DOC. 1
Declaração da Revolução principiada no dia 16 de Junho de 1808
no Algarve, e Lugar de Olhão, pelo governador da
Praça de Vila Real de Santo António José Lopes de Sousa.
Para a Restauração de Portugal
Achando-se o dito governador no mencionado Lugar retirado para convalescer das suas moléstias, no referido dia 16 de Junho, encaminhando-se para a Igreja Matriz do Lugar a ouvir Missa, vendo então que muita gente lia um edital francês que se achava afixado ao lado da porta da Igreja, o qual convocava toda a Nação Portuguesa a tomar armas contra Espanha e Inglaterra, o que vinha a ser por consequência contra o seu mesmo Príncipe Regente, sugerindo na Nação partidos da mais enorme perfídia, não podendo jamais sofrer ao duro jugo da traição dominante dos franceses inimigos do nosso Príncipe Regente, Real Família, Pátria e Religião, se apressa, por entre o povo que o lia, deita mão ao terrível edital, ele o arranca, rasga e pisa aos pés inspirando ao mesmo tempo com enérgicas persuasões, a verdade e Patriotismo, quando logo, felizmente, se vê seguido de um povo fiel, amante do seu Príncipe, da Pátria, da honra própria, e da Nação que promete vingar os agravos feitos à Religião tão escandalosamente profanada por um bando de homens ou monstros corrompidos e abomináveis.
Segue-se a isto o entrarem todos para a Igreja, a ouvirem Missa para impetrar do Omnipotente os socorros que em um tal conflito necessitavam, e saindo depois para o adro da Igreja, e todo o mais povo que correu àquele lugar, todos uniformemente ali mostram iguais sentimentos, gritando ao governador que os dirigisse como seu chefe e restaurador do tirano jugo inimigo, que eles se achavam prontos a combater, clamando ao mesmo tempo com altas vozes, tanto os grandes como os pequenos, “viva o Nosso Príncipe e mais Real Família”, e “Deus dê esforços e saúde ao governador que deve ser o nosso general”.
O governador os sossega e lhes ordena que, embarcados, vão buscar duas peças de campanha de calibre de 6 que estavam assestadas na ilha da Barra da Armona, com suas munições guardadas por Pés de Castelo, e também a pólvora que houvesse no paiol da Fortaleza de S. Lourenço da mesma Barra de Faro, e com este pouco se pôs em defesa, expedindo logo no mesmo dia a um João Gomes Pincho, com ofício do comandante de uma esquadra inglesa que se achava fundeada na costa, em frente do Lugar da Figueirita, em Espanha, requerendo-lhe auxílio de armas e munições, ao que respondendo o referido chefe não ter o pretendido abastecimento que se lhe rogava, como havia já respondido ao Capitão de Milícias de Tavira, Sebastião Martins Mestre, que ainda se achava ali presente a bordo na diligencia de semelhante requisição, o que pretendia de prevenção, a fim de aproveitar a ocasião oportuna contra os inimigos da Pátria.
Então, unido este Capitão com o meu enviado João Gomes Pincho, marcham sem perda de tempo a Ayamonte, e requerem à Junta do governo daquela cidade o pretendido socorro, esta lhe confere logo o de 130 espingardas que conduzem, vindo por esta forma a unir-se este Capitão com o governador em defesa do Lugar de Olhão, onde chega o mais pronto possível, no dia seguinte, 17 à noite, e jamais se separa da acção.
No dia 18 de manhã, constando que o general francês de quartel em Faro tem ordenado reforçar a sua guarnição para o vir [socorrer], e para isso marcham embarcados os franceses da guarnição de Tavira em três caíques, logo o Povo com intrepidez lhe requereu o ataque, o que pôs em execução, comandando esta expedição o referido Capitão Sebastião Martins Mestre com os paisanos embarcados num caíque, atacando subitamente os inimigos, em que apresam os três caíques com os franceses armados, e grande quantidade de bagagens, que eram em número de setenta e sete soldados, e mais três oficiais de patente, e quartel-mestre, todos da Legião do Meio-dia, que conduziu a este Povo.
