Doc. 8

 

Proclamação que o general em chefe do exército de Portugal dirigiu aos portugueses

em consequência da sublevação do Algarve e resposta à mesma[1]

 

 

O Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Duque de Abrantes, General em Chefe do Exército de Portugal, acaba de dirigir a Proclamação seguinte aos habitantes de algumas partes das províncias de Entre-Douro e Minho e dos Algarves; os quais, deixando-se levar de conselhos pérfidos, se sublevaram, sem calcular a impossibilidade do bom êxito durável de uma tão desatinada empresa, e sem ver que esta  vã agitação só podia redundar em proveito do inimigo comum, e vir a parar na sua ruína inevitável.

 

Portugueses,

Que delírio é o vosso? Em que abismos de males quereis vós ficar sepultados? Depois de sete meses da mais perfeita tranquilidade, da melhor harmonia, que razão pode fazer-vos correr a pegar em armas, e contra quem? Contra um Exército que deve assegurar a vossa independência, que deve manter a integridade do país; sem o qual, finalmente, cessareis de ser portugueses!

Quem pode induzir-vos assim a trair os vossos próprios interesses? Quereis pois que a antiga Lusitânia não seja mais que uma província da Espanha? Que podeis esperar contra um exército numeroso, valente e aguerrido, diante do qual tereis de ser dispersos, bem como as áreas do deserto ao sopro impetuoso do vento do meio-dia [sul]? Não vedes que aqueles que a isso vos persuadem não buscam o que pode ser do vosso interesse; mas tão somente o que pode satisfazer a sua raiva; e contanto que o Continente fique pertubado, que se lhes dá do sangue que deve correr? Se aportam ao vosso território esses insulares pérfidos [i.e., os ingleses], deixai-me a mim combatê-los: este é o dever do meu exército; o vosso consiste em ficar sossegados nos vossos campos.

Tenho dó do vosso erro; se ele porém continuar, se ficardes surdos à minha voz, tremei, o castigo será terrível.

Podeis vós ainda ter uma memória saudosa de uma Dinastia que vos abandonou, e cujo Governo vos humilhara ao ponto de não figurardes já entre as Nações da Europa?

Que podeis vós desejar? Ser portugueses? Ser independentes? O Grande Napoleão vo-lo prometeu. Vós mesmos lhe haveis pedido com instância um Rei[2] que, ajudado do mui poderoso braço daquele Grande Monarca, pudesse restabelecer a vossa desgraçada pátria, e tornar a pô-la na ordem que se lhe pertencia. A este tempo, por certo, pensa o vosso Monarca em aproximar-se a vós, esperando achar vassalos fiéis. Acaso porém não deverá ele achar mais do que rebeldes? Eu esperava entregar-lhe um Reino pacífico, cidades florescentes; Acaso terei de lhe não mostrar mais que ruínas, montes de cinzas e de cadáveres? Quererá ele reinar num país devastado? Não, por certo. Vós não sereis senão uma desgraçada província da Espanha. Os vossos usos, as vossas leis, tudo se tem mantido. Por ventura não é a vossa Santa Religião a nossa? Tem ela sofrido o menor insulto? Não sois vós, pelo contrário, os que a violais? Vós vos deixais seduzir e levar por hereges que só querem a vossa ruína e a destruição da vossa Religião. Perguntai aos desgraçados católicos de Irlanda qual é a opressão em que gemem na sua pátria pelas ordens do seu próprio governo. Não sois vós, tornamos a dizer, os que a violais, obedecendo a Ministros dessa Santa Religião (cujo primeiro preceito é a obediência e a submissão às Leis), que se atrevem a excitar-vos à matança e ao assassínio contra homens que viviam entre vós, como no meio de seus irmãos? Desgraçados eles! Caro pagarão os males que vos causam.

Mas vós também, infelizes portugueses, sereis as vítimas destes males!

Se ainda há abusos na Administração, a experiência de cada dia os vai diminuindo. O meu Decreto de 14 de Junho já regulou uma parte interessante das Finanças, assegurando aos Militares, de um modo fixo, o seu soldo. Os ordenados dos Administradores e dos Ministros são pagos com regularidade. O Imperador Napoleão, satisfeito pelas contas que lhe tenho dado, do espírito público neste Reino, acaba de perdoar-vos a metade da contribuição; e ao mesmo tempo que ele põe o remate a todos os votos que haveis formado, é que vós vos deixais levar da influência de alguns celerados!

Ao tempo de colher o fruto da vossa tranquilidade, ao tempo de serdes felizes, é que quereis ficar privados até da esperança de o ser!

