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Nota: partes deste artigo foram publicadas: na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, rubrica Olhão; num folheto intitulado Olhão, terra de mistério, de mareantes e de mirantes, Olhão s.d..; e na Revista Portugal d'Aquém e dalém mar (1952). O artigo tem a data aposta de 1945.

 

 Olhão, vila única

Não se perde na noite dos tempos a origem de Olhão. Se na pequena península, orlada de praia, em que foi surgindo e por onde foi alastrando a vila, entre o largo e longo esteiro a levante (onde agora está projectada a doca) e a reentrância a poente (hoje aterrada - o largo das Prainhas, servindo de campo às feiras anuais) teriam estacionado ou abordado, a abastecer-se no grande olho de água - no olhão - que deu nome ao sítio, muitos de quantos povos, desde a pré-história mais recuada vieram a passar por diante da costa algarvia - ninguém o sabe, mas ninguém o poderia negar.

Todavia, um aglomerado fixo de população, parte dispersa pelo campo, parte concentrada na praia, só nos aparece aqui desde o século XVI, vagamente, podendo dizer-se que a gente do campo, autóctone, ali vivera sempre, como a de hoje (em Marim, nos Cavacos, etc.), do campo e do mar, e que somente a gente fixada na praia, em dois núcleos, um a poente (que deu o bairro da Barreta) outro ao nascente (que deu o da Banda de Levante) foi adventícia, em data incerta, talvez a pouco e pouco ou sobretudo por multiplicação in loco, oriunda alguma ao que se julga, porventura, de Ovar ou de Ílhavo...

Claro que a esse tempo, como antes, aqui no campo deste sítio do Olhão, como ainda hoje nos outros sítios cujo campo chega até ao mar - praia ou rocha - também o homem do campo (o montanheiro, como aqui se lhe chama) se tem feito pescador ou exclusivamente, por diferenciação económico-social, ou cumulativamente, pescador e cultivador, ele próprio ou o clã doméstico, a mulher, sobretudo, quando ele vai pescar, ou vice-versa, tanto mais que o mar não dá só peixe, mas da areia e lama do mar se extraem os mariscos vários, e ainda as algas, a morraça e a seba para os animais ou para o estrume... Da água do mar se extrai o sal, e as salinas foram sempre uma das grandes fontes de receita na economia olhanense. Mais: a água do mar entrando numa orla recortada presta-se a ser repesada. E não foram poucos os moinhos de água na orla de Olhão. Pelas ruínas e pelas notícias, ainda se dá conta de, de poente a nascente: os dois do Grelha, o dos Caliços, o da Barreta, o do Sobrado, o moinho pequeno (dentro do esteiro), o do Inglês, o de Marim, o do Peixe-Rei... Além do que, acima das dunas, na maré-baixa, se leva o gado a pastar...

Lenda pura porém me parece a dessa origem poveira, e de resto incoadunável com as formas dos barcos e a maneira de remar, à moira, perante a verdade irrefragável do documento oficial: em 1765, uma alusão do fidelíssimo rei D. José à declaração dos próprios mareantes do lugar de Olhão "o seu princípio fundado com poucos pescadores" da cidade de Faro, - o que condiz com a tradição local que reza terem vindo pescadores desta cidade "fazer caldeirada" aqui, por ser excelente a água do olhão - o grande olho de água do sítio -, quando em Faro era péssima; e assim haveriam acabado por assentar arraiais na praia olhanense.

De duas classes de gente se compôs, portanto, inicialmente o povo do sítio de Olhão: da gente do campo, os montanheiros, e os marítimos.

