Antero Nobre

Antigo Escoteiro-Chefe e Secretário Geral da
Associação dos Escoteiros de Portugal

Dirigente da Fraternal dos Antigos Escoteiros

 

Escoteiro um dia, escoteiro toda a vida!

 

 

 

 

 

1952

Olhão

Ao Escoteiro-Chefe Professor Júlio Santos e a todos os antigos escoteiros do Grupo nº 13 da A.E.P.

Aos meus filhos Antero e Aníbal António, escoteiros do Grupo nº 6 da A.E.P.

Aliança Gráfica do Sul, Limitada - Olhão

 

 

 

 

As palavras que se seguem foram pronunciadas, a convite amável do Grupo n.° 99 (Lisboa) de Escoteiros de Portugal, na festa com que, em 1950, comemorou o seu aniversário e marcam o meu regresso, depois de doze anos de ausência, forçada pelas contingências da vida, ao contacto com escoteiros e às lides escotistas, agora como dirigente da Fraternal dos Antigos Escoteiros.

Publicadas logo a seguir pelo jornal «Sempre Pronto», a insistências do seu director se reeditam agora no folheto que vamos depor nas mãos do benévolo leitor, sem outro intuito que não seja o de tentar mostrar-lhe, se não foi escoteiro, as fortes e magníficas raízes que o «espírito escotista» deixa na alma dos que algum dia o viveram e de avivar-lhe no coração, se porventura teve a honra de fazer a «Promessa», os sentimentos que ela certamente aí fez desabrochar.

Mas ao decidir lançar este folheto na aventura da publicidade, não resisto a escrever no seu pórtico alguns nomes, que traduzem uma evocação e uma esperança: os nomes do chefe e dos outros escoteiros do Grupo n.º 13 (Sociedade de Geografia de Lisboa) com quem verdadeiramente aprendi a ser escoteiro; os nomes dos meus dois filhos que são os primeiros a ingressar na grande Família e que, precisamente no dia em que escrevo estas linhas, realizam a sua «Promessa» no Grupo n.º 6, exactamente aquele em que tomei o primeiro contacto com o Escotismo, já lá vão mais de vinte e cinco anos. E evocando assim os que me transmitiram «o espírito escotista» e esperando que os meus filhos o saibam manter sempre bem vivo na sua alma, faço o voto de que o Movimento se continue cada vez mais belo, pelos filhos de todos os antigos escoteiros, a bem de Portugal!

Olhão, 1 de Dezembro de 1951 A. N.

 

 


 

  

Chefes e Escoteiros;

Minhas Senhoras e Meus Senhores:

Em boa verdade, o que me trouxe esta noite aqui não foi apenas o amável convite do Grupo n.º 94, embora ele me tenha desvanecido sobremaneira. O que fundamentalmente me arrastou para esta simpática festa, corno o que me fez voltar às lides escotistas, depois de mais de doze anos de ausência do simples convívio com escoteiros, - foi um sentimento que me tumultua no coração, mas que dificilmente consigo definir.

A saudade?

A gratidão?

Talvez sejam, sim; mas as duas juntas: a saudade do que fui e jamais poderei voltar a ser; a gratidão pelo que hoje sou e espero, com a ajuda de Deus, continuar a ser até ao fim da vida. Porque uma coisa é certa para mim: o melhor tempo da minha infância e adolescência foi o de escoteiro; e ao que fui como escoteiro devo tudo o que hoje sou como homem, como cidadão e até, de certo modo, profissionalmente! Sim, deve ser isso o que aqui me trouxe esta noite: saudade e gratidão. Porque são elas também, em conjunto, as mais fundas e as mais sólidas raízes da Fraternal dos Antigos Escoteiros; e, afinal, é apenas na qualidade de antigo escoteiro e membro e dirigente eleito da Fraternal, que eu aqui posso estar agora.

 

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«Escoteiro um dia, escoteiro toda a vida»; ou, por outras palavras, como quiseram os organizadores da nossa Fraternal: «Uma vez escoteiro, sempre escoteiro»!