Seguindo-se poucos instantes depois o virem marchando por terra os que eram da guarnição de Vila Real [de Santo António] para o mesmo referido fim de reunião em Faro, em número de 185 granadeiros da mesma Legião, logo o Povo influído quer marchar, e corre a atacar estes inimigos, apesar da desigualdade em armas e poucas munições. Assim os vai acompanhar o mesmo Capitão, a fim de ordenar este Povo na acção, que foi principiada a meia légua deste Lugar, no sítio da Ponte de Quelfes, e acossam o inimigo, o mais que era de esperar; quando também com uma peça de campanha passa o governador a suster os inimigos que constava virem de Faro, chegando a atacar os seus paisanos, que no fim da tarde são perseguidos, disparando-lhes alguns tiros, e o referido Capitão só recebeu uma grande contusão no peito enquanto inspirava valor e reunião possível numa gente Maruja estranha em tais empresas, mas valorosos, a quem as mesmas mulheres davam o exemplo; e foi constante o inimigo perder alguma gente, cujo número ocultaram, e da nossa parte faleceu um homem velho que os inimigos mataram fora da acção e mais dois rapazes.
Ameaçava o inimigo este Lugar, não só com as suas forças, mas com as portuguesas que estavam ao seu serviço, com que saem de Faro a formar o ataque com peças e obuses de artilharia, sendo oficial português nomeado para comandar a respectiva tropa do seu Regimento, o tenente Belchior Drago Cabreira, o qual logo por palavras próprias de Português, indicou o público agravo, e fez entender que marchava por uma obediência repugnante, e que se chegasse à acção contra os seus patrícios, a que o mandavam, ele tomaria aquele acordo que lhe inspirava a sua honra e patriotismo.
Isto, posto em execução, produz tanta impressão no Povo de Faro, que o seu resultado parece misterioso, pois que lembrando-se um homem marítimo de usar do disfarce de subir à torre [da Igreja] de Nossa Senhora do Carmo para tocar umas badaladas de devoção, que por uso tem de costume dedicarem a Nossa Senhora pelo bom sucesso de alguma mulher em parto, então este homem toca a rebate; levanta-se o povo, e correm sobre o general francês e prendem-no; e a expedição que marchava a atacar Olhão é posta em fuga, dispersando-se o inimigo por toda a parte; ultimamente, todos os portugueses passam a formar união contra o mesmo inimigo, e o povo toma por seu chefe o dito tenente Belchior Drago Cabreira, o que aconteceu no dia 19.
Quando já o governador [José Lopes de Sousa] havia tomado medidas de precaução, a fim de não ficar frustrada a revolução, por ver que as mesmas tropas portuguesas o vinham atacar, quando devia esperar que progressivamente se reforçasse, não só por aquela cidade, mas geralmente por todos os demais bons portugueses interessados na mais justa causa, pelo que ele passa junto com o capitão Sebastião Martins a Ayamonte, conduzindo todos os prisioneiros franceses, que aquela Junta lhe recebe, e lhe reclama novos socorros, armamento e munições, de que tanto necessitava, e esta Junta resolve que o dito Capitão marchasse pela posta, a fazer presente à Suprema Junta de Sevilha quanto lhes convinha, para dela poder receber todos os socorros necessários, enquanto ele, o governador, ficava para obrar com os [socorros] que aquela [Junta] de Ayamonte, subalterna, pudesse subministrar-lhe; porém constou logo ao governador o feliz sucesso de Faro, seguindo o exemplo de Olhão, tendo a satisfação de ver, felizmente, sem outro chefe que os animasse, recobrar a liberdade uns povos depois de outros.
Os inimigos são postos em fuga precipitada, e encaminhando-se dispersados pela serra, evacuam todo o Algarve.