Se os adventícios olhanenses seriam no geral pobres pescadores e mareantes tendo os seus barcos, em que moravam, mesmo, antes de se estabelecerem na praia em cabanas de junco, os homens do mar preexistentes no sítio de Olhão, tendo os seus barcos, pequenos ou grandes, para as suas pescas na ria ou mesmo fora da barra, viveriam nas suas casas de pedra e cal -, porque no campo, aqui, em cabanas, só vivem os animais. Depois, os montanheiros do sítio de Olhão, seriam, uns, pobres, mas outros ricos, por certo, de pequenas ou médias propriedades rurais - quintas, fazendas, hortas, cercas, - algumas com casas espaçosas e até de 1.° piso; e, precisamente o terreno por onde a vila actual se expandiu, era o de pequenas ou médias propriedades, destas cujos prédios típicos ficaram assim englobados e ainda são perfeitamente reconhecíveis na massa geral das construções, a exemplo: os prédios do Sr. João Lúcio, do Sr. Trigoso, do Sr. Dr. Aires, a casa senhorial do Sr. Miguel Mendonça (actual Clube Recreativo Olhanense), o prédio do Sr. Barrote (actual Sociedade Recreativa Olhanense, em cujo vasto quintal está a Esplanada Avenida), o prédio do Dr. Estêvão Afonso, etc. - todas, casas de certo estilo, pre-pombalino ou pombalino embora provinciano um pouco...

Vê-se claramente, assim, como destes proprietários rurais abastados se poderiam ter engendrado armadores, tendo embarcações no mar, mas não indo ao mar, exploradores do mar em grande, quanto à pesca e à navegação de comércio, como ainda quanto à extracção do sal, com a construção de salinas (as do Sr. Domingos Afincão foram construídas pelo Capitão Estêvão, pai do Dr. Estêvão Afonso) e a construção de moinhos, os oito ou dez de que Olhão se achou circundado. Na economia local é óbvia a importância que sempre teve a gente do campo, não só com a sua actividade de carácter rural, no cultivo, colheita, exportação e tratamento industrial do figo, da uva, da amêndoa, da azeitona, do trigo, do milho, dos frutos vários, mas com estoutra actividade tendo por campo o mar. Todas as modalidades de capitalismo e comparticipação se observariam. Tanto mais que tradicionalmente com Marrocos o tráfico se mantivera mesmo depois de expulsos os moiros, e é sabido que em começos do século XV a fruta do Algarve, na sua exportação para Marrocos, era um dos pilares da finança nacional para a obtenção do oiro amoedado dos principais centros marroquinos.

O sítio de Olhão abrangia a dita península até pouco acima do poço que se construíra a aproveitar o grande olho de água - donde a vila ainda se abastece.

Marítimos do sítio propriamente, ou marítimos propriamente da praia de Olhão, confundidos uns e outros pelo comum destino, pescadores ou mareantes, homens que vão ao mar ou homens que têm barcos no mar, enfim, gente que vive do mar, viva ou não também de outra coisa, pobres ou ricos, os homens do mar de Olhão pertenciam já em grande número, antes de 1614, à Confraria do Corpo Santo, assente na freguesia de S. Pedro em Faro. (E deles, tendo-se multiplicado uns e outros, fariam os Reis viveiro para serviço nos escaleres da Ribeira das Naus, indo para lá "todos os anos quase 400 homens que se rendem em levas", - tanta a sua habilidade no mister, como no-lo conta e faz notar o próprio pároco de Olhão, escrevendo mais tarde, em 1758.)

Desanexada a freguesia de Quelfes da de S. Pedro, em 1614, o sítio de Olhão ficou englobado em Quelfes, mas os marítimos olhanenses continuaram encapsulados no Corpo Santo de Faro...

Dois movimentos de independência se iriam naturalmente observar, dado o incremento do povo de Olhão.

O povo de Olhão avultava na freguesia de Quelfes com umas mil almas, vivendo em 200 a 300 fogos, em 1614 precisamente. Calcula-se a importância relativa dos marítimos da praia, se se considerar que pelos anos de 1680 as suas poucas cabanas não excederiam a 30, o que daria uma população de 100 a 200 pessoas. No centro do povoado, havia uma ermida ou capela, sob a invocação da Senhora do Rosário, divindade da devoção marítima, onde os marítimos ouviam missa de um seu capelão, que, pagavam, aos domingos e dias santos. Mas na ermida existiam outros altares com oragos nitidamente da devoção rústica: Sta. Clara, S. Sebastião, Sta. Luzia... Ali acudiria toda a gente do sítio, de Olhão, como se sabe positivamente que por devoção acudiam outros de fora... Nesta ermida introduziram ainda os marítimos um monumental "Senhor dos Passos", de sua festa e devoção.

