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Nota: artigo saído no jornal Diário de Lisboa em 16-6-1958, escrito por Francisco Fernandes Lopes

Boris de Andorra

Os leitores dos jornais lisbonenses de há uns vinte anos (não posso já, de simples memória, recordar com alguma precisão a data) tanto os do «Diário de Lisboa», como os dos outros quotidianos, e em especial os do defunto semanário «O Diabo», estarão por certo recordados de um personagem que teve o seu momento de celebridade entre nós, embora não tivesse passado de um misterioso aventureiro inofensivo, e até «bon enfant», que, apátrida «malgré lui», andou enrodilhado com a Polícia Internacional de então, a qual por fim lhe passara um passaporte de saída, sem volta possível; e com esse documento, por sugestão do jornalista Mário Domingues, que me conhecia, veio uma noite parar a Olhão, aparecendo-me aqui, a ver se eu lhe conseguiria um barco que legalmente, com o dito passaporte, o levasse para Marrocos.

No referido semanário se poderá ler a larga reportagem, de bom humor e possível verdade, que ali dei a público sobre o enigmático personagem e a sua odisseia: o «rei» Boris de Andorra, como lhe chamavam.

Recordarei pois que, vindo da boémia literária alfacinha, onde avultavam, nas relações com ele, como simples pobre-diabo ou como pessoa estimável pelo seu espírito e pela sua cultura, os nomes de D. Maria Archer, dr. Manuel Anselmo, Mário Saa, Ferreira de Castro, Roberto Nobre, etc. Boris encontrara aqui em Olhão a simpatia e a boa amizade de pessoas de relevo e da arraia miúda piscatória e marítima, para quem era o mano rei, durante meia dúzia de meses que se viu forçado a permanecer aqui. Como o passaporte que lhe haviam posto na mão não dava, a nenhum mestre de barco, a possibilidade de o transportar (ou arriscar-se-ia, quem o levasse, a andar eternamente com ele a bordo, sem o poder desembarcar em parte alguma), chamara eu para este caso único a atenção do meu saudoso amigo, o grande advogado dr. Carlos Fuzeta, que pelas suas boas relações com a Polícia Internacional, conseguiu por fim, reconhecida lealmente a inconsequência, fosse concedido a Boris outro passaporte com o qual então pode sair de Portugal, mas… para não voltar cá mais. Conforme sucedeu.

No entretanto, para esclarecer o mistério e auxiliar na medida do possível a solução oficial do caso, entretivera-me eu, a arvorar-me em cronista da tragi-comédia andorrana, - o que ao meu saudoso amigo dr. Jordão de Freitas mereceu alcunhar-me jocosamente de «Fernão Lopes de Andorra»…

Debruçando-me pois sobre o abismo – (a alma de outrem é obscura – reza um velho provérbio russo…), guiado pelas confissões e confidências de Boris e pela documentação jornalística e epistolar que me fornecia, revelara eu, com a natural reserva quanto à intrínseca veracidade, que se trataria do neto de um nobre da casa de Orange que, a exemplo de tantos outros, fora para a corte da Rússia a convite de Pedro, «o grande», quando este imperador procurara ocidentalizar aquele país. Em Varsóvia lhe haviam sido concedidos territórios; e aí teria nascido Boris, - Carlos Boris de seus nomes próprios. Assim, nobre, recebera a educação cortesã, primeiro em Schoenbrunn, depois indo estudar para Inglaterra onde, em Oxford ou Cambridge (não me recordo agora bem), teria obtido ou estaria em vias de obter o diploma de «magister artium» quando a guerra de 1914 rebentou. Boris, legalmente nobre russo, servira então como voluntário na Armada Britânica, e, terminada a guerra, mas sobrevindo o bolchevismo, ficara sem documentação comprovativa da sua identidade, tal e qual como sucedeu a tantos outros que não aceitaram o regime soviético, estando Boris por demais no estrangeiro e, como nobre, tendo a sua documentação na posse do chamado «rei de armas»… Assim, ficando na Inglaterra indocumentado, acabara, passando à Holanda, por conseguir da Rainha Guilhermina, sua parente pela casa de Orange, um passaporte com o qual pôde vir para França onde casara… Assim, holandês agora e «camelot du roi», jornalista polémico à Léon Daudet, e por enquanto turista, viera, como tal, um dia a Andorra. E, dando-se conta «in loco» da natureza anacrónica do co-principado andorrano – sendo co-príncipes o bispo de Urgel e o rei de França, substituído abusivamente para a circunstância, pela pessoa do Presidente da República, então Monsieur Albert Lebrun (pois se tratava de um feudo pessoal, que persistia, pois no exílio o rei reina sempre…), Boris vendo a exploração comercial e industrial que os franceses estavam a fazer do país andorrano, dera consciência aos membros do Conselho dos Vales e pensara fazer de Andorra um principado com uma constituição política própria, e pois representação na Sociedade das Nações. Para tal, que os conselheiros dos Vales haviam aceitado, considerando-o um libertador da tirania tradicional, Boris, tendo-se entendido, claramente ou não, com o pretendente ao trono francês (que, em todo o caso, o deixaria fazer), apresenta-se em Andorra como lugar-tenente do príncipe pretendente a quem o co-principado andorrano pertenceria como feudo pessoal, e declara guerra feudal ao outro co-príncipe, o bispo de Urgel. Guerra feudal, proclamada ao som da trombeta; em meio de um cerimonial… de opereta, de que as fotogravuras dos jornais espanhóis (que conservo porque Boris mas deixou aqui…) dão o irrecusável testemunho. Claro que, não se defendendo, ficara vencido o bispo, e Boris, príncipe único, como lugar-tenente do senhor feudal verdadeiro. Feita a constituição (de que conservo um exemplar impresso…) e começando a vigorar, ao fim de dias é Boris convidado pelas entidades governativas espanholas a ir a Barcelona. Na sua boa-fé, vai e… fisgam-no, mandam-no para Madrid, apreendem-lhe o passaporte e uma avioneta; e por fim, não se sabendo como resolver politicamente o caso, a Polícia espanhola mete-o à sucapa em Portugal, onde a Polícia Internacional Portuguesa o prende naturalmente, seguindo-se a sua tragicomédia aqui, sem que nada de criminoso se tivesse apurado contra ele…

