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OLHÃO e as Invasões Francesas

 

1. Enquadramento nacional

A página da História mais importante para Olhão ocorreu em 16 de Junho de 1808, dia da revolta olhanense contra os invasores franceses, que pôs a então aldeia de Olhão no mapa político-administrativo do Algarve, transformando-a imediatamente em vila por decreto régio.

Tudo isto ocorreu durante a primeira invasão francesa, chefiada pelo General Junot, que chegou a Lisboa em 30 de Novembro de 1807.

Esta invasão, ao contrário das que se lhes seguiram, foi a única que teve sucesso em Portugal, e afectou directamente o Algarve. As duas invasões seguintes (chefiada a segunda por Soult e a terceira por Massena) foram sempre militarmente derrotadas pelo exército anglo-português e nunca chegaram ao Algarve.

A primeira invasão francesa, aliás, não teve qualquer resistência oficial dos portugueses. Esta situação parece-nos estranha actualmente mas, se nos enquadrarmos na situação histórica do momento torna-se mais compreensível.

Portugal já se encontrava em litígio quase permanente com a França desde 1793, ano em que os franceses decapitaram o seu rei e rainha em plena histeria revolucionária.

Nesse ano, várias potências europeias decidiram travar a França revolucionária. A Espanha fez uma aliança com Portugal e a Inglaterra e organizaram uma ofensiva militar que ficou conhecida como a campanha do Rossilhão, na qual participaram 6000 soldados portugueses.

Como esta campanha foi um grande insucesso, dois anos depois (em 1795), a Espanha assina unilateralmente um tratado de amizade com a França – a Paz de Basileia – o que deixou Portugal isolado na sua aliança com os ingleses.


Junot

A partir deste momento, a França, com a ajuda da Espanha, vai exigindo a Portugal, de forma cada vez mais agressiva, a adesão ao bloqueio económico contra a Inglaterra.

Em 1796, a Espanha começa a reunir tropas na nossa fronteira e, em 1801, invade o Alentejo e conquista Olivença na chamada Guerra das Laranjas. A França aproveita para ficar com a nossa Guiana (na América) e exige indemnização de guerra.

Em 1806, quando Napoleão Bonaparte vence os prussianos, acabando assim com toda a resistência ao seu projecto imperial no Continente Europeu, é feito a Portugal um ultimato para bloquear os seus portos marítimos à Inglaterra.

Portugal, como sempre, argumenta que não poderá cumprir tal ultimato porque, sendo um país com colónias em todos os continentes, nunca poderia mantê-las se a Marinha inglesa as atacasse ou bloqueasse o comércio entre a metrópole e as colónias.

Efectivamente, Portugal era na época uma pequena potência com um império paradoxalmente gigantesco para os seus recursos, pelo que obrigava-se a prestar vassalagem à Inglaterra, devido ao seu poderia naval. Esta aliança tinha duas vantagens para Portugal: foi e continuava a ser importante para a manutenção da independência frente a Espanha (recuperada em 1640 e só confirmada, após uma longa guerra, em 1668!), e permitia-lhe a manutenção do seu vasto Império. Mas em troca, Portugal foi obrigado a assinar tratados de comércio com Inglaterra que o arruinavam economicamente, nomeadamente o Tratado de Methuen, em 1703.


Napoleão Bonaparte

O facto de Portugal ser na época uma nação imobilizada e refém desta aliança, que lhe dava tanta pobreza, fez com que o País se conformasse com a inevitabilidade da invasão francesa.

Esta inevitabilidade, o cansaço de cerca de 14 anos de litígios com a França que parecia imbatível, a solidão de quem na Europa só contava com um “amigo” – a Inglaterra – que se mostrava também incapaz de nos dar protecção, a sensação que a monarquia absolutista vigente em Portugal, teria fatalmente que desaparecer tal como no resto da Europa, e, finalmente, o facto de os franceses insinuarem que iriam apenas fechar o seu bloqueio económico aos ingleses e não atingir directamente Portugal, levou muitos portugueses a pensarem que a invasão francesa poderia ser um ponto final para os seus problemas, e mesmo, um factor de progresso social. Eram muitos os jacobinos a acreditar que o Exército de Napoleão vinha libertar o povo português das grilhetas da ignorância e da opressão inerentes à monarquia absolutista.

Isto fez com que o País se começasse a preparar tranquilamente para receber os invasores.