As cabanas na praia deviam, porém, ter crescido em número, além do natural aumento da população geral, tanto que em 1695, reinando D. Pedro II, é solicitada a criação de Olhão como nova freguesia desmembrada de Quelfes; ao que deu provisão o bispo do Algarve, D. Simão da Gama, em Julho de 1695 impondo a construção de um novo templo com o fim de nele "caberem todos os moradores nas ocasiões de ouvir missa e de assistir às festas e ofícios divinos".

Posta a primeira pedra em 4 (ou 16) de Junho de 1698, (conforme se lê na verga da porta principal) veio a ficar concluída a obra em 1715, transferindo-se para lá a imagem da Senhora do Rosário sob cuja invocação a nova igreja ficou, colocando-se na antiga ermida a imagem da Senhora da Soledade (donde lhe veio o nome que hoje tem). Não deixou a prosápia da classe marítima de incluir no cunhal, sob a torre, a lápide onde se pode ler a seguinte inscrição: " A custa dos homens do mar deste povo se faz este templo novo no tempo que só havião umas palhotas em que vivião. Primeiro fundamento 1698". A verdade será, porém, que nem só os homens do mar que viviam nas palhotas haveriam contribuído, mas também os homens do mar, ricos proprietários, vivendo em casas de pedra e cal, capitalistas tendo barcos no mar, pois uns e outros, e decerto os segundos mais preponderantemente que os primeiros, teriam ficado gerindo a "fábrica" da nova igreja... Depois, se em 1698 ainda os "homens do mar" só viveriam em cabanas, meio-século mais tarde já muitas dessas cabanas se haviam convertido em casas, cujo número, adicionado ao das outras casas da povoação, excedia, quase no dobro, o das cabanas subsistentes mas em via de desaparecerem. Tal é o que resulta, com efeito, da informação do pároco de Olhão em 1758, quando diz que Olhão contava 2440 pessoas de sacramento, todas ali moradoras, em 787 fogos, sendo o lugar de Olhão à data "uma das maiores povoações do Algarve em que se contavam para cima de 500 moradas de casas e mais de 300 cabanas que cada dia vão diminuindo e pondo-se em seu lugar casas" 1.

Independente já como freguesia, Olhão tentara separar-se de Faro quanto ao Compromisso da Confraria do Corpo Santo. E por isso, talvez que ainda a D. Pedro II, mas com certeza a D. José, antes do terramoto de Lisboa, dirigiram os mareantes de Olhão requerimento no sentido de desejarem erigir a Confraria do Corpo Santo na sua freguesia, visto Olhão ficar a uma légua de Faro e os mareantes de Ferragudo, menos distantes de Portimão, terem obtido semelhante desanexação. Com a pressão burocrática dos interesses de Faro, que impugnara a pretensão, protelara-se o caso, até que, dez anos depois, em 1765, renovado o pedido, agora directamente à especial graça do rei, este, tendo resultado inúteis as duas consultas feitas sobre o processo, por os papéis "naturalmente terem ardido no incêndio" consecutivo ao terramoto, e passando por cima de formalidades e obstrucionismos movidos ou alimentados pelas autoridades de Faro, acabou por conceder a referida separação, "estabelecendo os suplicantes uma nova Confraria na Paroquial Igreja de N. Senhora do Rosário", com os privilégios, isenções, indultos e regalias, concedidos aos de Faro. E, assim, se criou o Compromisso Marítimo de Olhão, associação que veio a ser das mais importantes do seu género (hoje convertida em Casa de Pescadores). Ao real alvará de 6 de Julho de 1765 fez seguir o bispo do Algarve dois anos depois a provisão concedendo à nova confraria, na Igreja, um altar dos que estivessem vagos para se colocarem as imagens respectivas, como tinham na Igreja de S. Pedro em Faro. Data de 1771 o edifício do Compromisso, fronteiro à Igreja Matriz.

