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O Abismo dos encantados [ou a Lenda de Marim]
A Quinta de Marim, propriedade importante, pertencente ao Ex.º Sr. João Lúcio Pereira, de Olhão, é hoje [em 1890] regada por abundante veio de água que a fertiliza em toda a sua extensão. Em tempos remotos os terrenos desta quinta eram de uma esterilidade pasmosa pois que ali se não encontrava a mais pequena fonte.
Em tempo dos árabes nesta província, era dono daquela propriedade um rico mouro, que morava em um prédio acastelado quase no centro. Tinha ele uma filha formosíssima, o encanto do pai, e o enlevo dos jovens ricos de toda a província.
Em muitas ocasiões tentaram os mancebos mais ricos e poderosos conseguir do velho mouro a mão da filha, mas ele, teimoso e cioso, inventava todos os pretextos para se negar a quaisquer propostas desta natureza. Entre outros havia um mouro, jovem e rico de prendas, que não desistia do seu intento. Alem de ser bastante rico, era dotado de excelentes qualidades morais e artísticas: professava em extremo a poesia e era músico habilíssimo. É sabido que nesse tempo Silves era uma das mais importantes sedes, onde se distinguiam nas suas escolas os primeiros poetas sarracenos. Condé, na sua História, menciona muitos poetas e músicos que floresceram, naqueles tempos, entre os mouros. Não era raro ouvir-se, nas belas noites da primavera, defronte das ventanas dos palácios acastelados, onde palpitavam corações femininos, os sons maviosos do alaúde ou da tiorba, acompanhados os belos versos dos mais ricos namorados.
Não via o velho pai da gentil moura com bons olhos os excessos do pretendente à mão de sua filha, e quando à noite ouvia os cantares do mancebo em frente da ventana do quarto da filha, arrepelava-se e enchia-se de desespero. O mesmo não sucedia à moura gentil, que, não duvidava erguer-se da cama, a desoras, abrir mansamente a janela do seu quarto, e colocar-se ali horas esquecidas enquanto seu amado ali permanecia.
Muitas vezes o velho mouro tentou arrancar do coração da filha o amor que ali imperava, mas debalde: a jovem limitava-se a chorar, quando mais furibundas eram as repreensões paternas.
Vendo ele que por força nada conseguia, encetou outro caminho, fingindo-se condoído. Ordenou que o mancebo fosse chamado à sua presença.
— O que me queres? Perguntou o mancebo em presença do velho.
— Sei que amas minha filha...
— Por ela dou a minha vida...
— Livre-me Alá de contrariar as inclinações de duas almas. Mas eu fiz um voto.
— Que voto?...
— Os meus campos são faltados de água... só concederei a mão de minha filha a quem, em uma só noite, transportar para junto do meu castelo a famosa nascente da Fonte do Canal, a levante...
— Fica muito longe?
— A treze léguas.
O mancebo curvou-se em frente do velho e saiu da sua presença sem dar resposta.
O velho raposo, logo que o mancebo saiu da sua presença, esfregou as mãos e disse consigo:
— Deste estou eu livre.
E na noite desse dia deitou-se descansado na certeza de que não seria despertado do seu sono.
Seria meia-noite, acordou o velho a um movimento brusco e repentino do seu castelo. Sentou-se na cama e pôs-se a escutar. Momentos depois chegaram aos seus ouvidos as notas diferidas nas cordas de um alaúde e logo os seguintes versos:
Viva Alá; foi meu padre um bom mouro Moura madre me deu de mamar Moura fada fadou-me um tesouro Moura virgem me tem de o entregar,
Quando o velho ouviu estes versos e conheceu pelo timbre da voz que o impertinente mancebo não desistia de fazer versos a sua filha, ergueu-se da cama num salto e correu à janela do seu quarto. Em frente da janela do quarto de sua filha presenciou um verdadeiro abismo, de onde jorrava água numa imponente catadupa, bastante para regar toda a propriedade. Ao lado do abismo e na beira viu um mancebo com o alaúde. Era o namorado de sua filha com os olhos presos na janela do seu quarto.
Fulo de raiva, mas não ousando violar a palavra dada, correu ao quarto da filha, e dirigiu-se para a ventana, onde lá a encontrou. Então pegou nela em peso e atirou-a pela janela sobre o rapaz, que não podendo conservar o equilíbrio caiu com o precioso fardo no fundo do abismo.
Não morreram, afirma ainda hoje o povo em seus versos de uma famosa antiguidade, porque muitas pessoas os têm visto sair do abismo à meia-noite. Saem sempre com os braços mutuamente cruzados e passeiam pela Quinta, cantando ao som do seu instrumento favorito. Estão ali encantados não porque o velho mouro os encantasse, mas por especial ordem do próprio Alá, que não consentiu que duas almas repletas de amor desaparecessem da face da terra, onde o egoísmo criou um trono.
— E o velho mouro?
— Esse está também encantado, responde o povo, mas no próprio castelo. Só sai dali em noites de tormenta, cantando orgulhoso e soberbo:
Eu sou o rei D. Diniz Serpa, Moura, Mervim fiz Não fiz mais porque não quis. Quem dinheiro tiver Fará o que quiser.
E o povo continua a amar os dois namorados odiando de morte o temeroso velho.
D’Athaide Oliveira, Francisco Xavier – As Mouras Encantadas e os encantamentos no Algarve com algumas notas elucidativas – Tavira: Typographia Burocrática, 1898, p. 157-160.
Outras lendas, outros mitos: |
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