É isto que explica o facto de, embora Junot só tenha chegado a Lisboa em 30 de Novembro de 1807, quase dois meses antes (em 9 Outubro 1807) a Câmara de Faro já tivesse iniciado as preparações para receber as tropas invasoras!

Por outro lado, quando as tropas francesas já estavam perto de Lisboa, a 26 Novembro de 1807, D. João VI, nosso Príncipe Regente, mandou difundir um Decreto-Real a mandar o nosso povo receber os franceses com hospitalidade!

Em 29 de Novembro de 1807, a Família Real acompanhada por cerca de 15.000 pessoas entre nobres e criadagem, parte para o Brasil, protegida pela Armada Inglesa, numa manobra política e jurídica que preservava simbolicamente a independência portuguesa.

No dia seguinte, em 30 de Novembro de 1807, os franceses entram em Lisboa mas, a ocupação do resto do País demorou ainda alguns meses, e foi frequentemente antecedida pelo exército espanhol.

Apesar do discurso de Napoleão dar motivos aos portugueses para acreditarem na boa fé dos seus exércitos, a verdade é que imediatamente antes da invasão, em 27 Outubro de 1807, este assina o tratado secreto de Fontainebleau com Godoy, o primeiro-ministro espanhol da época, no qual combinam partilhar Portugal após a invasão: o Norte ficaria para os franceses, o Centro seria decidido noutra altura, e a região a Sul do Tejo ficaria para os espanhóis! Godoy seria o Príncipe desta zona sul que se chamaria o Principado dos Algarves. Conta-se que o primeiro-ministro espanhol ficou tão entusiasmado com a ideia que imediatamente mandou cunhar moeda com a sua esfinge, secretamente,  para o seu tão sonhado e desejado principado!

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Manuel de Godoy

Em Janeiro de 1808, já depois da ocupação oficial do País, são de facto os espanhóis os primeiros a chegar ao Algarve e, só em Fevereiro, o Exército francês começa a tomar posse das principais praças desta Região.

As autoridades administrativas e sobretudo, eclesiásticas, em Faro, como o Bispo de Faro – D. Francisco de Avelar – recebe-os de forma subserviente. Apenas o Governador de Armas do Algarve e Conde de Castro Marim, D. Francisco de Melo da Cunha Mendonça de Menezes, é afastado discretamente do seu cargo por não querer servir os franceses. Os soldados portugueses são geralmente dispensados, excepto em Faro, onde ficam sob o comando francês.

À medida que a ocupação francesa se foi consolidando, as ilusões portuguesas de que estes iriam trazer o progresso ao País, esfumam-se depressa.

Os invasores aplicam um sem número de novos impostos que, no Algarve, haveriam de espezinhar sobretudo os marítimos olhanenses: o imposto maior era o “prato do governador”, que todos deveriam pagar, mas havia ainda as portagens para sair do Algarve através da Serra do Caldeirão, uma taxa própria para cada embarcação, portagens quando saíam para o mar através da Barra Velha, vinte por cento do pescado confiscado para o exército napoleónico, etc.

Devido a tudo isto nasceu um adágio popular nesta época que actualmente já está em desuso: quando os olhanenses se queriam referir a um vigarista habilidoso, costumavam dizer que ele “tinha mais artes que os Bonapartes”.

Para além de todas estas "artes", Junot aplicava a pena de morte aos contrabandistas e não haveria na época, pelo menos no Algarve, uma terra com mais contrabandistas que Olhão!

A humilhação ainda aumentava mais  porque os marítimos olhanenses eram obrigados a deslocarem-se a Faro para fazer estes pagamentos, e apercebiam-se que a situação era bem melhor para os farenses.

Efectivamente, para fomentar o colaboracionismo das autoridades administrativas sedeadas em Faro, os franceses tiveram uma política mais tolerante para com esta cidade.

É com este estado de espírito já revoltado que os olhanenses acolhem uma pequena guarnição de 24 soldados franceses na sua aldeia, em Abril de 1808.

Apesar de tudo isto, D. Francisco de Avelar (Bispo do Algarve) mais uma vez, de forma subserviente, manda ler, em 21 de Maio, uma pastoral em todas as missas onde recomendava a obediência às autoridades e o regresso dos desertores do Exército Português!

No entanto, estas pastorais já não calam a revolta do povo contra as várias humilhações sofridas e, talvez, sobretudo, contra a hipocrisia das falsas promessas e da distância entre o discurso cheio das bonitas ideias revolucionárias francesas, e os actos reais, de simples roubo e rapina.