Eia pois, portugueses, não tendes mais que um instante para implorar a clemência do Imperador para desarmar a sua ira. Os seus exércitos de Espanha vêm chegando-se já para as vossas fronteiras por vários pontos: perdidos ficareis, se hesitardes. Deponde as armas; tornai pacíficos para os vossos lares; imitai a tranquilidade da vossa capital e das províncias que a rodeiam; entregai-vos ao trabalho da vossa agricultura; recolhei essas belas searas que o céu vos envia, depois de tantos receios de uma horrível fome, de que eu soube preservar-vos. Expulsai de entre vós com horror esses miseráveis celerados cujo objecto é só a pilhagem das vossas cidades; tornai-vos dignos de serdes perdoados por uma pronta obediência às minhas ordens; aliás, eis aqui a punição que vos espera:

Toda a cidade ou povoação onde se tiver pegado em armas contra o meu Exército, e cujos habitantes fizerem fogo sobre a tropa francesa, será entregue ao saque, destruída totalmente, e os seus moradores passados ao fio da espada.

Todo o indivíduo colhido de mão armada, será logo espingardeado.

Dado no Palácio do Quartel-General em Lisboa, a 26 de Junho de 1808.

O Duque de Abrantes

 

 

 

 

 

 

Resposta a esta Proclamação[3]

 

Junot!

Não é o teu Exército, nem o desse a que chamas o Grande Napoleão – não são os teus, nem os seus capciosos proclamas – capazes de assustar os valorosos habitantes do Algarve, que, lembrados ainda de haverem ganhado o seu país à custa de suas vidas, lançando fora dele outros mais temíveis, mais guerreiros soldados, a quem nem tu nem os teus jamais igualarão, os Maometanos, digo, resolveram de uma vez mostrar-te que eles são ainda os mesmos, fazendo desaparecer de entre si a infame raça francesa, bem como aconteceu à Mauritânia gente, e aclamando ao mesmo tempo o Príncipe Regente de Portugal, bem como aclamarão o primeiro Afonso.

Tu foras talvez temido, se o teu Exército justamente merecera a grande fama que tu e teus subalternos têm feito voar pelo mundo inteiro: mas o vil procedimento das tropas francesas e os seus estratagemas cavilosos têm desmentido essa fama. Hoje é assaz conhecida por todas as potências beligerantes a cobardia de semelhantes tropas. Portugal, tendo apenas cem soldados ainda bisonhos, não teme com mil versados na guerra.

As tropas francesas não são mais do que um agregado de saqueadores, de pérfidos, de traidores nutridos com o leite desse monstro desgraçado que a mesma natureza arrependida e envergonhada de o haver produzido, ainda que por descuido, degrada da sua origem: um agregado de gente pior, que o Sol cobre.

É contra este Exército que tomamos armas, e contra ti mesmo. Os portugueses deixariam de o ser, se assim não obrassem. Verás tu agora qual é o valor dos nossos braços: sobre ti e o teu exército lá vamos frente a frente os golpes descarregar: será mais esta outra vitória que faça respeitar o Nome Luso de um a outro hemisfério: nós te faremos ver que sabemos conservar a nossa independência, e a integridade do nosso país, que tu julgas perdida sem a tua protecção. Portugal é, e será sempre, a mesma antiga Lusitânia governada pelos seus Príncipes.

Porventura dependemos de ti ou do teu infeliz Amo?

Queres persuadir-nos que, sem a tua tantas vezes apregoada protecção ficaremos sendo uma província da Espanha? Não tem Portugal conservado a sua independência?

Acaso ignoras que não sofre jugo alheio? Não tens exemplos? Que te importa a desgraça que julgas consequente da sujeição espanhola? Porventura te rogámosauxílio? É forte mania! Acaso procedem os espanhóis como os franceses? Acaso têm usurpado alheios Ceptros? Acaso destronizaram o seu Rei para aclamarem um estranho homem, cingindo-lhe essa vacilante fronte com o Diadema Imperial? Não! Estes atentados, odiosos ao Mundo todo, só a França é capaz de sofrer. Se a Espanha disputasse o Direito de Sucessão a Portugal, poderia a França articular preferência?

Alma invejosa e ambiciosa, desengana-te, desengana o teu abatido Napoleão. A Europa saiu do letargo; já não dorme, nem dormirá. Não te canses em persuadir-nos da sua alta protecção, ela está bem conhecida por todos os povos a quem ele a tem prometido! Perfídias, traições, eis aqui a grande proteção! E quais serão as felicidades consequentes!

Diz-nos: Que felicidade trouxeste a Portugal?