A população de Olhão fora sempre em aumento: no requerimento de 1765 ao rei, consignava-se que o lugar de Olhão estava "no tempo presente tão aumentado que tinha 850 fogos, e mais de 2000 pessoas" e que os mareantes "formavam duas campanhas de mar e uma de terra".

Não é pois lícito continuar repetindo com Silva Lopes2, mal informado por certo, que foi com os lucros avultados conseguidos por ocasião do cerco de Gibraltar, de 1778 a 1782, levando refrescos aos sitiantes e sitiados, que os marítimos de Olhão haviam convertido as suas cabanas em casas, facto que estaria consumado em 1790. O natural é que com o lucro da pesca e de toda a espécie de actividade por mar, a conversão se tivesse ido efectuando, como vimos, progressivamente, e que então se tornasse apenas mais intensa, dado o lucro maior.

Os pescadores ou marítimos ricos nunca terão porventura morado em cabanas; e os mais pobres, que nunca conseguiram, como os companheiros mais, remediados, melhorar as suas condições de vida, a começar pela habitação, terão sido daqueles que nunca deixaram de morar em cabanas, como essas que, ainda há um século, existiam incrustadas na povoação.

Em todo o caso, em 1790, poucas seriam já as cabanas, entre os 1133 fogos comportando 2947 pessoas maiores, 465 menores e 800 que andavam ausentes - 4212 habitantes ao todo. Crescendo sempre o número de habitantes elevava-se em 1802 a 4846, em 1202 fogos; e em 1813, ascenderia a 5000. As guerras de 33/34 vêm abrir brecha, bem como o cólera-morbus: em 1835 o número está reduzido a 3202, em 1081 fogos. Porém, meio-século passado, em 1884/1885, eis que o número de fogos tem subido a 2013 com os seus 6 a 7000 habitantes provavelmente. O censo de 1900 dava já 9993 (sendo 4726 masculinos e 5267 femininos). Num recente apuramento a vila evidenciou uma população humana de 18 000 bocas...

Quando a freguesia de Olhão se separara de Quelfes, a sua área, constituída pela península referida, não chegava pelo norte até à estrada de Faro a Tavira. E, dentro dos seus apertados limites, o campo era quase tudo e a praia quase nada, estreita orla ao sul, destinada a ser absorvida progressivamente. Há um século a linha da praia vinha ainda pelo fundo da actual praça Patrão Joaquim Lopes, onde o peixe se vendia sobre a areia, prolongando-se até aos dois bairros extremos - o da barreta com a sua típica travessa dos abraços, e da banda de levante com o emaranhado típico da rua dos 7 cotovelos - e mais ao longe, como duas sentinelas, os dois moinhos, com as reentrâncias aproveitadas nas respectivas caldeiras: o da Barreta, (cuja poética ruína se quis deixar, após a terraplanagem à volta), o moinho do Sobrado, a levante, cuja casa ainda subsiste (actualmente adaptada a Clube Naval). Assim tudo o que, pela rua do Gaibéu, (em cujo extremo poente era a Alfândega primitiva, casa térrea, pequena), e pela rua Alexandre Herculano, e seus prolongamentos tortuosos até aos dois emaranhados bairros das cabanas-casas, se foi edificando, foi-o sobre a praia; e, por último, as duas praças de abastecimento, com seus cais, com maior conquista ainda ao próprio mar.

A actividade da gente de Olhão nunca foi, como se deixa ver e se deve sublinhar, unicamente piscatória, embora marítima fosse; mas nem exclusivamente marítima foi nunca. A cultura da terra, o comércio e mesmo o tratamento industrial de certos dos seus produtos representaram sempre um papel vital para os olhanenses: em Olhão existiram lagares, destilações e fumeiros de figo, negócio de amêndoas e de alfarrobas antes de haver fábricas de conservas; e houve moinhos de água, antes de haver armações de sardinha; e há salinas ainda...