Para os menos iniciados na hermenêutica escotista, para aqueles que apenas vêem no Escotismo um conjunto de actividades mais ou menos educativas, tendo por base o campismo, esta divisa não será compreensível. É que esses, presos ao formalismo das actividades, apegados, às exteriorizações da vida dos escoteiros ou só conhecendo os programas e os métodos, mas ignorando o espírito, não podem compreender que «ser escoteiro é, essencialmente, uma atitude perante a vida»; e que, assim, pode-se continuar a ser escoteiro, e dos melhores, mesmo depois de se despir definitivamente o calção curto e a camisa de caqui, depois de se deixar de fazer campismo, aprender ou ensinar as provas de classe, frequentar um grupo ou uma associação, desfazer diariamente o nó do lenço ou usar a Flor-de-lis. A Flor-de-lis no chapéu ou na lapela é, mesmo escotistamente e até social e nacionalmente, o que menos interessa (quantos a usam e nunca foram, nem serão, apesar disso, verdadeiros escoteiros!); o que importa é trazê-la gravada na alma e tê-la presente no coração em todos os actos da vida.

Nas velhas cartas geográficas, a Flor-de-lis indicava o Norte: - um rumo, uma direcção, um caminho a seguir para se não perderem nos caminhos do Oceano, uma orientação para os que andavam sobre as águas do mar poderem atingir sem desvios o seu destino; nos emblemas dos escoteiros indica também um rumo, um caminho a seguir, mas nos domínios do espírito traduz uma orientação espiritual com vista a alcançar-se o verdadeiro destino do homem na vida e mesmo para além dela; significa uma atitude perante a vida e até perante a morte! É, no fim de contas, o espírito escotista, o que ela representa e simboliza!

Mas, o que é o espírito escotista?

Deduzir aqui a sua definição pela interpretação das obras do Fundador, seria longo até, de certo modo, fastidioso: sobre este tema tem-se escrito milhares ou talvez milhões de páginas, em todas as línguas cultas; com ele se têm preocupado pedagogos sem conta, dos mais ilustres de todas as nacionalidades. Limitemo-nos, pois, a uma síntese, acompanhando na essência aqueles que melhor o fizeram e o demonstraram com os êxitos quotidianos da sua aplicação prática.

O espírito escotista é, em primeiro lugar, um espírito conservador, digamos assim, empregando o termo no seu melhor sentido. O verdadeiro escoteiro, aquele que segue fielmente os ensinamentos e as normas do Fundador, aceita e reconhece tudo o que existe. Deus, a Religião, a Pátria, a Sociedade, a Família, os Mestres e os Chefes existem: não se discutem, portanto! Para actuar, para agir, o escoteiro não precisa, consequentemente, de modificar os quadros sociais: conserva-se no seu lugar e na sua classe, nem descontente, nem revoltado. Isso, todavia, não o impede de sonhar com o progresso, quer moral e social, quer material – o próprio Movimento Escotista, aliás, procura aperfeiçoar-se continuamente! -; mas não deseja nem quer que esse progresso tenha como condição basilar a destruição pura e simples de tudo o que existe! Como para Sévin, é para mim ainda hoje um enigma psicológico a forma de certas pessoas, que se dizem escoteiros, conciliarem determinadas teorias políticas e sociais e o seu ateísmo ou simples indiferença religiosa, por exemplo com a lealdade à Pátria e às instituições, aos chefes e aos patrões, e a fidelidade à Família e a Deus, impostas pela Lei e pela Promessa! . . .

(. . . pela Lei e pela Promessa, tal como o Fundador as criou e não como, em alguns países, muitos que se dizem seus discípulos as deturparam intencionalmente!. . . .)

A lealdade e a fidelidade! Sim: a segunda característica fundamental do espírito escotista é, exactamente a lealdade. O verdadeiro escoteiro é fiel a todas as leis, a todas as normas, a todas as regras morais ou sociais, em que vê sempre muito justamente o seu dever; e um dever que se cumpre sem olhar a pessoas nem aos inconvenientes que dele possam resultar; um dever que se cumpre, mesmo que tenha de se fazer sacrifícios.

Fazer sacrifícios, sim! Mas fazê-los alegremente, pois outra característica dominante do espírito escotista é a alegria, o optimismo. O escoteiro é alegre, encara as dificuldades e o: sacrifícios a sorrir, a alma em festa: e com uma canção nos lábios, vence umas e realiza os outros. O escoteiro é alegre, mas não egoísta: espalha a sua alegria, contagiando-a aos outros, como um bálsamo para as agruras e dificuldades da vida de todos os dias; e é isto que faz da sua vida um autêntico apostolado, inconsciente por vezes, mas sempre frutuoso, da alegria de viver e da saúde moral, - filhas da pureza de alma e da saúde física, que o escoteiro cultiva no mais alto grau.