Embora os espanhóis tivessem sempre colaborado com os franceses, nesse mês de Maio de 1808 revoltam-se, quando Napoleão os atraiçoa, ao impor o seu próprio irmão, José Bonaparte, como Rei de Espanha!

O exército espanhol, aquartelado no nosso País para dar apoio aos franceses, num ápice, começa a regressar a Espanha para lutar contra os franceses!

Isto deixa o Exército Napoleónico numa situação muito difícil: em Espanha tinha uma situação quase incontrolável, e em Portugal, perdia uma força de apoio substancial.


D. Francisco de Avelar, num quadro de Joaquim José Rasquinho (1736 - 1822), existente no Museu Municipal de Faro

 

2. A rebelião olhanense

Olhão era na altura uma simples aldeia sem qualquer importância administrativa ou política, atendendo ser povoada apenas por miseráveis marítimos, sem instrução nem quaisquer pergaminhos importantes para a época. Havia mesmo quem se referisse aos olhanenses depreciativamente como sendo apenas uma “raça de escravos”!

Mas, no entanto, a humilde aldeia estava já num crescimento imparável e teria na altura mais de 5000 habitantes e já quase nenhumas barracas.

Tinha ainda um património de luta e rebeldia contra a vizinha Capital do Algarve – Faro – atendendo que esta cidade sempre se tinha oposto a qualquer veleidade de desenvolvimento da aldeia: teve de ser sempre contra as autoridades de Faro e por pedido directo ao Rei, que Olhão conseguiu, primeiro substituir as suas barracas por casas de alvenaria (a primeira casa foi construída em 1715), e depois fundar o seu Compromisso Marítimo em 1765, autónomo da entidade farense congénere.

Ora os franceses, ao instalarem-se em Faro, com a ajuda dos colaboracionistas e jacobinos farenses, e ao mostrarem um tratamento mais benévolo para os farenses, além do ódio natural a qualquer português, que os olhanenses já sentiam contra eles, acumularam ainda o ódio que os mesmos olhanenses sempre nutriram contra o poder político farense.

No início de Junho os olhanenses sabem já que a Andaluzia estava lutando contra os franceses e que no Porto uma rebelião portuguesa tinha sido sufocada no dia 7.

Perante esta situação, Junot lança um Edital no dia 11 de Junho a convidar os portugueses a abraçarem a sua causa e pegar em armas contra os espanhóis.

Este Edital é colocado em Olhão, à entrada da Igreja Matriz e perto da prisão de Olhão.

Será no dia 12 de Junho, véspera do dia de Santo António, que é aceso o rastilho que iria resultar na bem sucedida revolta olhanense. Efectivamente, o Compromisso Marítimo tem um altar privativo no lado norte da Igreja Matriz – o altar da Nossa Sra. da Conceição, onde também figura o Sto António e as Armas Reais Portuguesas.

Atendendo que Napoleão tinha ordenado que todos os símbolos de soberania portuguesa deveriam ser destruídos ou escondidos, as Armas Reais Portuguesas estavam, servilmente, cobertas por um pano.

João da Rosa, escrivão do Compromisso Marítimo, quando estava preparando o altar para os festejos de Sto António, resolve pôr a descoberto as Armas Reais Portuguesas.


Igreja Matriz de Olhão:  à esquerda, o Altar da Nossa Srª da Conceição e as Armas Reais.

A excitação foi grande na aldeia! À noite iça-se uma bandeira nacional num mastro e, entre as cantigas dos festejos, dá-se vivas à Família Real.

No entanto, os ânimos serenaram até ao dia decisivo de 16 Junho, no qual se celebrava o Dia do Corpo de Deus. Em Olhão, à entrada da missa das 10h30, na Igreja Matriz, o Coronel José Lopes de Sousa vê alguns marítimos tentando ler o Edital de Junot, no qual este pede aos “leais” portugueses para ajudarem os “amigos” franceses contra os espanhóis revoltados.

Este coronel era o Governador de Vila Real de Sto António, mas encontrava-se em Olhão desde 10 de Março desse ano, oficialmente por motivo de doença, mas é bem provável que o verdadeiro motivo fosse afastamento político das suas funções, tal como já tinha também sucedido ao Governador de Armas do Algarve e Conde de Castro Marim, D. Francisco de Melo da Cunha Mendonça de Menezes. Certamente, sendo José Lopes de Sousa "Governador", teria grande distinção no meio olhanense, constituído na época quase exclusivamente por marítimos pobres! Ao que parece, o Coronel tinha já granjeado respeito destes simples olhanenses e, quando este, irritado, rasga o edital e lhes faz um discurso patriótico, não hesitam em dar-lhe vivas e prometer-lhe dar a vida pelo Reino e o seu Príncipe!