De par com a actividade derivada da presença do campo, a ligada à presença do mar repartiu-se sempre pelo comércio e pela pescaria. Os barcos de Olhão iam pela estrada marítima a toda a parte da costa do País, levando e trazendo produtos, entre eles os da própria pesca que faziam; mas nem só percorriam a costa portuguesa: aventuravam-se à costa espanhola, às costas marroquina e argelina, e houve até quem fosse uma vez a Odessa buscar trigo!

(Nas suas aventuras marítimas, contam os olhanenses as viagens à África, tendo sido dos primeiros colonizadores do sul de Angola. E, coroa de glória da vila da Restauração foi, após a expulsão dos franceses em 1808, a viagem célebre ao Brasil, indo levar a notícia a D. João VI, no caíque que lá ficou, em relíquia veneranda, construído, como de resto os barcos de Olhão, nos seus estaleiros, pelos mestres locais cuja tradição se continua.)

A pescaria local, essa, ou alimentava a população ou era exportada para várias províncias do País, ou para Espanha. Antigamente eram a pescada, o goraz, o cachucho e outros peixes do mar alto, a cavala, a sarda, o sarrajão, etc. pescados, entre outros sítios, no mar de Larache (Marrocos), as grandes pescas; e também a dos peixes de coiro, de cujas peles se fazia a lixa, de cujos fígados o azeite-queime (que a gente do campo consumia) e cuja carne constituía o pexelim. Decaíram estas grandes pescas; e a dos peixes de coiro pode considerar-se mesmo extinta. Os peixes, grados ou miúdos, se não consumidos em fresco, implicavam a salga. Os processos de salga, em recipientes próprios, pouco terão progredido. Os da extracção dos óleos e fabricação de guano têm, porém, merecido atenção especial, dada a importância enorme que tais produtos adquiriram.

Com a escassez da sardinha nas costas da Bretanha francesa e o consequente estabelecimento em Olhão das primeiras fábricas de frito (da quais vingou, florescente, a Fábrica Delory), desde há uns setenta anos, adquiriu a sardinha importância primacial; e a sua pesca, por meio de armações fixas, à valenciana, absorveu, pode dizer-se, por largo prazo as outras pescas. Claro que com os mestres e contramestres franceses foram aprendendo os mais espertos dos soldadores (montanheiros) olhanenses toda a técnica da fabricação e da indústria. E daqui, um pouco à toa, sob várias formas de associação de capitais, foram surgindo, sem licença ou com licença (que a ninguém preocupava) e progredindo, dentro da melhor ou pior fabricação e comércio - a escola da vida - as fábricas de conservas de sardinha, chicharro, cavala e outros peixes, em azeite, óleo ou molhos vários, que em Olhão, instaladas ad hoc, disseminadas pela vila, chegaram a passar de oitenta, e hoje se encontram corporativamente agremiadas, limitadas e fiscalizadas.

Um pouco depois dos franceses, vieram os italianos, em busca do biqueirão, para a salga em barris que tanoeiros seus, trazidos da Sicília, aqui fabricavam... E, claro, com os italianos aprenderam também os trabalhadores (montanheiros) olhanenses todo o segredo do processo... E começaram as estivas, enxertadas nas fábricas, ou independentes delas, e por último, descoberto o destino da estiva bruta, a febre actual da fina e elegante filetagem que o Instituto respectivo fiscaliza.

O desenvolvimento da conserva trouxe a adopção de nova modalidade de pesca, mais intensiva: a dos cercos americanos, pesca livre, organizações de avultados capitais e fortes encargos...

As armações desapareceram completamente; mas uma modalidade modesta ressurgiu, a das sacadas3, com sorte precária todavia; e ultimamente, intermediárias aos cercos e às sacadas, as traineiras em via de afortunado futuro.

Toda a restante pesca e comércio marítimo de Olhão estão, hoje, em face do desenvolvimento da indústria da pesca subsidiária da conserva, reduzidas quase à insignificância.