Mas o espírito escotista é ainda, e sobretudo, um espírito de dedicação, de devotamento: «não se é escoteiro por si próprio, mas pelos outros; não estamos aqui para nos servirmos, mas para servir», escreveu algures um dos mais fiéis discípulos do Fundador. A «Boa Acção» quotidiana é o primeiro dever do escoteiro; auxiliar o próximo a sua mais absorvente e mais bela missão na Terra! «Podem precisar de mim!», - é o princípio e o motivo fundamental que leva o escoteiro a estar «Sempre Pronto», física, moral e intelectualmente, para tudo, até para arriscar a vida em auxílio dos outros; a, estar pronto para arriscar a vida, e a arriscá-la de facto sem hesitar, quando para isso encontre oportunidade, porque fá-lo sempre por uma simples e natural imposição do dever livremente aceite: em face do perigo, a alma mede o risco que corre, sem dúvida, mas despreza-o conscientemente! E esta concepção heróica da vida traz consigo também uma concepção heróica da morte; a morte é apenas uma das coisas para as quais o escoteiro deve estar «Sempre Pronto»: é «a grande prova escotista, o mais difícil exame a que o homem pode ser submetido, mas que é preciso passar igualmente com honra!», como disse um dia o Fundador.

Reconhecimento e aceitação incondicional e indiscutível de Deus, da Religião, da Pátria, da Família, das instituições sociais, dos Chefes, seja qual for o seu grau de hierarquia; respeito por tudo o que existe, sem exclusão do veemente desejo e do trabalho devotado pelo progresso moral, social e material; lealdade para com todos e para com tudo, em quaisquer circunstâncias e à custa de que sacrifícios forem; fidelidade às leis morais e sociais, em todas as ocasiões e em todos os lugares, sem olhar às consequências; devoção pelo próximo até ao sacrifício da própria vida, serviço social como primeiro objectivo para toda a actividade humana; pureza de corpo e pureza de alma, optimismo e alegria de viver: - eis o que caracteriza o espírito escotista, eis a atitude do verdadeiro escoteiro perante a vida, eis o estilo de vida do verdadeiro escoteiro!

Por isso, o que é, fundamentalmente, ser escoteiro?

É, para além do uso do uniforme, das provas de classe, do campismo e de todas as restantes actividades pedagógicas, - trazer a Flor-de-lis, como disse, não apenas na lapela ou no chapéu, mas na alma: é viver o espírito que ela representa, é seguir o estilo de vida que ela simboliza!

E, assim, quem foi escoteiro um dia, pode bem sê-lo toda a vida. Se a Promessa foi feita com os requisitos indispensáveis para ficar sendo, na alma do rapaz, aquilo que o Fundador pretendeu que ela fosse, podemos mesmo ir um pouco mais longe e dizer: quem foi escoteiro um dia, não pode deixar de o ser toda a vida!

 

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Por mim, ao fim de doze anos de ausência, voltei; não porque queira ou possa envergar de novo o calção curto e a camisa de caqui, ensinar provas de classe ou levar rapazes para o campo, mas apenas exactamente porque nunca deixei de sentir na alma a marca da Flor-de-lis, que a Promessa, há mais de vinte e cinco anos, nela gravou indelevelmente. Essa marca me fez acorrer ao toque de reunir dos antigos escoteiros, que, avivando talvez a minha saudade, avolumou por certo a minha gratidão por este Movimento, ao qual, repito, devo tudo o que hoje sou espiritualmente.

E já que voltei, deixem-me fazer desta minha primeira convivência com escoteiros, depois do meu regresso, um acto simbólico, que represente alguma coisa - pelo menos um incitamento - para aqueles que vão agora iniciar a sua carreira escotista; deixem que eu, na presença, dos novos aspirantes do Grupo 94, antes deles fazerem a sua Promessa, ratifique a minha, na fórmula regulamentar da Fraternal dos Antigos Escoteiros:

- Prometo por Deus e pela minha honra que procurarei, em todos os actos da minha vida, continuar a ser fiel à Promessa e à Lei do Escoteiro.