|
|
OS OLHANENSES A SUL DE BENGUELA
A fama do povo olhanense como povo
navegador passou fronteiras no séc. XVIII. Eram eles que melhor conheciam o
mar, pelas viagens de longo curso que faziam nos seus caíques, palha botes e
lanchas. Sabe-se que realizaram viagens ao Brasil na tarefa de colonizar,
sem contudo deixarem memória desses factos. Agiam por conta própria numa
predisposição natural ao apelo do mar.
As populações do litoral algarvio, desde há milhares de anos, têm sido
tocadas por grandes civilizações oriundas do mediterrâneo, que construíram
os seus impérios comerciais instalando feitorias. Algumas delas
transformaram-se em importantes centros urbanos, como a fenícia Carteia,
hoje Quarteira, ou Portus Anibalis, a actual Alvor ou Portimão, fundada pelo
célebre general cartaginês Aníbal, ou Ossónoba (Faro), cidade romana com
bispado, representada nos Sínodos, cujas actas se encontram depositadas nos
arquivos da Universidade de Salamanca e é mencionada pelos maiores
historiadores romanos, Silb (Silves), no Al-Gharb muçulmano, cidade luz da
cultura árabe, tal como foi Córdova, Granada e Sevilha.
Olhando a história, ela leva-nos a admitir que o gene navegador e comercial
dos fenícios, gregos, cartagineses, romanos e árabes, deixado nas praias
algarvias, possa ter como principal herdeiro o povo de Olhão, que demonstrou
ser o mais capaz de realizar as missões mais arriscadas no mar e adaptar-se
perfeitamente a novas dificuldades surgidas em terra, no contacto com
outros povos, levando até eles o seu capital de experiência como
navegadores, comerciantes e trabalhadores do mar, peritos no manuseio das
artes de pesca e nas formas de conservar o peixe.
Depois da independência do Brasil em 1822, deu-se prioridade ao
desenvolvimento das possessões portuguesas de África. Mais uma vez os
olhanenses responderam com a sua experiência. Em meados do séc. XIX, o
chamado terceiro império, o Império Português de África estava em marcha. O
esforço colonizador tinha-se iniciado. Era necessário povoar esses
territórios e desenvolvê-los para que Portugal recuperasse a força de
Potência Colonizadora de outros tempos.
A partir de 1860 os olhanenses iniciaram uma forte corrente migratória para
a Vila de Moçâmedes, a sul de Benguela, hoje cidade do Namibe na República
de Angola.
Muitos caíques, palha botes e lanchas à vela partiram do porto de Olhão com
destino a Moçâmedes, em viagens arriscadas que duravam mais de 40 dias. As
embarcações eram frágeis cascas de noz reforçadas previamente a cobre,
sujeitas a inspecção e autorização de saída por parte da capitania. Era
necessário dotar aquelas "quengas" (metade de 1 coco, na gíria brasileira)
de toda a segurança possível, pois a mulher olhanense, a companheira de
todas as horas dos seus maridos, fossem elas boas ou más, iam também elas
embarcar com os seus filhos de tenra idade, e partilhar sofrimentos e
perigos, tornando cada viagem num épico-familiar, cujo final ninguém
conseguia prever.
O primeiro caíque referenciado, já em carreiras de cabotagem entre Moçâmedes e Benguela, data de 1855 e chamava-se "Os 2 Amigos". Não há registo da sua entrada na capitania de Moçâmedes e desconhece-se o nome do seu proprietário. Os registos iniciam-se com a entrada da barca D. Ana em 1860 comandada por José Guerreiro de Mendonça. Tem como piloto José Guerreiro Nuno. Levava a bordo Francisco de Sousa Ganho e esposa Maria Catarina Peixe, Francisco de Sousa Ganho, filho de ambos com 9 anos, António de Sousa Ganho, irmão do primeiro e José Carne Viva, levando a 1ª. canoa de pesca do alto. São considerados como a primeira leva da corrente migratória que se gerou a partir de Olhão para a então Vila de Moçâmedes.
A segunda leva foi composta por José Rolão e dois filhos João da Cruz Rolão e Francisco da Cruz, Manuel Tomé do O, Domingos Galambas e José Mendonça Pretinho. Ignora-se qual o barco que os transportou.
