Doc. 38

 

 

[Edital de Junot justificando o desarmamento

dos soldados espanhóis e prometendo a defesa do país][1]

 

O Governador de Paris, primeiro Ajudante e Campo de Sua Majestade o Imperador e Rei, General em Chefe.

Portugueses,

Depois de seis meses de tranquilidade, vos encontravas expostos a ver perturbada a paz do reino pela efervescência, sempre crescente, das tropas espanholas, que não entraram no vosso país senão para o desmembrar. Quando eu declarei, no primeiro de Fevereiro, em nome do Imperador, que tomaria possessão do governo de Portugal inteiro, os espanhóis começaram a estar descontentes comigo. Os acontecimentos de Espanha, a insurreição de algumas províncias, convidaram diferentes corpos de tropas espanholas a desertarem. Desde então começaram as provocações e as vias de facto com os meus soldados[2].

Contando com o bom espírito dos habitantes do Porto, não deixei nessa província mais que alguns espanhóis, e enviei para aí comandar um general de divisão e alguns oficiais destinados ao serviço das praças. Esse general, o corregedor mor, um coronel de artilharia e alguns outros oficiais civis e militares, foram aprisionados por Ballesta. Este general infame permitiu que seus soldados lhes insultassem. Ele partiu de Portugal com as tropas que lhe tinham sido confiadas para defender esse país, e não voltará a entrar[3].

O mesmo espírito que dirigiu o movimento do Porto foi comunicado às tropas espanholas acantonadas em Lisboa, Setúbal e arredores. A tranquilidade ia ser perturbada, eu via-me reduzido a defender-me contra as tropas que faziam parte do meu exército; então, desarmei-os. Que os espanhóis estabelecidos em Portugal não temam as represálias dos horrores cometidos em Badajoz, Ciudad Rodrigo, contra alguns desafortunados franceses lá estabelecidos há cinquenta anos.

Portugueses, eu estou satisfeito do vosso bom espírito; [soubestes apreciar o bem que vos há de resultar da protecção de Napoleão o grande][4]: continuem a ter confiança em mim. Eu vos dou a minha palavra de preservar o vosso país de toda a invasão e de todo o desmembramento. Se os ingleses vierem, nós vos defenderemos. Alguns dos vossos batalhões de milícias e dos regimentos que restem em Portugal farão parte do meu exército para defender as vossas fronteiras; eles se instruirão na arte da guerra, e se sou assaz felizardo para poder pôr em prática as lições que recebi de Napoleão, eu vos ensinarei a vencer[5].

Dado no palácio do Quartel-General em Lisboa, 11 de Junho de 1808

Junot

 

 

 

 

Exército de Portugal

Ordem do Dia

 

A conduta infame do General espanhol Ballesta no Porto, o roubo das peças do General de Divisão Quesnel, do senhor Taboureau, Auditor do Conselho de Estado, do Coronel de Artilharia Picoteau e de outros indivíduos militares ou civis, assim como de um Destacamento de Dragões; a revolta do Regimento dos Caçadores de Valença e a do Regimento de Múrcia; a detenção, enfim, de muitos dos meus Oficiais em Ciudad Rodrigo e Badajoz, e a impossibilidade em que se viam os senhores Oficiais espanhóis de conter os seus Regimentos:

Todas estas razoes me determinaram abraçar o severo partido de desarmar os Regimentos Espanhóis que ainda estavam debaixo das minhas ordem.

Felizmente se conseguiu fazer este desarmamento sem que se derramasse sangue: nós não somos inimigos dos Soldados espanhóis que nós temos desarmado; e o meu coração repugnava a uma medida, que só tinha feito executar, obrigado da necessidade, para nossa própria segurança. Os Oficiais espanhóis conservarão suas armas: Eu determinei que as Bandeiras fossem entregues aos seus Batalhões. Ser-lhes-ão pagos os soldos; fornecer-lhes-ão víveres, como até agora; sua actual posição em nada mudará minhas boas disposições a seu respeito.

Soldados, eu estou satisfeito da maneira com que vos tendes conduzido: eu tenho visto com prazer o vosso sossego, e a vossa tranquilidade: se os Ingleses querem agora atacar-nos, nós estamos sós para recebê-los.

VIVA O IMPERADOR Napoleão!

Dado no Palácio do Quartel-General de Lisboa, 11 de Junho de 1808

 

Assinado: O DUQUE DE ABRANTES [Junot]

 


 

[1]       In Foy, Histoire de la guerre de la péninsule sous Napoléon – Tome IV, Paris, Baudouin Frères Editeurs, 1827, pp. 367-370 [tradução do original francês].

