de um feixe de palma, vai abrindo uma alcofa. Cuidadosamente, como que a seguirem de perto uma operação ao cérebro, os ingleses observam o trabalho dos cesteiros com admiração. As duas raparigas, guias da excursão, andam em volta a dar-lhes explicações.

No fim, «a gente inglesa» bate palmas. Os três velhos, bem ensinados, agradecem, curvando-se, como num número de circo.

As moças e os moços de Moncarapacho distribuem copinhos de aguardente de figo, figos e nozes. Depois, os barris e a fruta passam de mão em mão.

Os ingleses provam conscienciosamente, tomando o gosto a gole lento. As inglesas, essas, ao primeiro copinho, abanam a cabeça e riem, de olhos fechados. Depois do segundo copo embalam de beber como se aquilo fosse água.

Já ao som do harmónio, o rancho de Moncarapacho revolteia pela eira um corridinho algarvio. Elas, de chapéu de homem a prender os lenços caídos para as costas, vestem blusas brancas, saia roxa, azul ou amarela, meias bordadas e calçam botinas pretas. Eles, de fato preto e laço vermelho ao pescoço.

Findo o corridinho, vêm outras danças.

- Não descrevas as danças. Basta as cores. As danças já nós as conhecemos. Vêem na televisão. Quanto às cores, a televisão não as tem. Um dia terá. Mas, deixa o baile. Já vão sendo horas para a camioneta de Olhão.

Da eira, olho mais uma ver para o arvoredo que se estende, serra abaixo, até à planície. Ao longe, avista-se com nitidez a orla da areia e o mar.

Chamo o motorista. Deixamos «a gente inglesa» a beber aguardente de figo e a dançar na eira com as raparigas e os rapazes de Moncarapacho, e voltamos para Alfandangas.

 

«Ler jornais? Só a Bíblia, o resto é palha!»
A chegada dos sinais.
O que se vê à nossa volta.
O fim do mundo evitado pela camioneta para Olhão

Chegado a Alfandangas, pago o táxi, que segue para a Fuzeta, e entro no café.

Enquanto aguardo a camioneta que me há-de levar a Olhão, pergunto ao sujeito que estava atrás do balcão se não há nenhum jornal do dia. Nem tenho tempo de completar o pedido, que era uma cerveja fresca, que me estava a fazer jeito.

- O senhor ainda lê jornais? - indaga com aspereza, o homem de rosto severo, olhos ardentes, negros e enormes, atrás dos óculos redondos. - Lê?

Surpreendido pelo inesperado tom agressivo, observo-o com atenção. Cinquenta, sessenta anos?

- Ainda precisa de ler os jornais para descobrir o que se passa? - insiste ele, severamente e quase aos gritos. - Não lhe basta olhar à sua volta?

Sorri torvamente. Ou ensaia apenas uma contracção muscular, espécie de sorriso de dentes compridos e de beiços repuxados de desdém e compaixão pela minha ingenuidade.

- Só há uma leitura: a Bíblia. O resto, é palha!...

O ar agreste e os modo; duros já eu tinha notado quando, vindo de Tavira, entrei aqui a pedir que me guardasse a mala enquanto ia à Fuzeta. Mas não esperava o ímpeto de violência concentrada que se desprendia dele.

Olho-o com interesse. Vejo-o sair do balcão, colocar a mala, no chão, a meu lado, erguer o tronco. Alto, muito direito, ao olhar para o lado, os ombros acompanham o mover da cabeça. Súbito, dobra-se sobre a mesa no jeito de quem me vai segredar qualquer coisa. Mas, em voz alta e profunda, de braço erguido, dedo apontado para o tecto do café, exclama:

- Os sinais são chegados!

Aguarda que eu me recomponha e compenetre da grandeza da informação e prossegue em tom eloquente, trágico:

- Que vê à sua volta? Pelos céus, aviões, astronaves, discos voadores. Na terra, motos, automóveis, comboios. E guerras por toda a parte. Por toda a parte atentados. Epidemias. Terramotos. Roubos. Prepotência. Ganância. Insensatez. Loucura. Luxo. Concupiscência. Miséria. Prostituição. Sensualidade. Pais com filhas, irmãos, com irmãs e etc.!... Precisa de mais para saber que os tempos anunciados chegaram? Se até as estações já deram o sinal!... Invernos de calores de Verão, Outonos como Primaveras e Verões com friezas de Invernos. Leia, senhor: Leia a Bíblia! Está lá tudo isto. Tudo. E o aviso: quando chegarem estes tempos, o mundo acabará!

Oiço, lá fora, a buzina da camioneta. Levanto-me.

- E sabe como o mundo vai acabar? - pergunta-me o homem, de braços erguidos, olhos a fuzilarem. - Vou dizer-lhe!

Pego na mala, deito a correr. Foi à justa! Sento-me no primeiro banco vazio. É a última camioneta para Olhão. E tenho pena, pois não cheguei a saber como vai acabar o mundo.

 

Retirado de

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Manuel da Fonseca - Crónicas Algarvias - Editorial Caminho, 3ª ed., Lisboa, 2000, p.91-106.

 

O que eles escrevem:
. Raul Brandão
. Jacob Job
. Zeca Afonso
. Aquilino Ribeiro
. Manuel da Fonseca - Olhão