Doc. 86

 

[Carta do Compromisso Marítimo de Olhão ao Príncipe Regente][1]

 

Senhor:

Nós abaixo assinados deste Real Compromisso do Lugar de Olhão vamos fazer patente a Vossa Alteza Real [V.A.R.] que a glória que temos até hoje recebido [a] devemos aos mais valorosos portugueses e [a] todo este povo.

É certo, Real Senhor, que V.A.R., por julgar conveniente e querer sempre amparar os seus fiéis vassalos, olhando para eles com olhos de piedade e ternura, se quis retirar para o Rio de Janeiro, e não querer jamais expô-los a que derramassem o seu sangue, e para isso mesmo V.A.R. instituiu uma Regência, a quem deu toda a autoridade, e nos deixou um Real Decreto de 26 de Novembro do ano passado [1807] em que nos ordenou que tratássemos os franceses como irmãos; o que observámos, aprontando-lhes tudo quanto eles requeriam com a maior prontidão que é possível; em poucos tempos, com falsas promessas, principiaram a iludir todo este Reino, chamando já uma parte dos portugueses para seguirem os seus malévolos partidos, que estes são quem têm sido todo o flagelo da nossa Nação, pois eram quem nos atropelavam por todos os modos, já impondo-nos contribuições avultadas, umas sobre as outras; a tudo estava sujeito este Povo e este Reino; e mais, só deste Real Compromisso fomos obrigados a dar ao General francês do Algarve, para seu prato, a quantia de 88$000 mil réis por mês, a fim de conceder licença para estes pobres mareantes irem pescar, não falando naquilo de que pagavam de vinte por cento, e não se viam mais que violências e opressões. Não era só isto, Real Senhor, a pior e mais enorme traição que eles nos queriam formar, era fazerem um recrutamento desde a idade de quinze anos até quarenta, fosse solteiro ou casado, Frade ou Clérigo, como se viu na lista que tinha vindo ao Corregedor Mor francês; e vindo a nós todos esta tirania, pois logo que V.A.R. se retirou, lançaram decretos que não nos assustaram, pois que eles só vinham defender-nos dos nossos Inimigos e padrastos dos Ingleses; e em breves momentos lançavam outros já ameaçando-nos com a morte, e dizendo que tinham conquistado Portugal, fazendo trinta mil insultos, roubos, pois até os mesmos vasos sagrados, lâmpadas e cruzes roubavam; até mesmo deitando abaixo a Regência que V.A.R. tinha deixado para ser aquela que nos governasse. Depois de todos estes acontecimentos, indo-se afixar um Edital no dito lugar, no dia da Procissão do Corpus Christi, dezasseis do mês de Junho, o Governador de Vila Real [de Santo António], José Lopes de Sousa, que já estava retirado do Governo, e se achava neste Lugar por não querer estar debaixo das ordens do General Junot, o rasgou e logo principiou a dar vivas a V.A.R. e a toda a Família Real, o que correu todo o povo com a mesma alegria e contentamento a ovacionar a nossa bandeira, que até estava proibida, e expressando-se o dito Governador que ele estava pronto para se pôr à testa de todo este povo, o que de repente se efectuou, e se foi dar logo principio a romper o teatro da guerra achando-se sem armas; porém, lembrando-se dos nossos antepassados e que nas nossas veias ainda circulava o valoroso sangue português, por isso se atreveram a ir acometer um corpo de tropas inimigas armadas, e nós os portugueses apenas algumas espingardas que cada um de seus donos tinham, que juntas com quarenta dos soldados de pé de Castelo marcharam todos a atacar os franceses, e vendo o inimigo a intrepidez com que todo este povo os atacava, pois não temiam a morte, se retiraram e principiaram a temer este povo, pois se aprisionaram cinquenta e oito; e como neste Lugar não houvessem prisões com segurança, o dito Governador os mandou conduzir à Espanha e ao mesmo tempo pedir armamento, o que se fez; e retirando-se o inimigo para a Cidade de Faro se conservaram fora da mesma para se reforçarem com artilharia para virem arrasar este Lugar juntos com alguns portugueses que até este tempo estavam em paz com eles; e vendo-nos ameaçados por todos os lados para sermos atacados, tendo-se já passado três dias que nos achávamos nesta deplorável situação sem que cidade, povo ou lugar algum se resolvesse a socorrer-nos, eis que no dia dezanove, pelas três horas da tarde, se revolucionou a cidade de Faro contra os pérfidos inimigos, temendo que nós os fossemos atacar, como bem prova o Edital incluso que nos foi dirigido pela Câmara da mesma cidade, em que nos ameaçava bastante, depois disto chegou uma embaixada em que pedia a paz e sossego, pois que a sua intenção era viverem sempre bem e que não nos ofendiam, foi dado em resposta por este Real Compromisso que não cediam pois que tínhamos muita gente, pólvora e bala par os abraçarmos a todos, e que eles só conheciam a Vossa Alteza Real por seu Monarca, depois desta resposta dada, foi Nossa Senhora da Conceição, defensora do Reino, servida [a] tocar no coração dos habitantes portugueses da cidade de Faro para formarem um corpo, de sorte que o inimigo vendo isto desamparou o campo, e já se acham expulsos deste Reino do Algarve. Real Senhor, tem chegado a tanta miséria este povo que até mesmo foi preciso a este Real Compromisso ir pedir pelas ruas uma esmola para o sustento destes pobres mareantes, que todos estavam pegados em armas, visto que este Real Compromisso se achava já exaurido pelo pagamento que tinha feito antecedentemente à tropa deste Lugar. Brevemente faremos presente a V.A.R. um plano mais circunstanciado. Estes têm sido todos os serviços que este Real Compromisso e povo têm feito a V.A.R. e continuaram a fazer até à final conclusão de ficarem extinguidos e destroçados estes implicáveis inimigos. Deus Guarde a V.A.R. e a toda a Real Família para que tenhamos a glória de ainda irmos beijar as Reais Mãos à Família Real como esperamos.

Olhão, 2 de Julho de 1808

Lourenço da Costa

Francisco da Rocha

José dos Santos

Fernando da Silva

Do Escrivão da Mesa, João da Rosa

 

[1]             Um assim chamado “extracto” desta carta foi publicado no n.º 4 da Gazeta do Rio de Janeiro (de 24 de Setembro de 1808), ou seja, logo após os olhanenses alcançarem o Brasil no caíque Bom Sucesso. Este documento tinha sido composto apenas duas semanas depois dos confrontos, pela pena do olhanensee João da Rosa, escrivão do Compromisso Marítimo nessa época. Foi, sem dúvida, graças a este texto e a outros promenores revelados pelos seus portadores ao príncipe regente, que o lugar de Olhão foi recompensado com a elevação a vila, pelo alvará de 15 de Novembro que adiante se reproduzirá.

Transcrição e anotações de Edgar Cavaco