Olhão tem enriquecido, sem dúvida. Mas o incremento da indústria tem determinado grave crise de braços: para os serviços domésticos e agrícolas. Todas as moças querem ir trabalhar para as fábricas - e não bastam, vindo brigadas delas de Quarteira, que parece um viveiro -; todos os montanheiros querem vir para as fábricas ou para os cercos ou traineiras...

 

***

 

O que será Olhão no futuro, ninguém, nem nenhum plano de urbanização o poderá visionar. Não é impossível, porém, que a incompreensão teimosa e pretensiosa dos homens pouco esclarecidos lhe venha dar um carácter irreconhecível: através dum plano sistematizar para a urbanizar banalmente, internacionalmente, descaracterizando-a.

Ora, o aspecto panorâmico de Olhão é único no País - e poder-se-ia dizer - único em toda a Europa, mesmo em todo o Mundo - aspecto derivado da estrutura especial das suas casas, pequenas ou grandes, estrutura que em menor ou em maior grau se conserva ainda. E deve conservar-se.

Porque, se ao transformarem-se as primitivas cabanas em casas tivessem estas terminado simplesmente por terraço-soteia, total ou apenas parcialmente, não estaríamos ainda num aglomerado de casas diferente do que se encontraria no campo em redor. Rareando os telhados cada vez mais, aproximar-nos-íamos do aspecto de Tânger, de Muley-Idriss, de Rabate, de Tunis. Se os terraços ou soteias fossem horizontais, sem parapeito algum, estaríamos como na Síria ou outro Oriente qualquer. Açoteias (ou soteias, como aqui se usa dizer com mais arábica propriedade) há-as por todo o Algarve ou pelo menos por todo o campo do Sotavento algarvio, - como pelo Sul da Espanha e por todo o Norte de África desde Marrocos à Líbia... Há-as na Síria e na Pérsia onde o cubismo das casas chega a ser perfeito, não tendo os terraços rebordo algum...

 

Em Marrocos, porém, em especial, costuma existir um rebordo ou parapeito, mas muito baixo; e se a razão estará em a soteia não ser utilizada senão acidentalmente, encostando-se-lhe então uma escada de madeira para tal fim, (escalier de fortune) – (pois as mulheres estão pelo Corão proibidas de se exibirem sobre os terraços - segundo me disse aqui mesmo, o ilustre Prof. Lévy-Provençal), em Olhão, o caso muda completamente de figura; porque a soteia é utilizada como uma dependência ou extensão, ou ampliação do espaço livre da habitação e é assim aproveitada para todos os mais diversos fins de utilidade ou recreio, (nunca, porém, como um malavisado professor universitário de geografia fantasiou: para recolher as águas da chuva para cisternas (!) - que em Olhão nunca existiram, sendo o solo do sítio do olhão, riquíssimo em poços, de água doce e salobra, de vários lençóis subterrâneos.

Olhão não é pois apenas um "mar de açoteias" (como a próxima aldeia da Fuzeta).

Em Olhão, o panorama surpreendente inclui outra coisa: soteias sempre com parapeito alto, sobre as quais, quando se não sobe a elas por escada de pedra e cal vinda do quintal (nunca da rua, mas de dentro da própria casa, rompendo-se então forçosamente o plano da soteia), o problema foi resolvido não por meio dum alçapão (como no Sul da Itália e na Suíça, por exemplo) mas por meio de uma espécie de guarita: um pangaio, com um tecto inclinado, e uma porta no topo ou no lado livre, ficando o pangaio sempre num canto da soteia. Ora este tecto que começou sendo um tabuleiro coberto de telha mourisca, tornou-se, com o tempo, de linha quebrada, sempre coberto de telha; e mais tarde a sua parte terminal passou a ser horizontal, servindo de tecto ao patamar quadrado, enquanto a parte inclinada servia de tecto à escada. Desde então o revestimento de telha desapareceu, substituído pelo de ladrilhos. Muitas vezes a chaminé cúbica e simples (nunca, em Olhão, com ajuramento arrendado, como é típico para o interior do Algarve) fica incorporada no pangaio ou coalescente com ele.