A missa é perturbada por um constante sururu e, o padre Malveiro atreve-se a fazer a proibida Collecta pro Rege. À saída da missa o Coronel José Lopes de Sousa é, no meio de vivas ao Rei, mandatado pelo povo para dirigir a revolta. A bandeira nacional é hasteada na torre da igreja, é rasgado outro edital perto da cadeia, os sinos tocam a rebate, a guarnição francesa de apenas 24 homens foi imediatamente aprisionada, e inicia-se freneticamente a organização da defesa da aldeia.

Um grupo vai à Fortaleza da Armona e consegue a adesão da guarnição portuguesa que lá se encontrava e que lhe fornece algumas peças de artilharia. Tentam o mesmo com a Fortaleza de S. Lourenço mas aqui são repelidos pela sua guarnição, também portuguesa.

Em Olhão organiza-se o alistamento, a defesa das entradas da aldeia, e João Pincho vai pedir socorro à esquadra inglesa perto de Ayamonte, onde encontra um homem que iria ser uma peça fundamental na revolta – o Capitão Sebastião Martins Mestre.

Este militar, ainda antes da revolta olhanense, no dia 13 Junho, pela surdina da noite, com alguns populares da Conceição de Tavira, ocupa de forma pacífica a Fortaleza de S. João, perto da Barra de Tavira, onde os soldados portugueses aquartelados aderem à revolta sem opor qualquer resistência. A 14 de Junho dirige-se à Isla Cristina para pedir ajuda à Armada Inglesa, e acaba por encontrar, no dia 17 de Junho, o olhanense João Pincho, que lá estava também com o mesmo propósito.

Não conseguem o apoio da Armada Inglesa mas conseguem trazer no dia 17 Junho, 130 espingardas da Junta de Ayamonte.

O General Maurin (comandante das forças napoleónicas no Algarve), face aos acontecimentos de dia 16 em Olhão, percebendo que estava numa situação militar difícil, não ataca imediatamente, e tenta demover os olhanenses, primeiro com ameaças de dilúvio e, depois, com promessas de perdões. Para isso envia alguns padres colaboracionistas à aldeia que, evidentemente, nada conseguem.

Entretanto pede reforços às guarnições francesas de Vila Real de Sto António (que se puseram em marcha por terra) e de Tavira (que se deslocaram em três caíques pela Ria Formosa).

No dia 18, devido à intercepção de alguns “correios” do inimigo, o Coronel José Lopes de Sousa apercebe-se que os três caíques iriam passar não muito longe de Olhão, pelo que rapidamente aparelharam um caíque e algumas lanchas e seguiram para o recontro com os franceses. Estes, ao que parece, julgaram tratar-se de pescadores e foram apanhados completamente de surpresa. A abordagem ocorreu perto da Barra Nova, de manhã, e quase sem derramamento de sangue, são aprisionados 81 franceses com as respectivas armas, que foram muito úteis nos recontros seguintes.

Nessa tarde, são também conhecidas movimentações das tropas francesas perto de Moncarapacho (que vinham de Vila Real de Sto António) e imediatamente se organiza a defesa da Aldeia de Moncarapacho e uma emboscada no sítio da Ponte Velha (perto de Quelfes).


Ponte Velha

Ao que nos contam as crónicas da época, o nervosismo e falta de disciplina dos paisanos portugueses denunciou-os aos soldados inimigos e estes, apesar de terem logo ali pesadas baixas, conseguiram retirar do local.

No entanto foram perseguidos encarniçadamente e no Sítio da Meia-Légua (local actualmente assinalado em plena Estrada Nacional 125, no sentido Faro-Olhão, muito perto já do Concelho de Faro) foram quase exterminados …

Esta vitória esmagadora prenunciava que, provavelmente logo no dia seguinte, os olhanenses iriam ter de pagar muito caro o atrevimento de afrontar o que era, ainda na altura, o exército mais temido do Mundo.