Oprimir os povos com pesadas contribuições para resgate dos nossos bens, que não estavam cativos; reduzir à indigência famílias inteiras, tirando-lhes o pão que os seus chefes ganhavam pelos seus empregos públicos; sacrificar a virtude à necessidade; exterminar as nossas melhores tropas; extinguir o resto; desarmar as cidades e povoações com o frívolo e manhoso pretexto de manter a segurança pública, quando só por medo que te resistam deste esse errado passo; pôr finalmente a nação indefesa, pobre, sem comércio, sem erário; é porventura tudo isto alguma sombra de felicidade? Eis aqui os efeitos dessa protecção! Itália, fala tu, diz quais são os benefícios que tens recebido da mão daquele que tudo promete e nada faz; que tudo promete para enganar! Ah! Tu não respondes? A escravidão e o medo te embarga a voz! Não importa: Nós o sabemos, o Mundo o conhece, e tu em tempo o dirás. E sobre estes males intentava o Déspota da Europa dar-nos um Padrasto, escolhido por ele, da sua mesma raça, igual a ele? Com que Direito? Com o da guerra? Não. Com o da conquista? Não: ele mesmo já confessou não ter conquistado este Reino. Logo, com que Direito nos dava um Rei que as nossas Leis fundamentais excluem de governar estes Reinos? Sair o Príncipe para Estados seus será crime? E contra quem o cometeu? Não, não é este facto criminoso: é sim um efeito do seu paternal amor para com os seus fiéis vassalos, cujo sangue quis poupar, salvando igualmente a sua Real Pessoa, contra quem os pérfidos atentavam: ele se entrega às ondas dos vastos mares, e deixa-nos a última prova do seu paternal amor, recomendando-nos a obediência ao poder francês, a fim de evitar a efusão do nosso sangue. Que amor! Que heroísmo!

Ah! Se assim não fizeras, Príncipe Amado, a soberba capital veria o sangue dos seus filhos correr pelas suas ruas, e em caudalosos rios o de todos os franceses; cada um procurando seu diferente leito, porque a honra e a virtude não podem unir-se à insídia e à aleivosia: Lisboa veria tão triste cena; mas o triunfo também veria: Lisboa seria Baiona, mas a presa não sairia.

Se Portugal te pediu um Rei, obrou tão livre nessa rogativa como os Soberanos de Espanha na abdicação de seus Estados a favor de um ambicioso até dos atributos da Divindade. Estranhas que Portugal agora proceda assim, e não te lembras que prometendo tu proteger-nos, ias a fazer-nos desgraçados?

Não dizes tu que te imitem? Pois que outra coisa fazemos? Tal é a tua política!

Recorda, Emissário do Despotismo, a infame traição praticada com a Família Real dos Borbões: vê-te nesse espelho da maior perfídia, e sabe que nenhum Monarca até hoje cometeu acção tão execranda. Não, não; porque o Sangue Régio não produz acções vis. Este sangue não gira nas veias do teu Napoleão! Circula sim um amargoso fel, que a natureza por diferença lhe deu em vez de sangue, compostos dos líquidos mais venenosos de todas as Hidras, de todas as Serpes, cujo leite bebeu na sua desgraçada infância. E vassalos de um tal Rei deveriam entre nós viver? Que valorosas façanhas, que heroísmos têm feito? Acaso é valentia vencer numa batalha, havendo comprado o plano do ataque, e o Ministro da Guerra ou Generais da Coroa, contra quem marchavam? Não, isto não é heroísmo, é vileza. É com estes Soldados que pretendes vencer-nos?

O Egipto, a Rússia, Alemanha e Itália estão semeadas de frios e mirrados esqueletos franceses sacrificados à ambição das ambições. Espanha e Portugal sepultarão o resto. Aqui mesmo desaparecerá de uma vez essa estrela de Napoleão, que tu crês impossível desmaiar no meio de uns poucos facciosos: aqui mesmo amortecerá com todo o corpo esse braço do mais valente dos seus Generais, como te inculcas nos papéis públicos: aqui mesmo será o termo de tantas glórias ganhadas por traições, perfídias e compras. É com estes soldados que pretendes vencer-nos?

Umas Tropas de tanto nome, e tão guerreiras, desampararam as suas armas, fogem, abandonam a sua Águia, quando no dia da Solene Festividade de Corpus Christi, na nossa capital, uma voz se ouve proferindo o Nome Inglês?

Umas Tropas de tanto nome, e tão guerreiras, temem guarnecer uma Bateria na Barra Nova da cidade de Faro, só porque imaginavam ser possível cruzar aqueles mares algum batel inglês?

É com estes soldados que pretendes vencer-nos?