Na terceira leva, levada pelo vapor "D. António" em carreira regular para África, segue a primeira rede de pesca. Um dos emigrantes, João da Rosa Machado é considerado o primeiro que se estabeleceu na Baía dos Tigres. Chegaram em Julho de 1861.
O primeiro caíque registado na capitania de Moçâmedes foi o Flor de Maio com chegada em Janeiro de 1863. Tinha como tripulação o mestre Bernardino do Nascimento, vulgo o Brancanes, o piloto Pedro José dos Reis, Francisco Ferreira Nunes, Manuel Ramos de Jesus Peleira e um menor de nome Baptista.
Nesse mesmo ano começam a chegar olhanenses a Porto Alexandre, hoje cidade de Tômbua, a 100 kms a sul de Moçâmedes. A corrente migratória continuou por muitos anos, quer em barcos à vela quer em vapores. Em 1894 há nos Tigres 7 casais olhanenses e em Porto Alexandre 200 pescadores algarvios, na sua maioria olhanenses. O porto de chegada era o Bairro Torre do Tombo, a 1 km. da vila de Moçâmedes. Dali irradiavam para todo o distrito onde existisse uma praia: Porto Alexandre, Baía dos Tigres, Baba, Chapéu Armado, Lucira, Mocuio, Baía das Pipas, Praia do Catara, S. Nicolau, Porto Pinda, Praia do César, etc.; algumas delas sem água potável, que eram logo abandonadas até se organizarem carreiras regulares de abastecimento, quer de água potável, quer de pão fresco. Os dias de chegada desses abastecimentos eram chamados, "os dias do pão fresco", e podemos imaginar quão especiais eram esses dias para aquelas gentes, em locais isolados como Porto Alexandre e Baía dos Tigres, quase na Foz do Cunene, cujo clima era ainda mais agreste, com as célebres garrôas, o vento do deserto, a levantar a areia das dunas que picava a pele como alfinetes, dificultava a respiração e fustigava dias a fio as casas de madeira, abrindo frestas, por onde as areias entravam e se depositavam nos móveis e nas camas. Era, na verdade desesperante o desterro daquelas famílias na Baía dos Tigres.
Em Porto Alexandre a vida tornou-se mais fácil, quando plantaram fiadas de casuarinas que aparavam os ventos do deserto e evitavam o avanço das dunas.
Porto Alexandre, hoje Tômbua tornou-se numa cidade industrializada dos derivados do peixe. Chegou a ser nos anos 1960 um dos maiores centros piscatórios da África Ocidental, com dezenas de fábricas de farinhas e óleos de peixe, e grande centro conserveiro.
A Baía dos Tigres só teve água potável nos anos 1950, levada do Rio Cunene, 60 Kms. de condutas. Nunca passou duma aldeia de pescadores com uns 500 habitantes, entre brancos e pretos, devido ao isolamento e ao clima agreste. As viagens por terra eram conseguidas por jeeps em baixa mar, aproveitando a areia endurecida e molhada da maré. Nada mais existia para além das dunas altaneiras de areia solta e o mar. Era uma viagem arriscada que alguns aventureiros tentavam, por vezes sem sucesso. A comunicação com a Baía dos Tigres passou a fazer-se por avioneta (correio e passageiros). Acabaram por construir uma igreja, uma escola primária, um hospital, os correios, a casa do chefe do posto e uma rua que era também a pista para a avioneta. As casas eram construídas em cima de pilares, para que as areias levadas pelo vento da garrôa passassem livremente.
A todas aquelas vicissitudes os olhanenses
foram resistindo ao longo do tempo. Os homens, as mulheres, as crianças. A
Baía dos Tigres foi o limite das forças, do querer, da resistência humana,
nos seus primeiros tempos. Sobrevivia-se mal e as eventuais ajudas muito
distantes. Não posso deixar de admirar a força da mulher olhanense, o que
ela representou nos primeiros tempos de povoamento, o esforço pioneiro
partilhado, ao lado dos seus maridos e filhos. Era na verdade gente muito
especial. Apetece dizer que os olhanenses desafiaram e venceram o deserto na
Baía dos Tigres, o sítio mais isolado e agreste do deserto do Namibe.
Publicado por Cláudio Frota em 2006, no seu Blogue
"Memórias e
Raízes"