Ficarão não obstante com as armas sempre na mão para obstar à volta do inimigo, e no dia 25 chegou o Capitão Sebastião Martins à cidade de Tavira com oitocentas espingardas, que a Junta Suprema de Sevilha deu para socorro, quando já o inimigo havia evacuado, como fica dito, e por isso entrega as ditas armas ao Exmo. Senhor Conde Monteiro Mór, que se achava já de posse do seu Governo do Algarve, e no dia seguinte volta o mesmo Capitão a Ayamonte com a ordem, que havia obtido da Suprema Junta de Sevilha, para que aquela subalterna de Ayamonte lhe entregasse mais quatrocentas espingardas, e munições, o que tudo trouxe, e entregou nos Armazéns de Tavira, para ficar à ordem do Exmo. senhor Conde Monteiro Mór.
Também neste mesmo dia 26, em que este Capitão se achou em Ayamonte, ali se ajuntou com o Desembargador Corregedor da Cidade de Beja, que estava requerendo àquela Junta havia já dois dias armas e munições para ir acudir à sua cidade, ameaçada de ser atacada pelo inimigo, a quem respondeu a Junta, que lhe conferiam duzentas armas das que o Capitão já tinha em seu poder, porque não havia mais, e que nem tinham tropa que pudessem dispensar para o seu socorro, e assim voltou de Ayamonte este Ministro junto com o Capitão no dia 27 à cidade de Faro, a requerer ao Illmo. Exmo. Senhor Conde de Monteiro Mór, e à Junta já formada naquela cidade, de que S.E. era Presidente, lhes dessem os socorros possíveis para acudir à sua cidade de Beja, e que lhe concedesse o mesmo Governador José Lopes de Sousa, para chefe da expedição acompanhado do Capitão Sebastião Martins, ao que S. Exa. assentiu auxiliando-o com quatro peças de campanha, artilheiros, e alguma tropa de infantaria de Lagos, Tavira, e Vila Nova de Portimão, com que marchou por Mértola até Beja, e deu princípio à formação do Exército do Sul. Este Ministro, como Presidente da Junta formada naquela cidade de Beja, empregou o seu zelo em dar logo princípio a um novo Regimento denominando-o dos Voluntários de Beja, e outro de Cavalaria de Olivença que se achava desfeita.
No dia 10 de Julho a mesma Junta de Beja nomeou ao dito Governador por Marechal de Campo encarregado do comando deste Exército de Quartel em Beja, que também era deputado da mesma Junta, e ao dito Capitão Sebastião Martins, em Tenente Coronel do Regimento de Infantaria de Voluntários de Beja, e seu Ajudante de Campo, em consideração aos serviços feitos. No dia 13 do mesmo Julho foi mandado o Tenente Coronel, ao formar o cordão ao sul do Sádão [concelho de Grândola] com trinta soldados de infantaria, e vinte de cavalaria, ajuntando ali algumas ordenanças de Grândola, e de Santiago do Cácem, que compuseram o número de mil e oitocentos homens, e fez assestar quatro peças de ferro, que achou em Melides [concelho de Grândola] sobre as margens deste rio, no sítio de Montalvo para assegurar a Vila de Alcácer do Sal da invasão do inimigo, concorrendo no dia 26, para que esta Vila formasse a sua Junta de Governo, e proclamasse o PRÍNCIPE REGENTE, nosso Senhor por seu legítimo Soberano.
Seguindo-se depois de tudo o que fica referido, o mais feliz progresso das armas portuguesas até ao sítio da Vila de Almada, sendo o General Chefe deste Exército do Sul o Exmo Senhor Conde Monteiro Mór.
Esta é a mais exacta narração que confirmará ao público o acontecido desde o dia 16 de Junho, em que teve princípio a revolução no Algarve no Lugar de Olhão, não devendo ficar em silêncio o merecimento do Reverendo Prior da Freguesia daquele Lugar, que tanto mostrou o seu Religioso Patriotismo, logo que viu o governador com o seu Povo posto em acção.
É o que se faz saber ao público, a fim de não ficar duvidoso ou equivocado pela narração dada ao público em data de 17 de Setembro do presente ano de 1808.
Dar-se-à conta na continuação desta Relação dos sucessos acontecidos depois do dia 26 de Julho.
Transcrição e anotações de Edgar Cavaco e António Paula Brito de Pina
Link para o texto original digitalizado pela Biblioteca Nacional de Portugal