Umas Tropas de tanto nome, e tão guerreiras, são espectadores indiferentes ao combate de dois brigues ingleses com quatro barcas espanholas, na Barreta da mesma cidade, olhando atemorizados, uns fugindo, outros vendo de suas janelas, como praticou o General Maurin, hoje nosso prisioneiro?

E que não acodem aos seus aliados, que foram vítimas? É com estes soldados que pretendes vencer-nos?

Umas Tropas de tanto nome saqueiam os móveis que se lhe davam para alojamento, praticando esta feia e vil acção os seus mesmos Comandantes?

Ah! a antiga França já não existe: esta é hoje a nova França! É com estes soldados que pretendes vencer-nos? Pérfido! São estes os Soldados do bravo Exército da Gironda, do Marengo, de Austerlitz, de Friedland? Envergonha-te! Se são os mesmos, então a perfídia ou a compra venceram as batalhas.

Junot, General por momentos, nós conhecemos a tua triste situação: tu também a conheces: diga-o a carta que dirigias a Napoleão, recomendando-lhe a tua família. E ainda ostentas ameaças?

Onde tens, ou donde te virão essas Tropas para mandares ao saque das nossas cidades, a destruí-las totalmente, e passar ao fio da espada os seus habitantes?

Virão por mar? E que dirá Neptuno a isso? Virão por Espanha? Desgraçadas! Infelizes vítimas!

Não, tu não te podes salvar: tu não tens Soldados: eles te abandonam. Se por algum tempo te seguiram, outro chegou de conhecerem a sua desgraça; de conhecerem, tornamos a dizer, que o homem só deve entrar no estado de guerra para defender a Religião, o Rei e a Pátria. Mas os teus Soldados conhecem que só defendem o capricho de um usurpador de alheias coroas, em que não interessam, porque não são seus irmãos ou parentes. À natureza aborrece o estado de guerra. Ah! Junot, que verdades estas! Afinal recorres às excomunhões e aos anátemas fulminados nessa involuntária pastoral do colégio patriarcal, como que se tu acreditaras esses castigos, ou se Deus punisse quem defende a sua causa.

Cessa de publicar punições; perde, louco, a louca ideia de vir a Portugal esse Eugénio[4]: não exacerbes a nossa cólera; considera o trágico fim das Tropas francesas na Espanha. Esse grande Exército de Dupont, onde está? Que é feito dele? Colunas cortadas, Batalhões assassinados; eis aqui a sua sorte! Saragoça, diz tu, se desses 18 mil franceses que passaste à espada, restou um só? Bravo furor espanhol, conta as tuas vitórias, e continua sempre valoroso, intrépido e honrado. Lembre-te, Junot, o furor português, e persuadir-te-ás com os teus Generais e Soldados que serão todos pequeno pasto para os embravecidos Leões da Lusitânia triunfante, o Algarve. Nós defendemos uma causa justa: tu porém defendes a traição. E como não será assim se tu mesmo nascido em Portugal vieste invadir a tua pátria! Olha a tua pátria; pensa os teus deveres; ouve a pátria que te fala:

 

Traidor parricida! Porque assim maltratas tua mãe? Não distribuí eu igualmente contigo e teus irmãos o mesmo leite, os mesmos costumes, as mesmas inclinações, a mesma honra, a mesma virtude? Porventura ensinei-te a perfídia? Que motivos tens para rasgar as entranhas que te conceberam? Esqueceram-te os deveres sagrados? Ah! Ingrato! Desengana-te. Envergonha-te, entra em tua mesma consciência, lerás nela o teu castigo: sim, o sacrifício a que te expôs Napoleão, entregando-te à raiva portuguesa, faminta de sangue francês.

Estás sacrificado, e pelo teu grande amigo bem protegido: receberás o prémio.

 

A pátria acabou de falar. E que respondes? Nada... Ímpio, se a verdadeira Religião morasse em teu coração, outro serias qual nós somos. Não, nós não violamos a Religião, como tu dizes: este crime só a nova França comete. Lembre-te um Berthier entrando em Roma[5], o qual mandando oferecer ao Santíssimo Padre Pio VI o tope da liberdade e uma certa pensão, recebeu a resposta seguinte:

 

Não conheço mais que um uniforme, que é aquele com que me decorou a Santa Igreja. Podeis, se quiserdes, destruir o meu corpo; a alma não. Eu conheço o açoite que castiga as ovelhas e o pastor, e a vingança Divina pelas culpas de todo o rebanho; louve a tua mão Soberana; não necessito de pensão; um cajado e um alforge bastam para quem deve acabar a vida debaixo da cinza e do cilício: roubai, saqueai e incendiai ao vosso uso: arruinareis os Templos; porém, o Culto durará assim depois, como durou antes de vós-outros, e permanecerá até a consumação dos Séculos – Pio VI.