 

Soteia de casa alta com pangaio e degraus para o mirante

Mas não bastaram aos olhanenses as soteias de parapeito alto com pangaio. Em Olhão nasceu a ideia de pôr uns degraus sobre a parte inclinada do pangaio e de por eles subir, como por escada, ao pequeno terraço quadrado que então se circundou de parapeito mais ou menos alto, à laia de púlpito. E eis surgido o embrionário mirante. Mas não se parou aqui, neste rudimento: considere-se alargado o pequeno patamar de entrada na soteia, ou construída sobre esta (sempre a um canto ou a um dos lados, nunca ao centro da soteia) uma autêntica casa. E agora, para tecto desta casa, em vez de um telhado que sistematicamente se repudiou (apenas esporadicamente um ou outro caso se nota, antigos todos), eis uma nova soteia, ladrilhada como a primeira, e circundada de parapeito alto, um mirante, de seu nome próprio, ao qual se sobe por escada exterior, de alvenaria, (não de madeira ou ferro...), sobre um, dois ou três arcos assentes em pilares finos ou em cachorros de pedra, metidos de través. O mirante fica assim naturalmente de superfície menor do que a soteia sobre a qual se eleva, em geral a um canto, ou, se a meio, encostado a um lado da soteia (nunca no meio da soteia a cobrir lanternim de pátio interior, como se observa por vezes na Andaluzia), visto que cobre a casa de cima da soteia (assim se lhe chama) e não um pátio interior que em Olhão se não conhece...

Por vezes, em Olhão, a soteia fica reduzida a um pequeno quintal no 1.° andar, sobrepondo-se-lhe então uma 2.a soteia a cobrir todo o 1.° andar, soteia que pelas suas dimensões extensas não merece o nome de mirante, mas o de soteia do prédio, propriamente. E sobre esta soteia extensa eleva-se então o verdadeiro mirante. (Vê-se assim que o nome de soteia se aplica ao primeiro e mais extenso dos terraços sobrepostos e o de mirante ao 2.° e naturalmente menor).

Sobre o mirante eleva-se às vezes um outro mirante, similar, ocupando, de lado a lado, metade aproximadamente do terraço do primeiro; ou então, num canto deste, apenas uma espécie de púlpito ou torre de vigia, a que se dá o nome de contra-mirante


Soteia de casa térrea com 1º e 2º mirantes.

De qualquer maneira porém: três terraços sobrepostos, em pirâmide. Por esta ligeira análise, já o turista poderá orientar-se, contemplando agora as gravuras aqui documentadas, onde essas e outras realidades especificamente olhanenses se patenteiam.

Até agora não se tem passado, em Olhão, desta sobreposição até três terraços; mas compreende-se que um urbanismo consciente desta especificidade cuja origem continua misteriosa, sendo, ao que comprovadamente parece, única em todo o Algarve, em todo o Portugal, em todo o Mundo mesmo, leve mais alto a espécie de pirâmide de terraços... É que, por acaso, a pirâmide apresenta-se por vezes mais ampla e mais numerosa... Sim: pela coalescência de casas que ulteriormente se puseram comunicantes por forma a constituírem um mesmo prédio, acontece que mais três terraços se encontram a diferentes alturas... Tal é, por exemplo, o prédio em que habito, na Rua Vasco da Gama, n.° 20, que apresenta nada menos de quatro, e do alto do qual os turistas curiosos ou os estudiosos arquitectos... do Universo, podem verificar, como inegáveis realidades, exemplares que se metem aqui pelos olhos adentro, estas e outras novidades e originalidades da estranha e misteriosa arquitectura local olhanense, genuína, inerudita...

 

Soteia de casa térrea com mirante e contra-mirante

 1 F. X. Ataíde de Oliveira, Monografia do Concelho de Olhão, 1906, p. 55.

 2J. B. da Silva Lopes, Corographia ou memória económica... do Reino do Algarve Lisboa, 1841

3 Cf. as caçadas

Olhão, 7-VIII-1945

Francisco Fernandes Lopes