Nessa noite, o Coronel José Lopes de Sousa e o Capitão Sebastião Martins Mestre (que também carecia de tratamento a um ferimento no recontro da Ponte Velha) vão a Ayamonte pedir ajuda aos ingleses e espanhóis num caíque. Aproveitam para levar todos os franceses até então aprisionados (cerca de uma centena), até porque estes eram um encargo muito grande para a Aldeia. Lembremo-nos que Olhão estava totalmente isolada e os marítimos não iam ao mar. Os mantimentos escasseavam e não deveria ser fácil alimentar 100 franceses nesta situação.

A verdade é que a saída do Coronel José Lopes de Sousa e o Capitão Sebastião Martins Mestre deixa os olhanenses totalmente abandonados à sua sorte, sem qualquer militar experiente a enquadrá-los!

Fica a chefiá-los o padre Malveiro!

Nessa noite, o povo que não podia combater dormiu nos barcos e na ilha do Coco. Os franceses, espantados com a firmeza daquela pequena aldeia de marítimos esfarrapados, começaram a desconfiar que estes já seriam auxiliados pelo Exército inglês.

O próprio padre Malveiro manda difundir boatos nesse sentido e, nas conversações com os emissários franceses refere-se a grandes forças auxiliares que tinha por trás de si! Conta-se que alguns espiões colaboracionistas enviados de Faro perguntaram a algumas mulheres se elas não tinham medo do que os franceses lhes iriam fazer, ao que elas responderam “o que podem os franceses de Faro fazerem-nos, que os ingleses de Olhão não nos podem também fazer?”.

Os soldados franceses, na manhã de dia 19, saem finalmente de Faro para desferir o ataque decisivo a Olhão. Aproximam-se pelo Norte, cuidadosamente, e pensam entrever o brilho metálico das armas inglesas no orvalho matinal das piteiras. Finalmente, ao longe, julgam ver soldados ingleses na população que se apinhava na ilha do Coco, atendendo muitas mulheres e crianças refugiadas vestirem xailes vermelhos, o que se confundia com o traje militar inglês.

Isto refreia-lhes o desejo de arrasarem a irritante aldeia de pés-descalços e continuam a tentar resolver a revolta através de uma rendição negociada, com a ajuda das autoridades portuguesas de Faro. Curiosamente, como muitos destes emissários portugueses eram já idosos e sem cabelo, fez com que mais tarde os olhanenses chamassem “carecas” aos farenses.

Na tarde de dia 19, quando muitos olhanenses já acreditavam que não teriam melhor alternativa que a rendição, e quando o exército francês estava finalmente preparado para o assalto final, em Faro estala a revolta popular o que obriga a que os franceses apressadamente regressassem.


Pintura de M. da Costa e Silva, retratando a população refugiada na ilha do Coco

No entanto, os franceses já não conseguiriam entrar em Faro e as revoltas começaram a eclodir em muitas outras localidades, tendo a situação ficado insustentável em todo o Algarve para as tropas napoleónicas. Estes só importunaram novamente Olhão no dia 22 de Junho, onde depois de terem sido novamente derrotados, ao fugirem para Norte, passam pela Capela de Santo Cristo (em Moncarapacho) e aproveitam para roubar algumas peças de prata e ouro.

 

3. A criação da Vila do Olhão da Restauração

A Aldeia de Olhão levou a bom termo a primeira revolta contra os franceses bem sucedida em todo o País, sendo sua a responsabilidade de ter acendido o rastilho da revolta portuguesa que levou à expulsão do exército napoleónico.

Prova-o o conteúdo do Alvará de 15 de Novembro de 1808, no qual o Príncipe Regente e futuro D. João VI refere criar a “Vila do Olhão da Restauração” atendendo os olhanenses terem dado “o sinal da Restauração” …que foi “o primeiro sinal para se restaurar a Monarquia de que se tinha apoderado o inimigo comum da tranquilidade da Europa”.

Outro facto histórico confirma a importância que o rei dava à primazia da revolta olhanense: o Conde de Castro Marim, D. Francisco de Melo da Cunha Mendonça de Menezes, era um importante fidalgo que chefiou a Junta Suprema de Faro e foi nomeado Governador do Reino em 1808, após a expulsão dos franceses. O Rei, que devido às suas posições de lealdade o nomeou para o primeiro Conselho de Regência (de apenas seis membros), também o nomearia logo em 21 de Dezembro de 1808, Marquês de Olhão, atendendo à associação clara que havia no seu espírito entre a pequena aldeia e a expulsão dos franceses.


D. João VI

Infelizmente estes factos são frequentemente esquecidos, não se fazendo sequer referência a Olhão na maioria dos trabalhos nacionais sobre esta época.