Saído finalmente com o novo passaporte que o dr. Fuzeta lhe conseguira, vai Boris, - com o seu título de Barão de Skossyreff que a sua parenta holandesa lhe concedera – repousar para casa de sua mulher em Saint-Cannat, na Provença (departamento das Bouches-du-Rhone – o que sei ser verdade, pois tenho aqui correspondência dela e até o seu retrato com ele...); mas... acabam por lhe apreender o passaporte. Escrevendo-me aflito, pois não havia maneira de lho restituírem, apesar da intervenção do cônsul português em Marselha (e parece que mesmo o nosso ministro em Paris), pede-me que exponha o caso ao nosso Presidente do Conselho, o sr. Dr. Salazar, que ele considerava uma pessoa «foncièremente honnête»; - o que, da melhor vontade faço, - tendo sabido apenas que quase imediatamente a seguir lhe fora restituído o dito passaporte. Tempos depois, por um interessante postal que me envia de Mende, sei que está  num campo de concentração, espécie de cais de embarque para aqueles condescendentes países cálidos (Chile, Peru, Bolívia, etc.) que servem de asilo aos deixados escapar à sucapa… - Um jornal que me envia também, mo confirma, por uma uma jocosa entrevista com ele; e, como outro jocoso documento, me envia uma fotografia sua, trabalhando elegantemente vestido, a empurrar uma «brouette» com pedras dentro…

Passam tempos, anos talvez. Vem a segunda Grande Guerra; por vezes lembrava-me dele. Que teria sido feito do Boris?

Um belo dia, porém, recebo de Boppard-am-Rhein (Alemanha Ocidental) uma carta sua… Estava comerciante ali, enviando-me com a carta em papel timbrado de estilo, alguns cartões dessa qualidade com o «import-export» nos quatro cantos. E ainda esteve então a ponto de fazer uma transacção com um comerciante de conservas que conhecera aqui.


Foto de Boris em Rieucros, segundo o próprio.

Anos depois escrevi-lhe para a direcção que me dera… Nem resposta, nem a minha carta devolvida... Provavelmente teria morrido ou estaria ausente em parte incerta…

Há dias, porém, com grande surpresa minha, traz-me o correio uma carta sua, por avião, de Boppard-am-Rhein contando-me, por alto, o que se lhe tem passado e pedindo-me, do que me deixara cá, elementos para o que vai escrever – as suas memórias provavelmente... Vou escrever-lhe a saber pormenores e mandar-lhe o que me pede – se passado tantos anos encontrar ainda isso em meio do oceano dos meus papéis velhos.

Francisco Fernandes Lopes

P.S. – Eis a carta, a título de curiosidade. Em papel timbrado com

Freiherr von Skossireff

(22b) Boppard

Kreuzweg 4

Boris diz-me: (traduzo textualmente):

Boppard, 26 de Maio de 1958

Meu caro Dr. Lopes e Amigo

Anos se passaram desde que lhe escrevi. Era, creio eu, em 1948! Desde então, não tendo tido poucas aventuras, cujo começo V. conhece no castelo de Meternich, perto de Coblenz. Mas terminada a ocupação francesa, não tenho tido mais descanso. Todavia, nos quadros da OTAN a influência francesa tem podido desempenhar de novo o seu papel e tive que abandonar a Bundeswebr.

Há dois anos, voltei são e salvo – mas os meus nervos ainda estão arrasados – da Sibéria; e isto deve interessar o meu cronista. Estou reformado a 100%, petit rentier, habito com minha mulher uma bela casa bem tranquila nas margens do Reno e penso muitas vezes em si! O meu caro e ilustre médico ficaria encantado com saber que me falta na hora em que estou a escrever, a terapia do trabalho. Todo o Revenant – como é que se pode traduzir em português Heimkehrer? – tem necessidade de trabalhar, pois um repatriado dos campos soviéticos não pode cruzar os braços. Eu não pude ficar no exército. Quero escrever, escrever sobre assuntos que V. conhece melhor do que os outros. Estou a compulsar.

Para compulsar tenho a necessidade urgente do material dizendo respeito à minha passagem por Portugal, à guerra civil de Espanha, às viagens da minha mulher, à sua passagem para Itália… Falta-me, para me recordar de tudo isso, o manuscrito dactilografado de minha mulher, as memórias dela, de que V. possui uma cópia. Seja gentil a ponto de me enviar o mais cedo possível essa peça. Ficar-lhe-ei muito reconhecido.

Espero com impaciência notícias suas. Os meus cumprimentos a toda a sua família. Boas lembranças a Mário Saa, Carlos Silva e a todos os amigos de Olhão (E em português mesmo): Apresento-lhe os meus agradecimentos pela tão perfeita defesa do seu insignificante mas sincero amigo.

Boris v. Skossireff

A esposa por seu próprio punho (conheço-lhe bem a letra) acrescentou: «Tantos anos passados e ainda aí estamos depois de tantos acontecimentos! E as tristes recordações do passado! E os bons amigos! Com muitas «amitiès» – Marie Louise de Skossireff»