         Alberto Iria, em A Invasão de Junot no Algarve (Doc. 38), introduziu somente a segunda parte deste mesmo documento (uma “ordem do dia” dirigida ao “Exército de Portugal”, isto é, a Armée de Portugal, nome que entretanto tinha adoptado o Corpo de Observação da Gironda, comandado pelo General em Chefe Junot), que imediatamente a seguir se reproduz. Igualmente tinha publicado essa mesma segunda parte Simão José da Luz Soriano (na sua História da Guerra Civil e do Estabelecimento do Governo Parlamentar em Portugal. Compreendendo a História Diplomática, Militar e Política deste Reino, desde 1777 até 1834 – Segunda Época - Tomo V – Parte I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1893, pp. 62-63). Este último autor, aliás, não caiu no erro de indicar que essa segunda parte do edital era dirigida aos soldados portugueses…

         Foi este o edital, ou talvez melhor, foi a sua destruição que provocou o estalar da revolta em Olhão, como se verá nas várias versões sobre a restauração do Algarve . O facto de, aparte das duas obras mencionadas, não termos encontrado este documento na bibliografia consultada, pode querer dizer que um pouco por todo o país o edital teve o mesmo fim que em Olhão...

         Já depois de termos escritos estas últimas linhas tivémos acesso ao Diario de Badajoz de 17 de Junho de 1808, que também publicou (pp. 4-7) uma tradução castelhana desta primeira parte do edital de 11 de Junho, adiantando que o original se publicara na Gazeta de Lisboa do próprio 11 de Junho de 1808 (fonte esta que não nos foi possível consultar). O mesmo Diario de Badajoz insere comentários críticos a este documento, que se introduzem (traduzidos e em itálico) nas seguintes notas de rodapé. Devemos referir que somente não inserimos um destes comentários, por ser derivado de uma tradução deturpada (intencionalmente?) do texto original.

[2]       As tropas espanholas entraram em Portugal crendo que iam guarnecer as costas, e em tempo em que havia ainda ingénuos que acreditavam que não podia chegar tão adiante a iniquidade do Imperador dos franceses. Como entraram, como se portaram no país, os seus habitantes são testemunhas: todavia, clamam aos Chefes e ao Exército [espanhol], que os olham mais como irmãos que como vencidos; respeitaram a desgraça, e longe de empobrecer o país, enriqueceram-no e aos seus habitantes com as imensas somas que se desdobraram de Espanha. Já pisavam as tropas francesas o território de Setúbal, quando os seus virtuosos moradores ansiavam por por trazerem à sua casa os poucos espanhóis que tinham ficado, para libertarem-se de terem nos seus lares os franceses. Que diferente é esta conduta, da que lhes quer atribuir o General francês!

         Os distritos que em Espanha não querem sofrer o jugo francês são, somente, os quatro reinos da Andaluzia, os de Navarra e Galiza, Astúrias e as Províncias Vascongadas, as duas Castelas, Múrcia, Valência, Catalunha e Aragão. Só está por eles em toda a Espanha o solo que pisam as suas tropas. Não há sítio em toda a Península em que não se maldiga o nome de Napoleão.

[3]       A imprudência e a charlatanice de todo este parágrafo são tão visíveis, que a nossa formalidade desdenha ocupar-se em refutá-lo. Honrado Ballesta, as imputações de pessoas tão desacreditadas não mancham nem a tua honra nem a dos teus leais soldados. A Pátria chamou-te: e se havia algum vínculo que te ligasse aos pérfidos, que enquanto nos necessitaram se diziam nossos caros aliados, a voz da Pátria o desfez. Voltarás a Portugal mas será com o heróico fim de romper as cadeias dos teus companheiros e a dos nossos amados irmãos, os portugueses. Só a imoralidade pode acusar de pérfida a determinação de te retirares com as tuas tropas para a Espanha; se a debilidade do nosso antigo Governo permitiu empregá-las em destruir os seus próprios filhos, a fortaleza da Nação vos chama ao cumprimento das suas obrigações, como bons cidadãos. Quem se resistirá a esta voz e a uma causa tão justa? A Espanha apela ao testemunho de todos os franceses e a todos os homens de bem do mundo inteiro: se o egoísmo e as falsas máximas chegam a tal ponto que a deixam só na palestra, ela só resistirá até ao último extremo, e cheia de desfiladeiros e gargantas, em muitos pontos se repetirão os exemplos de Leonidas, e dos seus 300 Lacedemonios. Militares de toda a Europa, homens justos do Universo, julgai a acção de Ballesta; nós ficaremos satisfeitos com o vosso juízo. Entretanto, a Pátria o espera para coroá-lo de louros, para colocar o seu nombre entre os venerados dos nossos avós.

[4]       O texto que vai entre parêntesis rectos deriva da tradução publicada no citado Diario de Badajoz, pois o original publicado pelo General Foy introduz três pontos no seu lugar.

[5]       Portugueses! A vós mesmos cabe responder ao que se chama de vosso General. Ele, que vos privou dos vossos reis, entrando em Portugal como amigo; ele que vos desarmou; ele que exigiu a prata dos vossos templos; ele que desolou os vossos campos; ele que vos fez sofrer mil opróbrios e vexações, implora agora o vosso auxílio e pretende que vós mesmos sustenhais as suas usurpações e lhe livreis do castigo que o ameaça, e que merecem tão abomináveis delitos.

Transcrição e anotações de Edgar Cavaco