DOC. 3
Relação da feliz e Gloriosa restauração do Reino do Algarve
[de Sebastião Duarte Andrade Pinto Negrão]
No dia 16 [sic] de Junho de 1808, em que a Nossa Santa Igreja celebrou a festa do Corpo de Deus, mandando o pérfido e abominável Governo francês afixar no lugar de Olhão, distante de Faro uma légua, uma ordem em que os oprimidos portugueses eram convidados a tomar armas contra os nossos vizinhos espanhóis, o Governador de Vila Real de Santo António, o Coronel José Lopes de Sousa, não menos Vassalo fiel que Militar brioso, e que muito sofria a nossa escravidão, achando-se no dito lugar, arrancou o edital, e rompendo o involuntário silêncio, exclamou para uns poucos homens marítimos, única gente que habita aquela estância, com vozes e gestos os mais expressivos: “Ah portugueses, já não merecemos este nome, e nada somos já!”, a que os próprios homens gritando com voz unânime responderam: “Somos ainda portugueses, e estamos prontos a dar a vida pela Religião, pelo Príncipe e pela Pátria”. O coronel recolheu à Igreja; e aqueles poucos homens facilmente atraíram a si o restante da povoação, que tanto amou sempre a Augusta Família Real de Portugal; e entrando tumultuosamente pela Igreja, tiraram o Coronel, a quem elegeram seu chefe, e foram atacar, debaixo do seu comando, os franceses que alcançaram no lugar, procurando logo pôr-se no estado de defesa que puderam, segundo as suas circunstâncias, indo depois tirar da fortaleza da Armona, sita na costa, a artilharia que lá se achava.
No dia 18, os franceses existentes na cidade de Faro, granadeiros e caçadores, caminharam a fazer conter aquela revolução; e tentando investir Olhão, foram rechaçados com perda de vinte e cinco homens, deixando no campo dezasseis mortos, suas mochilas, um obus mal encravado, com todas as munições, e pólvora espalhada pela terra.
Aqueles pérfidos e cobardes, talvez acompanhados de quem só devera acometê-los (e que não é lícito nomear antes de provados seus crimes com testemunhos autênticos em Juízo competente), mataram duas crianças, que apascentavam um pouco de gado; um velho de mais de cem anos, a quem por isso chamavam o Pai Avô; como também uma mulher já muito velha, e sua família; feriram mortalmente dois homens, mas que felizmente se restabeleceram.
Ficou dispersa pelo campo aquela porção de franceses, esperando da cidade de Tavira novos reforços, que de facto lhe vieram no dia 19, e pedindo o general Maurin, que governava todo o Algarve, e residia em Faro, que do Regimento de Artilharia n.º 2, que ali se achava, se destacassem artilheiros para ajudarem a rebater aquela valorosa porção de honrados e nobres mareantes; o povo de Faro, tocando a rebate pelas duas horas da tarde, pondo-se à testa dele um paisano, e os militares Sebastião Cabreira, capitão de Artilharia, e seus irmãos Belchior Cabreira e Severo Cabreira, como também Lázaro Landeiro e outros, arvoraram o Estandarte Nacional, defenderam a cidade, transportando para os campos muita artilharia, apoderando-se do paiol da pólvora, aprisionando muitos franceses, soldados, oficiais, e mesmo o general Maurin, que seriam ao todo cento e setenta homens.
Não foi inferior o partido que nisto tomou toda a Nobreza, Clero, e ordens religiosas, a quem o dito Povo no dia 20 convocou, prestando juramento pelas 7 horas da manhã, sobre as peças de artilharia, que defendiam unanimemente, até à última pinga de sangue, a Religião, a Pátria, a Rainha Nossa Senhora, o Príncipe Regente Nosso Senhor, os Sereníssimos Filhos, e toda a Sereníssima Casa de Bragança.
Apareceu logo armado o Corpo do Reverendíssimo Cabido, e todo o Clero com as três Ordens, Franciscanos, Antoninhos, Marianos: continuaram as disposições que requeriam as circunstâncias pela presença do inimigo, que perseguido voltava de Olhão por não poder lá entrar, querendo refugiar-se em Faro; mas sendo repelidos pela nossa artilharia principalmente, refugiaram-se para as montanhas distantes mais de uma légua.
Pelas duas horas da tarde deste mesmo dia, ficando em tumultuosa, mas segura, defesa a cidade, destacando-se tropa a socorrer Olhão, os franceses evacuaram aqueles sítios, e fugindo dispersos pelas serras, reuniram-se em Mértola, aonde havia uma porção deles, que com a tropa do Algarve se destinava a invadir Espanha, cujos movimentos se souberam depois. Mas o paisano, que andava também à testa de uma grande porção de povo, despedindo-se deste, dizendo-lhe: «Amigos, nós não estamos defendidos, enquanto no nosso Reino houver Cidade, Vila ou Aldeia que viva dominada da Tirania Francesa: Eu parto já por todos os Lugares de Poente, e vós ide por mar, em multidão, a Tavira, e seja num momento feita no nosso País a restauração da nossa liberdade, e do governo do nosso Príncipe; façamos nossos deveres».
Marchou logo arrebatadamente o paisano a Loulé, vila considerável, Albufeira, Lagoa, Silves, Vila Nova de Portimão, Alvor, Lagos e outros lugares, fazendo prender todos os franceses ali existentes, e aqueles que os povos notavam de pérfida adesão às perniciosas máximas francesas; e com tal felicidade, que em quarenta e oito horas não havia lugar algum que não tivesse com admirável entusiasmo restaurado a sua liberdade.
Transcrição e anotações de Edgar Cavaco