 

Lembre-te o sacrílego procedimento das tuas Tropas na vila de Mértola há poucos dias. Saiba o Mundo que semelhantes Tropas mancharam os altares sagrados, servindo-se deles como de um cepo para cortarem a carne, e da pia baptismal para salgarem a mesma carne. Não mais, não mais nos arguas.

Essa contribuição perdoada, esse plano de pagar às nossas Tropas, não são bastantes para nos voltarem à obediência das tuas ordens. Nós te agradecemos as belas searas que a Providência nos deu: nós te rendemos graças por nos preservares de uma terrível fome: se tu não foras, certamente não comeríamos.

Graças... mas a quem? A um Deus, que sofre a um mortal tanta ousadia; um mortal, que julga estar em sua mão a prodigiosa produção das nossas searas, e que nos livrou da fome; com que se ele fizera entrar em Portugal alguns víveres para o nosso sustento.

Ah! miserável General! Basta de liberalizar tantas Graças! A contribuição está por nós mesmos perdoada! Os soldos serão pagos, não por tua ordem, pois que o Erário está saqueado, segundo o uso da nova França. Nós te concedemos ainda um momento para te salvares: nisto conhecerás a nossa gratidão. Bem sabes que se nunca tememos Exércitos guerreiros, temeremos uns vis cobardes. Se continuas, pagarás com a vida: no teu sangue e no de teus Soldados, cevaremos a nossa ira, aproveita; não ouças os teus Subalternos, que não duvidam derramar com o teu o seu sangue; aproveita enquanto é tempo, depõe as armas: aliás, eis aqui a punição que te espera:

Capitulação não será recebida. As nossas armas serão depostas sobre gargantas francesas. O sangue de um só português será vingado com o de toda a França.

Em obséquio da Religião, do Príncipe e da Pátria.


 

[1]        Junot, vendo as revoltas populares que desde o início de Junho alastravam do norte ao sul do país, fez afixar esta proclamação no dia 26. Às suas ameaças e promessas respondeu-lhe um padre algarvio, Fr. José do Sacramento Pessoa, cujo texto se publica imediatamente a seguir a este.

         Deve-se somente acrescentar que n’ A Gazeta do Rio de Janeiro de 1 de Outubro de 1808 foi publicado esta mesma proclamação, acompanhada a par e passo por uma análise também bastante crítica (textos originalmente publicados na Minerva Lusitana de 15 de Julho de 1808). Desta última fonte extraímos o primeiro parágrafo do presente texto, visto que se encontra omisso na obra de Alberto Iria.

[2]        Referência à assim chamada deputação portuguesa, junta formada por algumas dezenas de membros da alta nobreza que não tinham embarcado para o Brasil, clérigos e militares, que se dirigiram a Bayonne (França) em Abril de 1808, supostamente para pedir um rei para Portugal.

[3]              Segundo Alberto Iria, antes mesmo do Algarve se revoltar, Frei José do Sacramento Pessoa, padre franciscano de Tavira, compôs e fez divulgar uma outra proclamação de incentivo à restauração, para além de ter sido um dos responsáveis pela ocultaçao e armanezamento, nessa cidade, de cento e setenta armas. No dia 3 de Julho, já com os franceses definitivamente expulsos do Algarve, foi um dos encarregados pelo conde de Castro Marim para a redacçao de uma constituição provisória que procurasse unir os esforços das várias localidades algarvias e dissipar alguns conflitos que então ocorreram, e que poderiam ter desembocado numa guerra civil... Na sequência desta constituição, foi também nomeado vogal da Junta Provisional de Tavira. Frei José do Sacramento Pessoa teria ainda acompanhado o conde de Castro Marim a Lisboa, e quando a capital ficou despojada de franceses, rumou ao Algarve para comunicar à Junta da província a restauração do reino e do governo regente estabelecido pelo príncipe antes de ir para o Brasil.

[4]        O autor refere-se a um filho adoptivo de Napoleão, de nome Eugène, a quem o imperador já tinha concedido vários títulos e cargos: visconde de Beauharnais, príncipe e chanceler de estado e vice-rei de Itália. Ao lado de outros, era um dos nomes que ressoavam como possível sucessor da coroa portuguesa.

[5]              Referência ao General Louis Alexander Berthier, que prendeu e fez transportar à França o Papa VI em 1798, na sequência das ordens que recebera de Napoleão para invadir os estados pontíficios e começar a organizar a nova República Romana. . 

Transcrição e anotações de Edgar Cavaco