No entanto, este esquecimento seria ainda maior, caso os olhanenses não tivessem logo no mês seguinte protagonizado mais um acto de heroísmo que, esse sim, iria sensibilizar o Príncipe Regente para o que tinha sucedido naquele dia 16 de Junho no Lugar de Olhão.

Efectivamente, após a expulsão dos franceses do Algarve foi criada uma Junta Suprema em Faro onde, certamente devido ao protagonismo recente da aldeia, se encontrava como representante do Povo um olhanense chamado Miguel do Ó, que era proprietário de uma embarcação de pesca típica da época - o caíque, que tinha cerca de 18 m de comprimento e 5,5 m de largura - de nome Bom Sucesso. Em 2 de Julho, perante um falso boato de que o Exército Napoleónico estaria novamente a preparar um ataque a Faro, uma parte considerável da população olhanense apresenta-se em massa na cidade para a defender.

Esta extraordinária manifestação de solidariedade impressionou a Junta Suprema e terá sido determinante para que esta decidisse que seria o caíque Bom Sucesso a levar a boa notícia da expulsão dos franceses do Algarve à Família Real no Rio de Janeiro.

Rapidamente aparelha-se o navio e no dia 6 de Julho parte o caíque com 17 olhanenses, numa viagem tremendamente arriscada, orientados apenas pelas estrelas, as correntes marítimas e um mapa rudimentar.

Chama-se a atenção que o caíque estava preparado para a navegação mediterrânica mas não tinha sido concebido nem nunca tinha sido utilizado para atravessar o Atlântico. Estes homens tiveram de lutar contra o mar, as más condições de habitabilidade da embarcação, fugir da Armada Francesa e seus corsários, dos piratas, da fome e da sede!

A viagem incluiu apenas uma paragem na ilha da Madeira onde entrou mais um membro para a tripulação, e acabou a 22 de Setembro de 1808 (cerca de dois meses e meio) no Rio de Janeiro.

O caíque foi comandado pelo Mestre Manuel Martins Garrocho e pilotado por Manuel Oliveira Nobre, tendo sido tripulantes António da Cruz Charrão, António Pereira Gémeo, António dos Santos Palma, Domingos do Ó Borrego, Domingos de Sousa, Francisco Lourenço, João Domingos Lopes, João do Moinho, Joaquim do Ó, Joaquim Ribeiro, José da Cruz, José da Cruz Charrão, José Pires, Manuel de Oliveira, Pedro Nínil e Francisco Domingos Machado (único tripulante não olhanense, entrado na Madeira).

A chegada daquele pequeno barco apinhado de 18 marítimos andrajosos, portadores de boas notícias da metrópole, comoveu tremendamente toda a Família Real, pelo que o Príncipe Regente manda sair o já citado Alvará que eleva a aldeia de Olhão à categoria de vila, com o nobilitante título de Vila do Olhão da Restauração, permite aos olhanenses usarem uma medalha com a letra “O” e a legenda “Viva a Restauração e o Príncipe Regente Nosso Senhor”, cobre de mercês os tripulantes do caíque, oferece-lhes uma embarcação nova para estes regressarem a Portugal, e compra o caíque para este ser conservado ad perpectuam memoriam no Rio de Janeiro.

Este caíque esteve ainda durante muito tempo no Museu da Marinha do Rio de Janeiro, na Ilha das Cobras e, pelo menos em 1841, ainda era muito apreciado pelos visitantes.


Medalha que o Rei D. João VI concedeu aos olhanenses em
 15 de Novembro de 1808
(Fonte: Publicação intitulada "D. João VI e o seu tempo" editada pela Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, , na sequência de uma exposição com o mesmo título, no Palácio da Pena, em 1999).

Actualmente desconhecemos o seu paradeiro, sendo provável estar irremediavelmente desaparecido.

 

4. Bibliografia: 

bullet Gotteri, Nicole – Napoleão e Portugal – Teorema, Lisboa, 2006
bullet Iria, Joaquim Alberto – A invasão de Junot no Algarve - Lisboa, 1941
bullet Marques, Maria da Graça Maia - O Algarve da antiguidade aos nossos dias: elementos para a sua história - Lisboa: Colibri, 1999
bullet Nobre, Antero - História Breve da Vila de Olhão da Restauração, ed. “A Voz de Olhão”, Olhão, 1984

 

António Paula Brito, 2006